Uma análise hermenêutica do precedente no Novo Código de Processo Civil (Parte 1) – Por Denarcy Souza e Silva Júnior

21/03/2016

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Há clara diferenciação entre precedente judicial, jurisprudência e súmula, aqui ainda não analisada em seu caráter vinculante, mas que, por vezes, passa despercebida pelos operadores do direito. Tais distinções, embora bem delineadas na doutrina, não encontraram guarida no Novo Código de Processo Civil, que baralha conceitos e confunde os institutos, dificultando, sobremodo, o trabalho hermenêutico, que tem que tomar o texto como evento e deixar que ele diga alguma coisa, diante da impossibilidade de cisão entre texto e norma.

Tem-se como precedente, uma decisão proferida para determinado caso concreto, que alcança status paradigmático, podendo ser utilizado como referência para decisões futuras, pois nele encontra-se inserida uma tese jurídica passível de universalização, levando-se em consideração as circunstâncias fáticas que embasam a controvérsia.

É de se notar, que o precedente, sob o ponto de vista quantitativo[1], constitui-se numa única decisão, que pode servir de modelo para decisões de casos futuros, que guardem, com ele, estreita similaridade fática. Tudo isso leva a crer, que o precedente judicial, embora deva ter preocupação com o futuro[2], não é concebido, desde logo, com essa finalidade, de regrar casos análogos vindouros, o que ocorrerá diante da qualidade da decisão proferida, pela força do argumento nela lançado e, por óbvio, da importância do órgão jurisdicional que proferiu a decisão a ser tomada como precedente.

Numa visão mais estreita, talvez a absorvida pelo Novo Código de Processo Civil, toma-se o precedente não apenas pela qualidade da fundamentação e da tese jurídica nele espelhada, mas sim pelo seu caráter vinculante. Nessa corrente, seriam precedentes as decisões, em regra provenientes das Cortes Supremas[3], habitualmente eleitas pela via legislativa, para servir como paradigma de pronunciamentos futuros[4].

Distanciando-se, por partir de premissas distintas, dos conceitos antes analisados, tem-se interessante doutrina, que só considera precedente judicial, uma decisão que promova ganho hermenêutico, com obtenção de novo sentido, opção por um sentido específico e avanço de sentido não contido, inicialmente, em um texto constitucional ou legislativo[5]. Tal ganho hermenêutico, por óbvio, não pode ser encarado como uma cisão entre texto e norma, mas tão somente como uma atribuição de sentido proveniente da pré-compreensão, levando-se em consideração a facticidade e a historicidade, com fulcro na diferença ontológica.

Partindo-se destas noções básicas de precedente judicial, parece intuitivo que elas não se amoldam ao conceito de jurisprudência, que, aliás, é um termo polissêmico, podendo significar a manifestação dos jurisconsultos romanos, a ciência do direito e o conjunto de decisões reiteradas do tribunal em um mesmo sentido. Diante dos limites do presente texto, será utilizada esta última concepção, que servirá como mote para a distinção com o precedente judicial.

A jurisprudência, tomada como conjunto de decisões, não se confunde com o precedente judicial, que, como visto, quantitativamente consiste em uma única decisão. Por sua vez, a jurisprudência consiste num corpo decisional, que se perfectibiliza uníssono, na medida em que as soluções dos casos postos à apreciação do Judiciário são lavradas com a aplicação dos mesmos preceitos. Para a configuração da jurisprudência, faz-se necessária a reunião de um acervo estável, construído ao longo do tempo e que tenha como origem um dado precedente, ou seja, é irrelevante a decisão em sua unidade, pois a autoridade somente se apresentaria a partir de um grupo de decisões[6].

Já as súmulas, que são compreendidas como mecanismos facilitadores para resolução de casos fáceis (ou tornados fáceis em razão das súmulas), em sua origem, nem de longe tiveram a preocupação de garantir a coerência da ordem jurídica ou a igualdade e previsibilidade, inerentes à teoria dos precedentes judiciais. Para a justificativa das súmulas, sempre se utilizou o argumento utilitarista de desafogar o Judiciário, mas nunca se disse nada acerca da necessidade de coerência da ordem jurídica, da garantia da segurança jurídica ou acerca da necessidade de que casos similares fossem decididos de maneira igualitária, ao menos não antes da chegada das súmulas vinculantes[7].

As súmulas (vinculantes ou não) vêm sendo encaradas como normas abstratas e com aplicação para o futuro, a partir das quais se farão deduções e subsunções, transformando os casos difíceis (que demandam grande esforço interpretativo) em casos fáceis (a serem resolvidos de forma automática, por subsunção)[8], o que não se assemelha à aplicação dos precedentes judiciais, que demanda toda uma reconstrução da história do precedente, analisando-se detidamente os casos paradigmáticos, na busca da ratio decidendi a ser utilizada. Na aplicação das súmulas, tenta-se operar sob o método indutivo/subsuntivo, espremendo os fatos nas poucas linhas de seus enunciados, descuidando da faticidade e da reintrodução do mundo prático no direito, condição para a applicatio[9].

Feitas as distinções, dentro das premissas de uma análise hermenêutica, importa meditar o que o Novo Código de Processo Civil entende como precedente judicial. Seria precedente, para o novel diploma processual, apenas aquelas decisões de caráter vinculante (efeito por ele mesmo imposto) e provenientes das Cortes Supremas, ou mereceria esse rótulo toda decisão judicial que tenha qualidade de se impor para o futuro, ainda que de forma apenas persuasiva, sem levar em consideração o órgão que a proferiu? Mais! Há no novo código uma clara distinção entre precedente, jurisprudência e súmula, capaz de emprestar a esses institutos efeitos distintos ou seriam eles tratados como sinônimos a demandar efeitos idênticos?

As respostas a tais questionamentos serão deduzidas nas próximas colunas. Até lá fica a ressalva: para a adoção da teoria dos precedentes judiciais obrigatórios é necessária uma fusão de horizontes, uma reconstrução da história institucional e não apenas a análise de ementas e súmulas descoladas do seu contexto. A tarefa não se mostra simples, mas, decerto, o desafio é instigador.


Notas e Referências:

[1] TARUFFO, Michele. Precedente y Jurisprudencia. Paginas sobre justicia civil. Madrid: Marcial Pons, 2009, n.33, p.559.

[2] Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: RT, 2010, pp. 109/110.

[3] Na visão de Daniel Mitidiero, as Cortes Supremas “estão vinculadas a uma compreensão não cognitivista e lógico-argumentativa do Direito, a jurisdição é entendida como reconstrução e outorga de sentidos a textos e a elementos não textuais da ordem jurídica e o escopo consiste em dar unidade ao Direito mediante a formação de precedentes, entendidas as razões adotadas nas decisões como dotadas de eficácia vinculante”. Cortes Superiores e Cortes Supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: RT, 2013, p. 32.

[4] OLIVEIRA, Pedro Miranda de. O binômio repercussão geral e súmula vinculante – necessidade de aplicação conjunta dos dois institutos. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (org.) Direito Jurisprudencial. São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 1, 2012. p 702.

[5] FILHO, Juraci Mourão Lopes. Os Precedentes Judiciais no Constitucionalismo Brasileiro Contemporâneo. Salvador: Editora JusPodivm, 2014, p.281.

[6] MACÊDO, Lucas Buril. Precedentes Judiciais e o direito processual civil. Salvador: Editora JusPodivm, 2014, p.109.

[7] Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: RT, 2010, p. 480.

[8] Cf. STRECK, Lenio Luiz. ABBOUD, Georges. O Que É Isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes?. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

[9] Cf. GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e os princípios. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014, pp. 47/49.


 

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