Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
Inspirada pela escrita de meu colega de mestrado, Guilherme Machado Siqueira, “De uma pretensa defesa do consumidor à estigmatização da pobreza: observações iniciais de um episódio televisivo” para esta coluna, quero compartilhar o que me aconteceu enquanto passava rapidamente pelos canais de televisão abertos.
Escrevo desde Porto Alegre, em poucos dias a capital gaúcha irá completar um mês desde a decretação de medidas para enfrentamento da Pandemia de Covid-19. As medidas adotadas pela capital do Rio Grande do Sul têm referência ao Regulamento Sanitário Internacional, texto acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, que cumpre atualizar uma série de revisões feitas em resoluções que versam, por exemplo, sobre a segurança mundial em saúde, o alerta e resposta frente a epidemias, todos com o objetivo de responder à necessidade de garantir a saúde pública mundial.
Neste regulamento estão conceituados o isolamento e a quarentena, que são as principais determinações ante à falta de testagem em massa da população, que é o caso brasileiro. Compreendidas como as mais eficientes, as medidas tratam, respectivamente, sobre a separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus; e sobre a restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus (BRASIL, 2020)
Assim, no dia 07 de abril, em casa, cumprindo as medidas, avançava os canais de televisão sem grandes pretensões, até que me deparei com a seguinte chamada: “precisamos acabar com a soltura de presos”. Meus olhos pararam mais influenciados por meus ouvidos. Entre gritos o apresentador dizia: “eu estou em contato com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para ter maiores informações sobre esses pedidos absurdos! ”. Tão logo, o apresentador transmitia áudios de diálogos entre advogados que tratavam não só da fundamentação de seus habeas corpus, mas também sobre os valores que cobravam de seus clientes.
O programa: Brasil Urgente AO VIVO. Espetáculo! No episódio o apresentador enfatizava que logo teria maiores informações sobre a identidade dos advogados, os quais acusava que por míseros dois mil reais liberavam criminosos nas ruas. “Estão liberando estupradores! ”. De início fiquei perplexa e sem saber o que sentia, até que meu tédio foi substituído por indignação e decidi assistir até o final. Por sorte, toda a gritaria do programa levou menos de vinte minutos. Após muitas críticas aos profissionais do direito, bem como muito pavor sobre a liberdade de “assassinos”, o fator de impacto era a Recomendação Nº 62, de 17 de março de 2020, editada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Obviamente que não esperava que no Brasil Urgente haveria qualquer informação sobre a realidade das recomendações do CNJ, os fins do programa não permitem.
Narro o episódio apenas para trazer à luz o debate o aprisionamento. Pensemos: Se sairão da prisão cometendo crimes, em meio à pandemia ou não, adianta prendê-los? No próprio Brasil Urgente a resposta, entrelinhas, é negativa. Afirmar reiteradamente que se saírem cometerão novos crimes é afirmar reiteradamente que a prisão não funciona.
É importante ressaltar que a referida recomendação do CNJ observa as diretrizes da OMS, do Ministério da Saúde e do Executivo Federal, na qual frisa a obrigação do Estado brasileiro de assegurar o atendimento de saúde para pessoas privadas de liberdade. Tal posicionamento faz luz ao respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, na Lei de Execução Penal, dentre outros dispositivos legais e compromissos internacionais. Ainda, o Conselho reitera as orientações específicas da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a "preparação, prevenção e controle do COVID-19 em prisões e outros locais de detenção”, já que a organização é referência enfrentamento da Pandemia.
Dentre as ações dos países no horizonte do sistema de justiça, a Recomendação foi divulgada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD- Brasil) e aclamada como boa prática para a Organização das Nações Unidas (ONU). Também foi aprovada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Com 16 artigos a Recomendação 62/2020 do CNJ trata sobre cinco pontos principais, são eles, a
redução do fluxo de ingresso no sistema prisional e socioeducativo; medidas de prevenção na realização de audiências judiciais nos fóruns; suspensão excepcional da audiência de custódia, mantida a análise de todas as prisões em flagrante realizadas; ação conjunta com os Executivos locais na elaboração de planos de contingência; e suporte aos planos de contingência deliberados pelas administrações penitenciárias dos estados em relação às visitas
No Rio Grande do Sul, após o posicionamento do CNJ e do Ministério da Justiça e Segurança Pública, houve a criação do Grupo Interinstitucional de Monitoramento das Ações de Prevenção e Mitigação dos efeitos do COVID-19. No mesmo sentido, a Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE) e a Secretaria da Administração Penitenciária (SEAPEN) emitiram Nota Técnica 01/2020 com orientações mais detalhadas a serem adotadas durante a Pandemia.
A análise dos documentos permite identificar um incremento nas restrições já vivenciadas nas instituições prisionais. O efeito é reverso. Na tentativa de evitar a contaminação e a propagação do vírus entre servidores públicos, pessoas privadas de liberdade, seus familiares, a fim de cuidar da saúde de todos que compõem o complexo sistema penitenciário, a recomendação do CNJ fez emergir com mais severidade a recusa do Estado em enfrentar os problemas sociais mais urgentes.
Começam a aparecer casos de Covid-19 dentro dos estabelecimentos prisionais e, para evitar que o contágio se alastre narram as notícias que os presos em isolamento dentro das prisões. Ante a disseminação, a última medida do Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), materializada no ofício n. 806/2020/GAB-DEPEN/DEPEN/MJ, foi a de propor o uso de contêineres para prover vagas temporárias e emergenciais para detentos que apresentem doença.
Se crises profundas são oportunidades de profundas mudanças, conforme nos ensina Angela Davis, questionemos mais e mais: quais vidas importam?
Notas e Referências
CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação 62º. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-ontent/uploads/2020/03/62Recomenda%C3%A7%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2020
DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018.
RIO GRANDE DO SUL (Estado). Decreto Nº 55.129, de 19 de março de 2020. Institui Gabinete de Crise para o Enfrentamento da Epidemia COVID-19, Conselho de Crise para o Enfrentamento da Epidemia COVID-19, Grupo Interinstitucional de Monitoramento das Ações de Prevenção e Mitigação dos efeitos do COVID-19 no Sistema Prisional do Estado do Rio Grande do Sul e Centro de Operação de Emergência - COVID 19 (COE COVID-19) do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: https://saude-admin.rs.gov.br/upload/arquivos/202003/20112207-decreto-55-129-20.pdf Acesso em: 10 de abr de 2020
RIO GRANDE DO SUL (Estado). Nota Técnica 01/2020. ORIENTAÇÕES PARA A PREVENÇÃO DO CONTÁGIO POR CORONAVIRUS – COVID-19. Disponível em: https://seapen.rs.gov.br/upload/arquivos/202003/16212923-leia-o-material-aqui.pdf Acesso em: 10 de abr de 2020b
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