Uma análise hermenêutica do precedente no Novo Código de Processo Civil (Parte 3) – Por Denarcy Souza e Silva Júnior

04/04/2016

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A integridade e coerência da jurisprudência como pressupostos interpretativos contrafáticos.

Dando continuidade à análise hermenêutica do precedente, dentro do referencial teórico ao qual está alicerçada a coluna, impende analisar a integridade e a coerência previstas no art. 926, do NCPC, bem assim a sua importância dentro do sistema de precedentes judiciais obrigatórios fomentado pelo novo diploma processual.

A crítica hermenêutica do direito tem como um dos seus corifeus Ronald Dworkin e sua conhecida luta contra a discricionariedade judicial. Nessa perspectiva, se apodera de algumas das premissas da teoria integrativa, notadamente da metáfora do Juiz Hércules, objetivando analisar o direito sob a premissa da integridade e coerência, o que, aliás, levou Lênio Streck a afirmar que o texto do art. 926 do Novo Código de Processo Civil, se deu pelo que ele denomina de “emenda streckiana-dworkiniana” do NCPC, que ainda culminou com a retirada do livre convencimento que constava de quatro dispositivos do projeto do novo código[1].

Na conhecida metáfora, Dworkin utiliza a figura de um juiz imaginário, que a um só tempo tem que utilizar a sua sabedoria e paciência para encontrar a resposta correta (que também deve ser tida como uma metáfora[2]) nas suas decisões, levando em conta todos os argumentos relevantes deduzidos pelas partes no processo, jurídicos e fáticos-probatórios, reconstruindo a história institucional para analisar como os outros juízes decidiram no passado casos análogos, justificando intersubjetivamente a sua decisão[3].

É bom que se diga, para evitar mal entendidos, que os pressupostos da integridade e coerência não tornam o juiz um escravo do passado, embora ele tenha o compromisso moral de observá-lo nas suas razões de decidir. Ao contrário, ao se lançar à reconstrução da história institucional, levando em consideração referidos pressupostos, o juiz Hércules deve sempre ter em mente que ele é parte de uma complexa engrenagem, de um romance escrito por várias mãos (daquele direito em especial), que sempre tem que levar em consideração as decisões passadas, em atenção à coerência, mas a integridade, aqui entendida como um princípio, de que todos têm os mesmos direitos e liberdades, sem quaisquer privilégios ou preconceitos, não permite a perpetuação de erros ou iniquidades, permitindo a superação do precedente, ainda que para isso se tenha um aumento do ônus argumentativo.[4]

Percebe-se, pois, que a decisão a ser construída não pertence apenas ao juiz, mas carece de um processo democrático e comparticipativo, afastando-se do protagonismo judicial e abrindo ensanchas a um policentrismo processual, onde os sujeitos do processo, juntos, construam a decisão judicial, tendo o juiz o dever de levar a sério os argumentos das partes, a tradição daquela sociedade, preservando, ainda, condições para que os próximos juízes, nos casos vindouros, possam melhorar a decisão (daquele direito em especial), abrindo possibilidade para que, no futuro, se possa analisar a correção da decisão pretérita, confirmando ou refutando os argumentos anteriormente lançados, superando-se, assim, o positivismo jurídico pela reintrodução do mundo prático no direito[5].

Essa abertura para o futuro, mas sem perder de vista o passado, é a pedra fundamental de uma teoria dos precedentes judiciais. Num processo democrático, a comparticipação e o diálogo entre os sujeitos processuais, alicerçados num contraditório participativo, limitam, sobremodo, eventuais condutas arbitrárias dos magistrados, porquanto a intersubjetividade funcione como um fechamento hermenêutico, impedindo que se parta de um grau zero de sentido e possibilitando que a comunidade política controle a decisão a ser proferida, diante da pré-compreensão desta mesma comunidade.

Evita-se, assim, que se perpetue um pretenso realismo jurídico. Mais que isso, impede-se que as decisões judiciais dependam das crenças e preconceitos dos juízes ou que eles decidam conforme as suas consciências, ainda que estejam diante dos denominados casos difíceis. Nesse contexto, como dito, integridade e coerência funcionam como freios para a subjetividade assujeitadora e enunciados assertóricos, com pretensão de objetivação, sendo a linguagem condição de possibilidade de qualquer compreensão, num movimento circular inerente a hermenêutica filosófica, que deixa o método para trás.

Numa palavra: interpretar é compreender. E compreender é aplicar. A hermenêutica não é mais metodológica. Não mais interpretamos para compreender, mas, sim, compreendemos para interpretar. A hermenêutica não é mais reprodutiva (Auslegung); é, agora, produtiva (Sinnegebung). A relação sujeito-objeto dá lugar ao círculo hermenêutico.[6]

É bem verdade que o novo código de processo civil está longe de caracterizar a superação do método, tampouco se pode enxergar nele uma pureza metodológica. Da leitura mesma dos seus dispositivos, várias teorias foram positivadas, não apenas aquela defendida por Ronald Dworkin e Lênio Streck, mas outras com elas incompatíveis, como é o caso da Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy[7], prevista textualmente no § 2º, do art. 489, do NCPC, ainda que com algumas diferenças. Fugiria ao escopo deste texto um debate mais acirrado sobre esse sincretismo metodológico, mas o registro se faz necessário, não sendo apto, porém, a se sobrepor à análise da integridade e coerência, verdadeiros princípios a nortear a interpretação no novo diploma processual.

Sobre o alcance da coerência e integridade no Novo Código de Processo Civil, Lênio Streck assim vaticinou:

A coerência e a integridade são, assim, os vetores principiológicos pelos quais todo o sistema jurídico deve ser lido. Em outras palavras, em qualquer decisão judicial a fundamentação — incluindo as medidas cautelares e as tutelas antecipadas — deve ser respeitada a coerência e a integridade do Direito produzido democraticamente sob a égide da Constituição. Da decisão de primeiro grau à mais alta corte do país. Se os tribunais devem manter a jurisprudência estável, íntegra e coerente, logicamente os juízes de primeiro grau devem julgar segundo esses mesmos critérios, a partir da “chave de leitura” estabelecida no parágrafo 4º do artigo 943 [927], que sequencia o artigo 942 [926], holding hermenêutico do capítulo e de todo o NCPC.[8]

Se por um lado a coerência vincula o juiz ao que restou decidido no passado, por outro a integridade não permite que decisões erradas sejam perpetuadas, pois o direito que todos têm de ser tratados com mesma consideração e respeito impõe que o Poder Judiciário leve o caso a sério e o trate com extremo cuidado e não apenas como mais um de uma série. Diante dessa preocupação, tem, ainda, o magistrado, que engendrar esforços para que a sua decisão seja a única correta para a resolução do caso em análise e não apenas uma entre tantas possíveis, pois a integridade não se alinha com a possibilidade de que o caso possa receber mais de uma solução, apenas mudando-se o julgador, daí a imprescindibilidade da tese da resposta correta.

Na próxima coluna, fechando a análise hermenêutica do precedente no Novo Código de Processo Civil, será feita uma incursão acerca da tese da única resposta correta, dentro das premissas da Crítica Hermenêutica do Direito, discutindo-se a possibilidade de várias respostas racionalmente possíveis ao caso ou, por outro lado, se cada caso tem uma resposta correta (constitucionalmente), o que afastaria teses voluntaristas e realistas que permeiam o imaginário dos operadores do direito.


Notas e Referências:

[1] STRECK, Lênio. Novo CPC terá mecanismos para combater decisionismos e arbitrariedades? In:  Conjur – Consultor Jurídico. 18.12.2014. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-dez-18/senso-incomum-cpc-mecanismos-combater-decisionismos-arbitrariedades>. Acesso em 10.08.2015.

[2] Cf. STRECK, Lênio. Verdade e Consenso: constituição hermenêutica e teorias discursivas. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 387/ 394.

[3] Cf. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução Luis Carlos Borges (revisão técnica Gildo Sá Leitão Rios; revisão de tradução Silvana Vieira) – 2ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2007.

[4] Cf. DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

[5]BAHIA, Alexandre Melo Franco. NUNES, Dierle. PEDRON, Flávio. Precedentes no Novo CPC: É possível uma decisão correta? InJustificando. 08.07.2015. Disponível em: <http://justificando.com/2015/07/08/precedentes-no-novo-cpc-e-possivel-uma-decisao-correta-/>. Acesso em: 10.08.2015.

[6] STRECK, Lênio. O que é isto – decido conforme a minha consciência? 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 77.

[7] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

[8] STRECK, Lênio. Novo CPC terá mecanismos para combater decisionismos e arbitrariedades? In:  Conjur – Consultor Jurídico. 18.12.2014. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-dez-18/senso-incomum-cpc-mecanismos-combater-decisionismos-arbitrariedades>. Acesso em 10.08.2015.


 

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