Coluna Vozes-Mulheres / Cooordenadora Paola Dumont
Quando eu soltar a minha voz por favor entenda
Que palavra por palavra eis aqui uma pessoa se entregando
Coração na boca, peito aberto, vou sangrando
São as lutas dessa nossa vida que eu estou cantando
Quando eu abrir minha garganta essa força tanta
Tudo que você ouvir, esteja certa que estarei vivendo
Veja o brilho nos meus olhos e o tremor nas minhas mãos
E o meu corpo tão suado, transbordando toda raça e emoção
E se eu chorar e o sal molhar o meu sorriso
Não se espante, cante
Que o teu canto é minha força pra cantar
Quando eu soltar a minha voz por favor entenda
É apenas o meu jeito de viver
O que é amar
Hoje não quero vos falar, meus caros leitores, das coisas que aprendi nos livros. Porque vivemos em tempos de delírio das experiências e das coisas reais. Viver é melhor que sonhar? Não sei. Mas sei que isso é somente um texto-canção e que ao vivo a vida certamente é diferente, quero dizer, ao vivo é muito pior.
Será que nunca faremos senão confirmar a incompetência da América (católica?) que sempre precisará de ridículos tiranos? Será que foi tudo até agora em vão, que veremos o futuro repetir o passado? Que nossa existência se dá num museu de grandes novidades? Que ainda somos os mesmos e voltaremos a viver como nossos pais?
[O erro da ditadura foi torturar e não matar]
As instituições estão todas funcionando a pleno vapor (nem uma rima, nem uma solução). Confiamos na lei e no procedimento que tudo (con)valida. Caras camisas verde-e-amarelas. Ah, a democracia! Le creusets na janela. A democracia! Lá vem o pato, pata aqui, pata acolá. Por um Brasil livre! É fora, é fora, é fora, é fora da lei, é fora do ar. Fora ela!
[Pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra]
E nas instituições os homens continuam exercendo os seus podres poderes.
A voz foi infiel, nós continuamos caminhando contra o vento, cantando, seguindo nossas canções. A vida continua, apesar dos pesares, apesar de você (-sabe-quem). A vida sim, os direitos trabalhistas, nem tanto. A vida continua e tem que ser longa se quiser se aposentar. A vida segue, a barriga vazia, a panela vazia, as celas cheias, seguem as vozes sem dono, apenas mais uma página infeliz da nossa história, quem estranha?
Roda o mundo, roda o moinho e a roda viva quer fazer rodar a história. Mais uma vez, os homens e seus podres poderes. A gente vai contra a corrente, o samba, a viola, será que é tudo ilusão passageira? O discurso se repete. Tem que bater, tem que matar. A letra é recente, a demanda é antiga. Medo dos negros torsos, medo de um rapaz latino americano que veio lá do sertão e nos sonhos que foi sonhando voou num limite improvável (quiçá indevido). Oi, girando e a rosa, é vermelha! Oi girando, girando, é vermelha! [Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria!]
(E se definitivamente a sociedade só te tem desprezo e horror e mesmo nas galeras és nocivo, és um estorvo, és um tumor. A lei fecha o livro, te pregam na cruz, depois chamam os urubus).
A vida segue, a gente vai levando, e eu, que não estou interessada em nenhuma teoria, venho te contar coisas que podem não te agradar. Um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha. Um rapaz delicado e alegre que canta e requebra [melhor morto que homossexual]. Um bêbado trajando luto [vagabundo vai ter que trabalhar]. Carcará é malvado, é valentão: olha o arrastão entrando no mar sem fim. Como beber dessa bebida amarga, como tragar essa dor? Pois acostumem-se, meus caros amigos, o vinho tinto de sangue já escorre sobre nós. Na terra do samba, a coisa tá preta. As rosas não falam, Marielle também não. Morreu na contramão atrapalhando o sábado.
Na terra de Caymmi, na semana passada, no domingo de tarde, ele saiu apressado. Mas não foi pra Ribeira, como de costume, tomar sorvete e jogar capoeira: tá lá o corpo estendido no chão. Mestre Moa tomba morto, imolado, pelas mãos do opressor. Nossa história sangra junto: somos mil, somos milhões.
Um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha. Um rapaz delicado e alegre que canta e requebra. O ódio. [Será uma limpeza nunca vista na história do Brasil]. Filha do medo, a raiva é mãe da covardia. Quem se importa? A dor da gente não sai no jornal. A carne negra é a mais barata do mercado. Mulher de verdade era Amélia, sem vaidades. Geni é feita pra apanhar, é boa de cuspir. Não, Elza, se Deus fosse mãe, teria mais piedade de nós.
Dizem que as instituições estão fortes e atuantes como sempre – homens em seus podres poderes [verão uma polícia civil e militar, com retaguarda jurídica, para fazer valer a lei no lombo de vocês]. Já nós seguimos caminhando contra o vento, na corda bamba de sombrinha, medo que anda por dentro do coração, tudo como o diabo gosta. Mas, onde impõem o medo, descobrimos a coragem. Onde querem silêncio, somos quem grita. Onde querem um sim, nós ele não.
E fica o dito e redito por não dito. Ante o avesso da racionalidade e a disputa por sentidos, qualquer verdade pode ser inventada [sem mentiras, sem fake news, sem Folha de S. Paulo]. Talvez essa costura de retalhos do passado e do presente possa expor o absurdo da situação atual: ter que dizer o óbvio; ter que gritar o óbvio; ter que lutar pelo óbvio; ter que morrer pelo óbvio.
Seguimos com nossas vozes (e quantas vozes-mulheres!), com nossos corpos insurgentes e insubmissos ocupando espaços que não nos são destinados. Seguimos lutando e construindo novas possibilidades. Seguimos usando as armas mais poderosas: a compreensão, os afetos, a empatia, diálogo e entendimento. Conhecimento, discernimento e engajamento, tríade imbatível e urgente. Seguimos dizendo o direito de poder dizer. Sem artifícios, como os que ora me socorrem. Sem represálias. Sem violência.
Com Belchior comecei, com Belchior termino:
A voz resiste. A fala insiste: Você me ouvirá
A voz resiste. A fala insiste: Quem viver verá
P.s: Seguem links para acessar as playlists com todas as músicas que serviram de base para este texto.
Spotify:https://open.spotify.com/user/22zfgk3l2ffst6xpohboazgpi/playlist/6ignYwfln1Q702COPWjTas?si=sNoKkGDDRq28rVMjudBZJQ
Youtube:https://www.youtube.com/playlist?list=PL9n6RoY0_hxxVjM0RGxVb7T_cWpcAlI0r
P.s.s: A playlist do Spotify não contém a canção “Mestre Moa do Katendê”, de autoria de Sandra Simões, Gabriel Povoas e Alfredo Moura e interpretada por Caetano Veloso. A música pode ser acessada em:
https://www.youtube.com/watch?v=CZSkDLC0njg&list=PL9n6RoY0_hxxVjM0RGxVb7T_cWpcAlI0r&index=31&t=0s
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