UMA ANÁLISE EMOTIVA E CORRETA SOBRE UM FILME QUE ESTÁ INCOMODANDO O SISTEMA POLÍTICO ATUAL

16/11/2021

O texto abaixo é de autoria de LARISSA VARGAS. Gostei tanto que decidi publicá-lo nesta minha coluna do Site Empório do Direito.

Texto honesto, sincero e carregado de emoção. Comungo com ele.

Afranio Silva Jardim

“Finalmente, depois de quase 2 anos, voltei a uma sala de cinema pra ver Mariguella. 

O filme é primoroso. Uma montagem de áudio como não se costuma ver em filmes brasileiros, um roteiro poético e dinâmico. Atrizes e atores incríveis (faz toda diferença ver um filme com bons atores), fotografia e direção de arte maravilhosas, enfim, “filmaço”.

Mas o coração fica saindo pela boca por causa do imenso respeito do filme com nosso passado recente.

Wagner Moura foi brilhante no uso da estética brechtiana, no distanciamento crítico. Primeiro, porque Bertolt Brecht foi um alemão comunista que revolucionou o método de teatro clássico pra fazer do teatro um instrumento de transformação social.

Aqui, no Brasil, o teatro brechtiano influenciou muito artistas como Augusto Boal, Chico Buarque e, no cinema, todo o trabalho de Glauber Rocha. Ver Marighella homenageando tanta gente importante da história de arte e resistência é de uma beleza incomensurável.

Mais bonito ainda foi ver minha filha de 18 anos perder a fala. No meu tempo de adolescente, a gente chegava na militância pelo movimento secundarista. Era um movimento cheio de problemas e vícios, mas nos aproximava da vida política. Na militância estudantil, eu ouvia as histórias de resistência da ditadura e era tudo muito real pra mim.

Minha filha pertence a uma geração desconectada da noção de mobilização social. Ela nasceu em 2003, ano da esperança e, mesmo tendo uma boa leitura dos acontecimentos, Bia nunca tinha entendido a dimensão emocional da pobreza, da subjugação, da manipulação, da tortura e, por isso, não tinha a dimensão emocional da luta. Vi minha filha em silêncio por todo o caminho de retorno pra casa, com os olhos inchados.

Me dei conta de que essa experiência de nos situar noutro tempo para entender este tempo é tão urgente! As pessoas dizem que o brasileiro não tem memória. Eu acho que os brasileiros, assim como outros povos oprimidos pelo colonialismo, nunca conheceram a versão verdadeira da própria história, então, têm uma memória falha, construída de forma desonesta.

Estamos há séculos sendo cozidos vivos, feito rãs, morrendo lentamente, desvinculados do mundo, achando que a panela é o pântano. Há, obviamente, uma cena que tenta representar o horror da tortura, no filme. A cena nem representa fielmente a duração do sadismo, nem representa muitas técnicas, não mostra como eram as torturas em mulheres e crianças.

Foi feita uma escolha ética na forma de lidar com a coisa toda, entretanto, eu precisei de me controlar muito para não me retorcer na cadeira ou sair rasgando os papéis de parede, destruindo os lustres e incitando as pessoas a tocarem fogo em tudo.

Em alguns momentos do filme, mesmo com as técnicas de distanciamento, você lembra que é rã e deseja, desesperadamente, sair da panela.

Como ocorreu na década de 60, hoje ainda, há pessoas demais cansadas, falando com as paredes, morrendo em nome de uma revolução popular que não pode acontecer sem que haja povo. Onde estamos nós senão completamente perdidos de nós mesmos, tentando montar o quebra cabeça que é a verdade sobre nosso lugar dentro deste país?

O fascismo de Bolsonaro, com todos os seus  requintes de crueldade, tem se refinado em termos de método, mas ganha força na mesma vulnerabilidade de sempre: nossa inabilidade, enquanto povo, de nos percebermos protagonistas da história.

Gratidão ao cinema que me faz pertencer e querer transformar.

E, jamais esquecer os nomes daqueles que meteram os pés nas portas para que a democracia pudesse entrar, mesmo tendo sido expulsa de novo.

O filme terminou com gritos de #ForaBolsonaro  e aplausos emocionados. Não estamos sozinhos”.

 

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