Uma faca de dois gumes – a reserva legal da meação no processo expropriatório

20/11/2020

Projeto Elas no Processo na Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

As inovações trazidas pelo Código de Processo Civil, na busca da concretude da prestação jurisdicional para o recebimento do crédito no processo de execução, podem acarretar também embaraços e dificuldades na efetividade da satisfação do crédito, quer seja pela alienação ou adjudicação; e, como o próprio título do texto diz, ser uma faca de dois gumes e acabar frustrando a proteção legal de que a execução deve ser o menos onerosa ao devedor.

Com a intenção de proteger a meação existente no patrimônio comum por força do regime de bens, quer seja no casamento ou na união estável, e, portanto, pertencente ao cônjuge ou ao companheiro, a lei processual determina a intimação do meeiro, nos processos de execução, aplicável também ao cumprimento de sentença. Com vistas a dar ciência da constrição judicial ocorrida em bem imóvel ou pela penhora que recair sobre direito real neste tipo de bem; e, acrescentado pelo Novo Código Processual (artigo 843 do CPC), esta imposição aplica-se também ao coproprietário, quando este objeto torna-se garantidor da realização da prestação jurisdicional final, para fins de adjudicação ou de alienação, recebendo o bem em pagamento ou auferir dinheiro para quitação do crédito em execução; haja vista que o ato constritivo pode extrapolar a reserva legal, portanto, tornando-se incompatível com o direito de meação assegurado e protegido sobre o referido bem, quando o meeiro não é o responsável pelo débito em execução.

Todavia, apesar do artigo 842 do Código de Processo Civil, tratar apenas do cônjuge, é pacífico o entendimento na doutrina [i] [ii] e com inúmeras decisões nos Tribunais, de que a regra sobre a intimação da penhora deve ser estendida aos companheiros, em uma correção honrosa feita na falha da redação da norma quando não reconhece expressamente o mesmo direito de proteção ao meeiro da união estável, mesmo sendo novel a Lei Processual.

Fica evidente que esta determinação, no caso de união estável, só será exigida e cumprida se houver prova do conhecimento da união estável pelo credor ou que esteja documentado este fato nos autos, uma vez que a informalidade aceita pela legislação brasileira para o reconhecimento deste tipo de constituição familiar dá margem a terceiro ignorar o status social do contratante.

Atentem-se a outro ponto importante que esta regra específica peca, quando excetua não ser necessária a intimação caso o regime entre os cônjuges seja o da separação absoluta de bens. Simplesmente porque, ao nominar o regime de separação absoluta de bens cria margem a argumentações de que não incluiu o regime de separação obrigatória. O que não se pode aceitar, pois a falha ocorreu por simples inadequação no uso do vocábulo ao nominar o regime.

Quando a nossa legislação civil cria os quatro regimes de bens, a saber: comunhão universal, comunhão parcial, participação final nos aquestos e separação de bens, biparte o regime de separação de bens em duas modalidades: separação convencional e separação legal. A primeira ocorre por liberalidade dos contraentes, quer seja no casamento ou na união estável. Já a segunda é por imposição legal (art. 1.641 do CC), não sendo permitida a escolha, em razão dos nubentes se enquadrarem nas tipificações que o Código Civil descreve nos incisos do artigo 1.523 e do artigo 1.641.

Via de consequência, tanto na separação convencional, como na separação legal de bens fica o credor desobrigado a intimar o meeiro, simplesmente por não existir meação nestas modalidades de regime, quer seja pelo matrimônio ou pela união estável.

E mais, mesmo aqueles bens excluídos do regime de comunhão parcial ou da participação final nos aquestos não estão isentos de constrição judicial para responderem por dívidas contraídas para compras pelo cônjuge, mesmo que a crédito, quando se tratar de coisas necessárias à economia doméstica, em razão da existência da responsabilidade solidária; todavia, não necessita de intimação do proprietário meeiro, haja vista que não existe meação que recaia sobre estes bens excluídos e o que obriga o cônjuge é a natureza da responsabilidade.

Com a finalidade de obter dinheiro com a alienação do bem constrito para pagamento do crédito em execução ou até mesmo o recebimento do bem como forma de pagamento, se faz mesmo necessário dar conhecimento, através da intimação, daquele que tem a metade, quer seja do bem imóvel ou do direito real que recaia sobre o bem imóvel, sendo que a intimação por si só não transmuda a sua posição de terceiro na execução, quando não for responsável pelo débito (art. 842 do CPC).

Agora estamos diante de um impasse que poderá exigir soluções diversas, dependendo da natureza do bem – divisível ou indivisível.

Caso o imóvel seja divisível, em um primeiro momento, este conhecimento possibilita que o meeiro intimado possa opor embargos de terceiro (art. 674, § 2º, inciso I) [iii] para resguardar e proteger a sua cota, quando não respeitada, visto não ser parte na ação de execução (art. 779, inciso I do CPC). E o papel dos embargos neste caso visa desconstituir o ato constritivo da execução, podendo “acidentalmente” extingui-la. O que cria a participação do cônjuge na expropriação do bem, sendo reconhecido como um litisconsórcio obrigatório e ulterior (art. 114, 1ª parte do CPC), mas não em virtude da responsabilidade pela obrigação exequenda, mas sim pela imposição da outorga conjugal para atos de disposição ditada pela lei material [iv] e reconhecida pela lei processual.

E, caso outro, se o bem imóvel for indivisível, o correspondente de sua meação lhe será entregue com o produto auferido pela alienação do bem (art. 843 do CPC), não necessitando da interposição de embargos, uma vez que a lei já cria os tramites e limites para o recebimento do valor da reserva legal.

Entretanto, se o cônjuge tiver responsabilidade secundária, respondendo sua meação pela dívida, poderá interpor embargos à execução para discutir o título cobrado, o que por via de consequência poderá atingir a penhora de sua meação; e também não impede os embargos de terceiro, em razão dos argumentos dispendidos nos da execução.   

Chegamos ao ponto nefrálgico da questão proposta.

O artigo 843 do citado Código determina que se a penhora incidir sobre bem indivisível, será assegurado ao meeiro o direito de receber o valor de sua meação, tanto do coproprietário (novidade do CPC de 2015) ou do cônjuge que não responde pela execução, e “recairá sobre o produto da alienação do bem”. Traduzindo em miúdos: arrematado o bem, será separado o valor da meação do produto auferido, e, no caso, sendo relação de conjugalidade este valor é o corresponde a cinquenta por cento (50%), garantindo assim o recebimento da sua meação. Posto que, ao coproprietário este percentual poderá variar.

Denominada como reserva da meação, esta regra possui dois objetivos.

O primeiro é garantir que a parte do bem indivisível e penhorado pertencente ao cônjuge meeiro não responda pela dívida que não é sua; e como segundo objetivo, evita-se e previne a interposição despicienda de embargos de terceiro (art. 674 do CPC), uma vez que o meeiro no caso é terceiro no processo de execução. Situação já prevista no artigo 655-B do CPC de 73, em razão da modificação trazida pela Lei nº. 11.382, de 2006; a vista de que, os embargos se tornaram desnecessários, já que está assegurado ao meeiro o recebimento do valor de sua meação retirada do resultado da expropriação do bem; e assim, todo o procedimento se torna mais célere e eficaz.

Todavia, em uma primeira análise, não podemos fazer vista grossa ao fato de que, mesmo cuidando para que a expropriação não se concretize por preço inferior ao valor da cota parte do meeiro levando-se em conta a avaliação; ou seja, a expropriação deverá ter, no mínimo, como resultado o valor da metade da avaliação, em razão da reserva da meação, implica em concluir que a alienação será infrutífera para o credor. Mas também poderá ser para o devedor, pois se um terceiro arrematar pelo valor mínimo permitido (o valor da meação), esta importância será entregue ao meeiro e por via de consequência volta ao patrimônio comum do casal, por força do regime de bens, e como o credor não recebeu ainda, reiniciará um novo procedimento para recebimento do crédito, com uma nova penhora, e logicamente uma nova alienação, tornando-se cíclico, até que esta repetição ponha a perder todo o patrimônio do devedor ou reste um valor ínfimo. 

Razão pela qual o juiz deverá estar atento ao que dispõe o § 1º, do artigo 903, inciso I, do Digesto Processual atual, que invalida a arrematação que contenha vício; e, certamente, caso efetivada a expropriação por preço aquém do valor da meação levando em conta e sendo considerado o valor da avaliação, tornar-se-ia impraticável a aplicação da reserva da meação legalmente assegurada. Em verdade, especificamente neste caso, não precisa de estipulação judicial para o que seja o preço mínimo para a efetivação da arrematação (art. 891 do CPC), posto que a lei já engessa a realização da expropriação ao limite da reserva da meação, calculada sobre a avaliação.

Além do que, não podemos esquecer dos ditames do artigo 836, que previamente não permite que se realize a penhora se o produto resultante for totalmente comprometido com o pagamento das custas do processo de execução.

A única possibilidade para que cesse o ciclo que pode se reiniciar, frente a expropriação do bem no limite da avaliação, é a adjudicação; pois se houver a arrematação por terceiro no limite da meação, nada restará para o credor, e como já explicado acima, reiniciará o processo de nova penhora. Notadamente, se o produto da meação for aplicado em bens imóveis ou depositado na justiça compondo novamente o patrimônio comum do casal. Pois não podemos ignorar que o instituto da reserva da meação não tem o condão, ao menos com previsão expressa na lei, de excluir do patrimônio comum do casal o resultado recebido da expropriação, uma vez recebido pelo meeiro volta ao patrimônio comum do casal, e por força do regime de bens torna-se possível nova penhora sobre a meação do cônjuge ainda devedor.

Em verdade, a reserva da meação fez com que o meeiro recebesse a sua cota parte; mas, esta cota parte obtida com a expropriação caso retorne ao patrimônio comum do casal, subdivide entre eles. E mais uma vez podendo ser penhorado e novamente utilizado o instituto da reserva da meação, até que nada mais reste. O que podemos denominar de “ação diabólica”.

Podemos encontrar estudos que demonstram a genial solução para o malfadado impasse, já que não existe expressa previsão legal. [v] Ou seja, a meação liberada tornar-se-ia incomunicável para fins de nova constrição judicial, desde que o meeiro não se torne responsável solidário pela dívida cobrada. Porquanto, se assim não for, os embargos de terceiro restariam infrutíferos e ocos em sua função processual de proteção legal da reserva da meação; desta feita, e por via de conclusão lógica, a eficácia da sentença proferida nestes embargos deve ser projetada para caracterizar a meação como bem incomunicável para aquele casal e para aquela dívida, sob pena de não haver sido prestada, com eficácia, a jurisdição que a lei diz assegurar ao meeiro, frente ao direito de sua reserva legal.             

 

Notas e Referências

[i] NERY JR, Nelson. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2020, p. 1.725. 

[ii] ALVIM, Teresa Arruda e coordenadores. Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2019, p. 1.938.

[iii] ARMELIN, Donaldo. Embargos de Terceiro. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 205 e 209.

[iv] ASSIS, Araken. Manual da Execução. São Paulo: RT, 2018, p. 1.046. 

[v] ARMELIN, Donaldo. Embargos de Terceiro. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 213.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Lady Justice // Foto de: – JvL – // Sem alterações

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