Uma discussão psicanalítica sobre criminalização de substâncias

08/02/2016

Por Maíra Marchi Gomes - 08/02/2016

“Desprezei o uso de agulhas pela mesma razão que desprezei algumas mulheres supostamente bonitas – o custo era muito superior ao benefício. Eu não queria pegar pesado”.

Charles Bukowski

 

A falácia da criminalização de determinadas substâncias (aquelas a quem se atribui o estatuto de “droga”) pode ser pensada a partir de vários caminhos. Um deles é o interesse político-econômico em rechaçar determinadas substâncias, ao lado de uma “purificação” de outras. Refiro-me, por exemplo, ao elogio do álcool e das medicações psicotrópicas, a ponto de nem serem vistos como droga.

Também se pode lembrar do interesse político-econômico que cria e mantém os tráficos de determinadas substâncias e armas, ao lado da negação de que o humano sempre precisou de “amortecedores de preocupações” (FREUD, 1930), e deles sempre precisará.

Assim, na criminalização de certas substâncias há tanto o ganho de se manter o seu tráfico (e toda a indústria que ele mobiliza, inclusive de segurança pública e privada), como também o ganho de se negar que se droga por meio de outras substâncias (as lícitas e até elogiadas).

Nesta direção, cabe lembrar a apologia da associação entre alegria e álcool, e a “cultura da farmacinha”. Demorar-me-ei um pouco mais nesta última. Tal cultura justifica não apenas a existência de farmácias em cada esquina deste país, como move a indústria farmacêutica e contribui para a idealização da medicina biologizante/medicalizadora. Sim...há sujeitos que acreditam que todos os males são resolvidos na medicina. Sim...há sujeitos que só consideram bom médico aquele médico que medica. Sim...há médicos que se sujeitam a receber pagamentos de viagens e inscrição de congressos por parte de laboratórios. Sim...há sujeitos que possuem na bolsa e/ou em casa remédios para qualquer mal que por ventura possa vir a acometê-los.

É aquele amigo que, caso você conte que está com dor de cabeça, logo sacará o mais moderno analgésico. É aquela prima que, se você comentar que está com dor de estômago, imediatamente lhe estenderá a última novidade da farmácia. É aquele vizinho que, se você disser que está com dor muscular, fica feliz em lhe mostrar que também lhe salvará dessa.

Enfim...são os sujeitos indispostos a lhe escutar. Indispostos a lhe devolver sua demanda e lhe convidar a se escutar. Afinal, se alguém nos fala de alguma dor ou incômodo, não deveríamos calar-lhe a boca. E não deveríamos nos preocupar em enfiar algo em nossa boca quando nos sentimos mal, mas justamente entrarmos em nós e melhor saber deste mal-estar.

A psiquiatria, pelo menos em sua abordagem clássica, aborda, ainda que indiretamente, quadros de dependência a partir da subjetividade envolvida; e só não o faz mais claramente devido à função social exercida pelo toxicômano: a personificação de rechaços da sociedade. A psicanálise, por sua vez, compreende explicitamente os quadros de dependência precisamente a partir das subjetividades envolvidas.

A etimologia de adicto, lembram KALINA e KOVADLOFF (1980), refere-se ao pacto na antiga Roma, entre aquele que, endividado (addictum), contrai uma dívida. Dívida esta particular: dívida a ser paga com o corpo, porque com a escravidão, àquele que lhe ofereceu algo cuja falta foi insuportável em determinado momento. Assume-se uma não-identidade em nome de haver assumido a identidade de faltante.

Identidade de faltante é inclusive uma redundância, se recordarmos, junto aos mesmos autores, que identidade é uma possibilidade humana, e uma possibilidade tornada realidade desde que se defronte com a condição faltante. A promessa de identidade completa, além-humana, é desfeita tão logo se assuma uma condição aquém-humana. Neste sentido, a propósito, é que etimologicamente a definição de droga é mentira.

Drogar-se seria um movimento significativamente agressivo consigo próprio porque legitimador da abdicação de ser, de se apropriar de seus afetos e ter uma autonomia possível na resposta aos mesmos. E isto independentemente do objeto em questão, como explica BENTO (1986, p.03):

o substantivo adicção designa inclinação ou apego a alguma coisa. Já o adjetivo adicto define a pessoa francamente propensa à prática de alguma coisa – crença, atividade, trabalho – ou partidária, por exemplo, de determinados princípios. O substantivo associado ao adjetivo sugerem uma relação compulsiva e intensa com alguma coisa. Portanto, remetem ao conceito de dependência, o qual é fundamental na definição de toxicômano.

A etimologia do vocábulo remete ao latim. A forma adicto origina-se no particípio passado do verbo addico que significa adjudicar ou designar.

SILVEIRA FILHO (1996, p.01) permite discutir, aliás, como os conceitos de uso e abuso podem se relacionar com esta definição psicanalítica de dependência dizendo que o termo dependência é utilizado para se referir a determinados comportamentos e designar o abuso ou o excesso como origem do problema. Assim, a relação entre sujeito e objeto configura uma patologia, pela sua intensidade ou pela sua preponderância, independentemente das características do objeto.

Multiplicam-se as descrições de dependências: à cocaína, ao álcool, aos medicamentos, aos alucinógenos, sem que se esqueça do tabaco, da comida, do açúcar, do chocolate, do café, incluindo ainda comportamentos excessivos os mais diversos: jogo, televisão, esporte, paixão, mesmo o trabalho e o sexo. Tais comportamentos têm em comum a falta de limites e o excesso

SILVEIRA FILHO (1996, p.03-04) vai além: discute sobre o estatuto de tentativas de classificar quadros de dependência de acordo com o objeto em questão como sendo uma forma de não escutar o sujeito em questão, mas o universo social ao qual responde da posição de objeto.

caberia aqui uma distinção entre o uso de substâncias que induzem e de produtos que não induzem alterações na percepção da realidade. Os dependentes do álcool e de outras drogas ilícitas buscam esta modificação da percepção da realidade, o que não necessariamente acontece com todas as formas de dependência (por exemplo, café e tabaco). Embora constituem duas categorias de fenômenos bastante distintos e em muitos aspectos pouco comparáveis, ambas configuram uma farmacodependência (...). O mesmo raciocínio pode ser estendido, em diferentes contextos, aos obesos, aos jogadores, aos homossexuais, aos hiperativos sexuais, etc. Em resumo, os desviantes da norma são freqüentemente catalogados, patologizados e marginalizados, através da utilização de conceitos pretensamente científicos

Poder-se-ia inclusive pensar que o dependente trata-se como droga porque não se apropria de seus afetos, e desta maneira representa aquilo do qual a sociedade mais procura desconhecer, como nos explica FREUD (1930): a impossibilidade de controle sobre nossos afetos, sendo estes de inúmeras naturezas. É neste sentido que SILVEIRA FILHO (1996) discute a diferenciação no tempo e no espaço de atribuições de ilegalidade a certas substâncias.

A noção de que o dependente trata-se como droga encontra fundamento na noção de SILVEIRA FILHO (1996, p.05) pautada na diferenciação entre dependência biológica e dependência:

o que passa a importar não é mais o produto em si, mas as reações do indivíduo aos acontecimentos de sua vida. Em última análise, o que se contrapõe à dependência não é a abstinência, mas, sim, a liberdade. A perda da liberdade do indivíduo constitui a doença. Em um sentido amplo, a cura de um dependente não é obtida ao conseguirmos mantê-lo abstinente, mas sim quando ele for capaz de adquirir a liberdade de escolher o padrão de relação que passará a ter com a droga   

O mesmo autor ainda nos permite distinguir usuários de substâncias e dependentes das mesmas a partir do ponto de vista subjetivo e não fisiológico, que no caso da dependência, diferentemente do uso, faria com que o vínculo com a substância não respondesse à busca de prazer, ou desejo, mas à impossibilidade de prescindir da substância na elaboração psíquica de realidades subjetivas e objetivas.

Na dependência a substância teria como função evitar o desprazer, sendo tal função o critério de diagnóstico para dependência. “Por mais que a nosografia psiquiátrica insista em categorizar a farmacodependência como uma entidade nosológica autônoma, na clínica não se consegue ir além do reconhecimento da existência de uma conduta toxicomaníaca” (SILVEIRA FILHO, 1996, p.08).

Estaria nesta operação psíquica de não suportabilidade de contato com as próprias falhas, e a correlata apropriação maciça do discurso social de não sentir dor, o que define a dependência. Paradoxalmente, acreditar que se deve ser pleno e que não se pode sentir dor é o que tira a liberdade.

Nesta direção, se o poder público efetivamente estiver interessado em fazer algo frente aos danos causados pelo contato com substâncias, que comece por não fazer generalizações. Que comece por não criminalizar substâncias, mas escutar aquele que delas fazem uso para só a partir da singularidade avaliar o prejuízo eventualmente causado. Que não prive sujeitos da liberdade[1], mas dê condições de tratamento a quem o deseje.

No entanto, o poder público parece mais interessado em manter a indústria médica, farmacêutica e bélica do que nos sujeitos eventualmente lesados por se alienarem maciçamente ao discurso da vida indolor.

Quanto a nós, que tenhamos a hombridade de não encher a paciência do filho que fuma maconha dizendo que, por causa da preocupação por ele só chegar em casa pela manhã, precisamos tomar um remédio para dormir. Que não nos queixemos do uso de álcool da filha enquanto botamos para dentro mais um remédio para emagrecer. Que não usemos o uso de crack do vizinho como tema para nosso happy-hour no bar da esquina. Que assumamos que nossa vida, assim como a deles, não é toda boa. E que cada um faz o que pode. Nem mais nem menos.

Que nos autorizemos a nos intrometer na vida alheia apenas quando ela nos afeta, e não por precisarmos projetar no outro nossa incapacidade de viver por acreditarmos numa vida ideal. Melhor dizendo, numa vida divina na terra. Que admitamos que nos drogamos, seja lá do que for. E que a droga (qualquer que seja) só se torna problemática quando seu usuário pensa que não tem motivo para se drogar.


Notas e Referencias: 

[1] Ver neste sentido coluna da semana passada, na qual se discutiu como alguns magistrados gostam tanto de privar o outro da liberdade que chegam a confundir sua função de julgar com a de avaliar, para que, caso não possam prender, possam internar compulsoriamente.

BENTO, Victor Eduardo Silva. Os componentes psicopatológicos das toxicomanias. Curitiba : Edição do autor, 1986. 122 p.

FREUD, Sigmund (1930) O mal-estar na civilização. In:_____Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 21 v. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.65-148.

SILVEIRA FILHO, Dartiu Xavier. Dependências: de que estamos falando, afinal?. In: SILVEIRA FILHO, Dartiu Xavier; GORGULHO, Mônica (Orgs.). Dependência: compreensão e assistências às toxicomanias : uma experiência do PROAD. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996. p.01-13.

KALINA, Eduardo; KOVADLOFF, Santiago. Drogadicção: indivíduo, família e sociedade. 2 ed. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1980. 107 p.


Maira Marchi

. Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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