Um ‘mundo’ jurídico onde a teoria não se aplica na prática - Por Thiago M. Minagé

27/01/2018

Caso percebam, de forma insistente, não só a academia [professores de direito] como também, uma pequena parcela dos juristas, me referindo apenas aos comprometidos com o estudo do direito, está alertando para o rumo autoritário que os processos criminais jurisdicionalizados [prática forense] vêm tomando um rumo e proporção assustadores, tendo em vista a perigosa relação entre autoritarismo [por parte dos detentores do exercício do poder] com direitos e garantias constitucionais [previstos em lei a na própria Constituição]. 

Sempre tive uma concepção sobre o ‘ditado’ popular, que diz: a teoria não se aplica na prática. De fato, os adeptos dessa ideia, não possuem qualquer conhecimento técnico e teórico, ou, possuem conhecimento, porém, atuam de forma maldosa e cruel, fazendo valer a foça da arbitrariedade acobertada e legitimada pelo exercício da função pública, e pior, a situação se perfaz de forma, mais gravosa, quando inserida e um contexto que não preza pelo cuidado de que cada caso é um caso, perdendo-se assim em heurísticas e vieses que funcionam como armadilhas de sentido responsáveis pelo erro cognitivo[1].

Particularmente, no exercício da advocacia, tenho enfrentado afrontas [fatos que não há mais como suportar calado] da seguinte forma: Dr. o sr. Não está em sala de aula, seja prático [...] Dr. o sr. É muito teórico, não funciona aqui [...] Advogados e suas ilusões teóricas [...] Dr. isso aqui é o mundo real não o da sala de aula [..]. etc etc e etc.

Sem qualquer pretensão em chorar lamúrias ou algo similar, e ainda, sem entrar no mérito do desrespeito que tais situações caracterizam, passo a analisar algumas ideias teóricas [teorias] frente a alguns atos práticos [decisões]. Uma por vez.

Começando com uma decisão de recebimento de uma denúncia e decretação de prisão preventiva com o seguinte teor: 

DENÚNCIA – PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS – RECEBIMENTO.

Ao exame dos autos, verifico que a denuncia de fls ____ foi elaborada em conformidade com o disposto artigo 41 do Código de Processo Penal, tendo em vista que descreveu de forma circunstanciada os fatos imputados aos acusados, classificou-os juridicamente, qualificou os acusados e arrolou testemunhas. Ressalto, em atenção ao comando do art. 395 do Código de Processo Penal, que não está configurada qualquer das hipóteses de rejeição liminar da denúncia.

Desse modo a denúncia deve ser recebida.

[...]

PRISÃO PREVENTIVA – REQUISITOS LEGAIS CONFIGURADOS – DECRETAÇÃO.

[...transcrições de depoimentos em sede policial...]

A natureza cautelar de determinada medida processual revela que a providência é vocacionada a tutelara a efetividade de pronunciamento jurisdicional futuro. As medidas cautelares visam a garantir a própria eficácia do processo, o que evidencia o seu caráter nitidamente instrumental.

Contudo, embora a garantia da ordem publica seja, nos termos do artigo 312 do Código de Processo Penal, fundamento suficiente para decretação da prisão cautelar – insto é, de natureza processual, não decorre de sentença condenatória transitada em julgado -, tem inequívoca função metaprocessual. Em outras palavras, a garantia de ordem publica legitima a prisão de investigado ou acusado para assegurar não o pronunciamento jurisdicional futuro, mas para acautelar o meio social, aspecto extrínseco ao processo mas de inegável relevância jurídica.  

Recentemente escrevi um artigo cujo título era O FIM DA ‘ERA’ DO LIVRE CONVENCIMENTO E O NOVO PROTAGONISMO PROCESSUAL PENAL [ver aqui]. Ao ler o texto [teoria] e a decisão de Recebimento da Denúncia [prática] fica nítida a forma desprezível e o horror que se transforma uma atuação prática despida de conteúdo teórico. Vejamos parte do artigo:  O impetrante alegou, mais uma vez, constrangimento ilegal, tendo em vista a ausência de qualquer requisito previsto no artigo 312 do CPP, bem como, decisão padronizada e com termos genéricos, servindo a todo e qualquer acusado de tráfico de entorpecentes. Pleiteou liminarmente a superação da súmula 691 do STF e a expedição do alvará de soltura do réu.

Destaca-se, rapidamente, que a súmula 691 do STF, possui a seguinte redação: “Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar.” Todavia, esse entendimento tem sido abrandado pela Corte em casos excepcionais, em que o provimento da medida cautelar é necessário para evitar hipóteses de constrangimento ilegal.

O Ministro Gilmar Mendes, relator do presente processo, entendeu caracterizada situação apta a afastar a súmula 691, já que não basta ao magistrado uma explicitação do texto previsto no diploma processual para se decretar uma prisão cautelar preventiva. O aspecto abstrato, segundo ele, deve ceder ao aspecto concreto da análise. De acordo com suas próprias palavras: 

A decisão de primeira instância, que converteu o flagrante em prisão preventiva, constitui mero formulário pré-formatado, um modelo contendo fórmulas vazias e desvinculadas de qualquer base empírica. Cingiu-se a apontar a presença dos pressupostos da custódia cautelar, discorrendo acerca dos malefícios que o tráfico de drogas traz à sociedade. 

Mais à frente, continuou o Ministro:  

Tanto é evidente se tratar de modelo pré-pronto que, ao proferir a decisão ora sob comento, o magistrado de origem nem ao menos adaptou ao caso concreto o gênero dos substantivos e flexões gramaticais constantes do texto. 

Tendo em vista todo o exposto, foi deferido o pedido liminar, sendo expedido alvará de soltura em benefício do réu. Ora, no caso apresentado torna-se claro o total desrespeito às normas processuais, causando grave afronta às garantias constitucionais e, principalmente, ao estado de inocência. Além disso, o artigo 283 do código de processo penal ressalta a necessidade de fundamentação das decisões que decretam prisões provisórias. Além disso, trata-se de garantia constitucional prevista no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal de 1988.

No que concerne à fundamentação do decreto de prisão preventiva, a Corte Interamericana de Direitos Humanos também possui diversos precedentes. No caso conhecido como López Álvares vs Honduras a corte rechaçou fundamentações genéricas quando a liberdade individual está em jogo .

A Corte asseverou que fundamentações genéricas como: características do autor, gravidade do delito e cópias das informações constantes no inquérito policial não são idôneas o suficiente a ponto de basear um decreto de prisão provisória. 

O artigo 7 da Convenção Americana dispõe que: 

1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais.

2. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas constituições políticas dos Estados Partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas.

3. Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários.

4. Toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da sua detenção e notificada, sem demora, da acusação ou acusações formuladas contra ela.

5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.

6.Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura se a prisão ou a detenção forem ilegais. Nos Estados Partes cujas leis preveem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa. 

A Corte tem indicado que a proteção da liberdade protege tanto a liberdade física das pessoas, como sua segurança pessoal, em uma situação em que a ausência de garantias pode subverter a regra de direito e privar os detidos de proteção legal. O artigo 7.2 da Convenção estabelece as condições materiais e formais para a privação da liberdade. O artigo 84 da Constituição Política vigente, quando o senhor Alfredo López Álvarez foi detido, estabelece que: 

Ninguém poderá ser preso ou detido, exceto em virtude de mandado escrito de autoridade competente, expedido com as formalidades legais e por motivo previamente estabelecido na Lei.

Apesar disso, o criminoso em flagrante pode ser preso por qualquer pessoa para o único efeito de entregá-lo à autoridade.

O preso ou detido deve ser informado no ato e com toda a clareza de seus direitos e dos fatos que lhe são acusados; e, além disso, a autoridade deve permitir-lhe comunicar sua detenção a um parente ou pessoa de sua escolha. 

Tal modelo de decisão pode resultar em inúmeras violações de direitos e garantias processuais, principalmente, pela falta de um procedimento em contraditório, publico e oral onde a atuação das partes [acusação e defesa] é elevada ao patamar de protagonistas no processo, deixando de lado a figura do juiz, para uma atuação coadjuvante, que cede espaço ao atuar dos interessados [Ministério Público e Defesa] que, necessariamente, passam a contribuir diretamente na construção da decisão a ser proferida [juiz]. Observem a limitação e maior controle da decisão judicial.

Explicando: Ao mantermos uma compreensão do Direto e, em especial, do Processo Penal, onde o Juiz é o principal ‘personagem’ em atuação no processo, estamos deferindo a este que, conforme sua vontade, possa decidir como bem entender, possibilitando um aspecto subjetivo do magistrado, que deságua em um verdadeiro solipsismo amplamente descrito e rechaçado pelos estudos do prof. Lenio Streck , que caminha no sentido de questionar todas as decisões que assim se apresentam, na intenção de desnudar o paradigma da consciência que ainda insiste em permitir que o direito seja aquilo que o intérprete [juiz, tribunal, etc.] diz.

Para encobrir essa filosofia da consciência, o professor aprofunda o estudo identificando que é utilizado um ativismo/protagonismo do juiz, tanto nos tribunais, quanto na própria doutrina, acobertando-se, assim, uma atitude subjetivista/discricionária dos juízes, que acabam por levar em consideração fatores midiáticos ou sociais [extra jurídicos], ou seja, frente à insuficiência do direito para responder ao litígio sob julgamento, aquele que aplica o direito [juiz] fica liberado a buscar respostas em argumentos de conveniência, costumes e justiça, que são, no fundo, questões morais pertencentes ao discurso prático geral.

Parece existir uma venda nos olhos daqueles que estudam [ou maldade deliberada] esse tema que encobre o que realmente está por detrás desse protagonismo judicial, eis que, caso percebam, nos últimos tempos, os alicerces da democracia representativa estão profundamente comprometidos. O que se deve questionar é: a justiça constitucional, através do exercício do poder dos juízes deve se sobrepor ao próprio direito? Pois, do contrário, direito será apenas aquilo que os tribunais dizem ser. Inclusive permitindo que o [s] próprio [s] Tribunal [is] reescreva [m] o texto constitucional.

O [mal] dito ‘principio do livre convencimento’ é um dos principais fomentadores desse protagonismo do juiz, tanto que, o código de processo civil de 1973 estabelecia no artigo 131 que “O juiz apreciará livremente a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento”, entretanto, no novo código de processo de 2015, foi retirada a expressão “livremente”, ou seja, não será livre a análise das provas, e sim, vinculada ao que as partes [Ministério Público e Defesa] apresentarem com uma real atuação na construção da decisão a ser proferida. De fato, o deslocamento do protagonismo ocorreu, agora, Ministério Público, Advogado e Defensor que devem protagonizar o acervo probatório que limitará a decisão que os afetarão.

Pois bem, analisando agora a parte da decisão comentada e sua escassa para não dizer total falta de fundamentação trago outro artigo escrito recentemente cujo título é O DESENVOLVIMENTO E A MANIPULAÇÃO DO SENSO COMUM NA COMPREENSÃO DO PROCESSO PENAL [ver aqui] que tento retratar bem o perigo que a influência da Teoria Geral do Processo reflete nos processos criminais. Segue parte do texto: Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, percebeu-se a necessidade de adequação a alguns conteúdos jurídicos, para que, necessariamente, se adequassem à concepção de estado democrático de direito, principalmente, quanto aos conteúdos normativos inerentes ao processo, uma vez que, a permanência no tratamento do processo como relação jurídica entre as partes e o juiz, o colocando como um instrumento da jurisdição, com o objetivo de realizar os escopos metajurídicos e a pacificação social, e consequente enfraquecimento das partes[2] [autor e réu], demonstrou-se equivocado[3]. Principalmente, por permitir o malsinado solipsismo judicial, admitindo que o juiz seja o único intérprete no processo, podendo fundamentar sua decisão em argumentos metajurídicos, inclusive, alheios a preceitos constitucionais, sobretudo, pela falta de instrumentos de contenção e controle em relação às decisões judiciais[4].

Necessário abandonar a ideia da teoria geral do processo instrumental, retirando o juiz do lugar de protagonista do processo, deixando para as partes [acusação e defesa] a principal função, para tanto, compreender a origem do processo, constatar o uso de premissas equivocadas [processo civil] que demonstra um equivoco metodológico, deságua no uso do poder arbitrário. Superar esse tema [TGP] se faz como premissa básica para democratização do processo penal e um passo para sua humanização, da forma que está, inegavelmente, muitos sofrerão e morrerão em decorrência do estrago de sua aplicação.

Desde a origem dos estudos sobre processo, a ideia pelo ângulo privado, como se contrato fosse, foi uma das primeiras formas de análise do tema no direito romano, o processo dependia de prévia autorização ou manifestação de vontade das partes envolvidas: legis actiones e per formulas, quando as partes dirigiam-se perante o pretor, que fixava os limites do objeto que deveria ser solucionado, acatando, posteriormente, a decisão que fosse tomada, a litis contestatio[5].

Naquele contexto, não existia a figura do estado, propriamente dito, atuando de forma impositiva frente aos particulares. Talvez, por isso, por falta de instrumentos jurídicos coativos cabíveis, o processo nesse período era despido de força coercitiva legal para fazer valer a decisão do pretor[6]. Com o passar do tempo, críticas surgiram e passou-se a entender o processo como um ‘quase contrato’, ou seja, embora semelhante a um contrato, não possuía natureza contratual pura[7].

Essa compreensão privatística – processo enquanto negociação entre as partes interessadas e não como exercício do poder estatal -, partia de uma premissa básica, que era focada apenas na ideia de direito do ofendido como faculdade de iniciativa do interessado no processo, como se quem provocasse a instauração do processo, por si só, determinasse a sua natureza.

Nesse período, o processo era tido como mero ritual procedimental para aplicação do direito material violado, ou seja, a relação privada, agora litigiosa, dava origem à prática de uma sequência de atos, visão que até hoje, ainda explica, e muito, a lógica processual civil.

Com o passar do tempo, ocorreu o que se denomina de publicização do direito processual, pois, o poder de julgar do estado, passou a exteriorizar-se pela função de solucionar litígios. Abandonou-se a ideia de identificação do processo pelas partes interessadas e, passou para uma compreensão baseada no exercício do poder de imposição da decisão final[8].

A publicização fez cair por terra a ideia de que o processo serve para aplicação do direito material violado, fruto da teoria concreta do direito de ação, consequentemente, perdeu força a respectiva visão privatística contratual de processo, tendo o direito material como pressuposto para exercício da ação e início do processo, anteriormente utilizada. O estudo das teorias da ação permitiu uma abertura ideológica e de compreensão do processo, agora como instrumento de direito público e exercício do poder estatal. 

Cabe observar que, a ação, embora busque do judiciário [em alguma medida] a efetivação do direito material, dirige-se frente ao Estado, dele exigindo a solução do conflito ou do caso apresentado, logo, embora o processo seja instaurado mediante uma divergência em âmbito de direito material, invoca-se a atuação do estado para que o exercício de seu poder jurisdicional resolva o conflito ou caso, sendo aqui, o principal fundamento que permitiu a afirmativa de que o processo se tornou autônomo e de natureza pública[9], por ser o exercício do poder estatal.

Assim, conforme o estudo da época, exercida a ação e iniciado o processo, formam-se vínculos jurídicos entre as partes e o estado instituindo poderes, direitos, faculdades, deveres, obrigações e sujeições, caracterizando verdadeira relação processual, onde o juiz antes de julgar um pedido de aplicação da lei, deve verificar a pertinência e veracidade das alegações[10].

A lógica processual penal, por conta de seu objeto de análise, deve sofrer um deslocamento de premissa compreensiva para, só então, se efetuar uma leitura adequada e compatível com sua finalidade. Faz tempo que se discute acerca da finalidade do processo penal, porém, enfrenta-se, sistematicamente, manuais de direito processual penal que dedicam apenas algumas páginas para o tratamento desse tema, que de regra, inicia-se pela apresentação dos escopos da jurisdição para, em seguida, atribuir os mesmos fins ao processo, ou seja, os fins da jurisdição acabam sendo os mesmos do processo, visto que, este é instrumento da atuação daquele[11].

Ao se falar sobre o processo penal, de forma específica, não está se tratando de qualquer tipo de processo, está-se falando de um método de definição da responsabilidade penal, que deve partir de uma perspectiva analítica de forma a identificar e considerar não apenas seu objeto específico como, também, sua função e finalidade[12].

A falta de precisão compreensiva do processo penal acaba por ser uma ferramenta que sempre favorece a discricionariedade judicante e, desta forma, o arbítrio estatal, trazendo sérios prejuízos a toda sociedade, envolvidos e, principalmente ao acusado[13]. Fruto de conceitos indeterminados, como tantos outros, dos quais está repleta a legislação processual penal, encontrando referencial semântico naquilo que entender o julgador. Quando não há forma precisa, não existe garantia e segurança ao acusado e, por consequência, não existe devido processo legal[14]. Forma é garantia.

Embora traçada para uma teoria geral do processo, a concepção sobre os escopos do processo, que o próprio Rangel Dinamarco[15] reconhece como fins ideais delineados, por ora, definidos como social, político e jurídico, foram fundamentais para se iniciar a compreensão do tema. Isso porque, para ele, o processo tem como fim, em síntese, o escopo social, cuja finalidade seria pacificar a sociedade através da realização da justiça e, mediante a utilização de critérios justos de segurança jurídica, conscientizando a população de seus direitos e obrigações. Como escopo político, o processo serve para reafirmar o poder estatal de decidir de forma imperativa, assegurar o culto ao valor liberdade e assegurar a participação dos cidadãos nos destinos da sociedade política e, como escopo jurídico, aplicar a lei ao caso concreto[16].

Assim, a partir de uma visão mais antiga de sistema jurídico, quando se tinha como seu ponto central a ação, o direito de ação, entendia-se que o fim do processo, em especial do civil, era a tutela de direitos[17]. Naquele contexto, não é difícil concluir que o processo civil e penal servia apenas para a obtenção de uma sentença com força de caso julgado, sendo o principal objetivo jurisdicional.

Inevitável, a conclusão de que esta ideia apresenta-se, totalmente, imprestável à concepção atual da jurisdição e do processo, ou seja, embora seu estudo parta da impossível ideia de uma teoria geral do processo [conforme já delineado acima], também, no processo penal a jurisdição serve à tutela de direitos individuais do acusado, visto que, a possibilidade de violação dos mesmos é grande e, para tanto, não se pode ficar apenas com o conceito de proteção aos direitos considerados abstratamente[18]. Logo, poupe-me dos ‘argumentos’ vazios, do tipo: quem protege os direitos das vítimas? Da família da vítima? Da sociedade? Etc... etc... etc...

Voltando às finalidades do processo, é necessário destacar que, a ‘realização da justiça’ esbarra no terceiro intuito do processo, qual seja: a segurança jurídica[19]. Evidentemente, pelo discurso do senso comum, que nada mais é, que, o uso de uma linguagem natural, de senso comum, desenvolvida para entender de forma facilitada o que é complexo e consequentemente manipular o comportamento do outro para mostrar que a justiça deve sempre prevalecer, mas isso, às vezes, não ocorre, justamente, por conta da segurança jurídica que não passa de uma retórica despida de efetividade prática na garantia de direitos.

Na medida em que se sustenta uma relação mútua, de complementariedade funcional, entre o direito penal e o direito processual penal, admitindo que serem partes de uma mesma unidade[20], não se pode desconsiderar que se tem um direito penal autoritário e extremamente punitivo, logo, como decorrência lógica e indispensável, necessário um processo penal que o acompanhe[21], por isso, não é absurdo afirmar que, se o direito penal é conduzido de forma desajustada dos valores constitucionais, inevitavelmente, assim também será o direito processual penal[22]. Eis a discrepância no tratamento dos institutos e o principal empecilho para a democratização do processo penal.

Com efeito, o que se observa na realidade atual é que cresce a criminalização de condutas, aumenta-se o patamar de imposição das penas e criam-se novos regimes para o seu cumprimento[23] [além de se criar novas formas de cumprimento, meio à la carte]. Vale dizer, aumenta-se o rigor de algumas leis penais que, por sua vez, adaptam-se com facilidade ao vigente código de processo penal - o qual, desde sua origem mantém uma condição autoritária -, como exigência de um neopunitivismo penal[24], tendo em vista que, o direito penal, historicamente, sempre perseguiu os etiquetados.

Desse modo, o movimento sentido nos últimos anos de expansão do direito penal, até sua vertente mais cruel do direito penal do inimigo é sentida, sem dúvidas, na legislação processual penal, em um verdadeiro processo penal do inimigo[25], no percurso natural verificado na esfera criminal, hoje dominada por um simbolismo que traça um verdadeiro colapso do processo penal que, por sua vez, não dá conta do excesso de demanda.

Com uma aparente contradição, percebe-se o investimento em um abrandamento do poder punitivo do Estado, para determinadas condutas às quais não mais se aplicam penas privativas de liberdade[26] e, ainda, de forma simultânea criam-se formas discutíveis de eliminação de processos penais, a exemplo, da composição civil dos danos na ação penal pública; a transação penal na lei dos juizados especiais criminais e a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo e agora a famosa e aplaudida colaboração premiada[27].

Tenta-se aqui mostrar a necessidade da aceitação da importância fundamental do processo dentro de todo o sistema de política criminal em vigor. Isso porque, a colocação da matéria penal dentro da sistemática processual penal é estratégica e, o modo como aquela se organiza influi decisivamente na configuração da política criminal e na sua formulação[28].

Importante firmar o entendimento de que o processo é um dispositivo articulador de elementos de várias ordens, cujas modalidades de interação são regulares e, ainda, previsíveis[29] sendo que, no processo penal, forma é ‘garantia e limite de poder’, pois, aqui, se exerce o poder de punir em detrimento da liberdade. É um poder limitado e condicionado, que precisa legitimar-se pelo respeito às regras do jogo. Logo, não se deve importar a tal ‘instrumentalidade das formas’ e ‘informalismo processual’, pois, aqui o fenômeno é completamente diferente[30].

Entendam que o processo penal é limite do exercício do poder estatal como garantidor de direitos individuais nele debatido.

Tratar o processo penal como um instrumento de prevenção da prática delitiva afeta diretamente sua finalidade, ou seja, quando a ideia utilitarista preventiva sobrepõe-se aos direitos individuais do investigado ou processado, permite-se a antecipação dos ideais retribucionistas da pena, por exemplo, o uso da prisão cautelar, com base em análises pessoais do tipo: periculosidade, capacidade para delinquir, como se estivesse castigando um suspeito ou acusado. Dessa forma, a pena e seus preceitos se tornam um meio e não um fim do processo penal[31].

Definitivamente, ao expor a real finalidade do processo, como se estivesse despindo o processo penal de sua maquiagem, não mais se devem mascarar ideologicamente os objetivos de um processo penal, para utilizar analogicamente os argumentos dados à finalidade da pena. Desse modo, deve-se utilizar da razão para limitar e, não justificar ou idealizar a atuação do poder punitivo, ainda, quanto ao processo penal, deve funcionar, assim como o direito penal, como limitador do poder punitivo do Estado e garantia dos direitos individuais, certo de que, o que necessita de legitimação é o poder de punir do estado, é a intervenção estatal e não a liberdade individual[32].

Necessário entender que o papel do juiz como centralidade do processo e a relação jurídica entre o sujeito ativo e o sujeito passivo, no processo, foram importados ao instrumentalismo processual, portanto, as críticas também se estendem ao próprio instrumentalismo, já que não se poderia pensar em um efetivo contraditório, eis que, pela instrumentalidade, a ideia de contraditório não se fundamenta na simetria de igualdade das partes (um direito de imposição e outra parte submissão). Logo, o entendimento do processo como instrumento da jurisdição condiz com o Estado Social, que tem como objetivo precípuo reforçar o papel dos juízes e enfraquecer a atuação das partes e, consequentemente, não encontra amparo em um estado democrático de direito[33].

Quando se sustenta que a legalidade democrática, deve ser cumprida, ou seja, o devido processo legal democrático constitucional, não se está discutindo aplicação da letra fria da lei, e sim o caráter normativo da Constituição Federal, e isso é ir contra não só a ativismos e decisionismos, como também contra protagonismos judiciais. Em um país onde a Constituição Federal prevê direitos fundamentais e sociais, mas que a modernidade é tardia e o cenário é complexo, será contingente o protagonismo do Direito, o que em hipótese alguma quer dizer que o protagonismo judicial seja aceito. O protagonismo judicial viola os pressupostos básicos da democracia. Em um processo, principalmente o penal, não podem haver protagonistas. Todos devem ser chamados ao debate, contraditório [re] surge como princípio estruturante do processo, o qual deve originar uma resposta devidamente fundamentada.

A compreensão do processo e do papel das partes e do juiz, no Estado Democrático de Direito, depende de revisitação crítica e reflexiva do liberalismo e da socialização processual, iniciando-se pelo abandono dos equívocos praticados nos respectivos modelos, para a busca de um sistema processual, democrático-constitucional, compreendendo que o papel a ser desempenhado pelas partes, através do contraditório, é fundamental e jamais será possível sem o amparo da publicidade e oralidade concomitantemente.

Assim, a primeira finalidade do processo penal é garantir os direitos inerentes a cada indivíduo submetido ao exercício do poder jurisdicional; prestando, ainda, em segundo plano, à limitação do exercício do mesmo poder; impondo respeito irrestrito às formas procedimentais estabelecidas, para então, proteger aqueles que devem e/ou serão absolvidos e, ainda, legitimando pelo procedimento correto a punição a ser imposta.

Por todo o exposto, partindo da premissa que não há pena sem processo, a presunção de inocência exerce uma função fundamental: de que toda investigação e processo criminal tem como ponto de partida a incerteza por ela inserida, qualquer ato de poder restritivo de direitos será legítimo apenas e tão somente, quando superada essa incerteza, viabilizando o conhecimento da infração penal e sua autoria, em um esquema lógico e jurídico, previamente definido, apto a apoiar a decisão proferida[34].

Prender e impor restrições de direitos de forma aleatória e sem fundamento para atender finalidade diversa do próprio processo penal viola, machuca e mata, mais que qualquer outra forma de agressão. O processo mata, entendam isso.

Para encerrar essa análise, talvez possa ser utópico pensar que os ocupantes de posições de exercício do poder queiram submeter suas autoridades [autoritarismo] à técnica teórica que os levaram ao cargo que ocupam. Por isso é necessário resistir. Todo autoritarismo esconde uma carência teórica.  

               

Notas e Referências:

[1] WOJCIECHOWSKI, Paola Bianchi: MORAIS DA ROSA, Alexandre. Como "cada caso é um caso" em tempos de Justiça quantitativa? https://www.conjur.com.br/2017-out-27/limite-penal-cada-tempos-justica-quantitativa

[2] NUNES, Dierle José Coelho. O princípio do contraditório. Boletim Técnico da Escola Superior de Advocacia da OAB/MG, Belo Horizonte, v.1, p. 39-55. jan./jun. 2004.

[3] STRECK. Lenio. Do pamprincipiologismo à concepção hipossuficiente de princípio. Dilemas da crise do direito. Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496574/000952675.pdf?sequence=1>. Acesso em: 01 mar. 2017.

[4] Ibidem.

[5] DA SILVA. Ovidio Baptista. Jurisdição e execução na tradição romana-canônica.

[6] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz; MITIDERO, Daniel. Curso de Processo Civil, v.I, 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 424. Esse compromisso ou litis contestatio foi qualificado pela doutrina como um negócio jurídico de direito privado ou como um contrato. O contrato era estabelecido pela litis contestatio. Por essa razão, atribui-se ao processo natureza contratual. Tratava-se de uma espécie de contrato judicial.

[7] Ibid., p 424.

[8] MARINONI, 2016, p 426. Portanto, o que se evidenciou, é que a solução dos conflitos depende da força do Estado, isto é, em relação à qual os litigantes estão submetidos. O processo não mais é um mero contrato ou um meio através do qual as partes, a partir da autonomia privada, exercem seus direitos. O processo é colocado pelo estado à disposição das partes, mas bem sabem elas que estão submetidas ao poder jurisdicional, dele não podendo escapar (imperatividade e definitividade da jurisdição).

[9] MARINONI, 2016, p 427.

[10] CHIOVENDA, 1936, p. 55.

[11] DINAMARCO, 2001, p. 180.

[12] PRADO, 2014, p.18-19.

[13] STRECK. Lenio. Do pamprincipiologismo à concepção hipossuficiente de princípio. Dilemas da crise do direito. Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496574/000952675.pdf?sequence=1>. Acesso em: 01 mar. 2017, p. 18. Sob qualquer tese, perspectiva ou bandeira teórica que se adotem, persiste um problema fulcral na metodologia (ou teoria) do Direito: o problema das condições da interpretação e da aplicação do Direito. Há fortes indicativos de que parcela  significativa dos juristas não se apercebeu do problema paradigmático envolvendo o giro ontológico-linguístico. Um dos pontos centrais está no “problema do esquema sujeito-objeto”, para o qual a comunidade jurídica não presta a devida atenção. É ali, no sujeito solipsista (Selbstsüchtiger), que reside o ponto de estofo que impede a superação da cisão entre  nterpretar e aplicar, assim como os diversos dualismos que, desde Platão, tornam os juristas reféns da dicotomia razão teórica–razão prática.

[13] Ibid.

[14] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 1158.

[15] DINAMARCO, 2001, p. 154.

[16] Ibid., p. 159-223.

[17] Ibid., p. 151.

[18] Ibid., p. 151.

[19] LOPES JR., 2017, p. 91. É necessário destacar que o direito material é um mundo dos entes irreais, vez que construídos à semelhança da matemática pura, enquanto o mundo do processo, como anteriormente mencionado, identifica-se com o mundo das realidades (concretização), pelo qual há um enfrentamento da ordem judicial com a ordem legal.

[20] MAIER, Julio B. J. Estado Constitucional de Derecho y procedimiento penal. In: Antología. El proceso penal contemporáneo. Lima: Palestra Editores, 2008, p. 904.

[21] MIRANDA COUTINHO. Jacinto Nelson de. O papel do pensamento economicista no direito criminal de hoje. In.: Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Freitas bastos, 2000, p. 75-84.

[22] MAIER, 2008, p. 905.

[23] Regime Disciplinar Diferenciado instituído pela Lei n. 10.792/03.

[24] PASTOR, Daniel. La deriva neopunitivista de organismos y activistas como causa del desprestigio actual de los derechos humanos. Nueva doctrina penal. Buenos Aires: Editores del Puerto, 20015 p. 73-1114.

[25] MALAN, Diogo Rudge. Processo penal do inimigo. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 59, p. 223-259, mar./abr., 2006. Diogo defende a existência de um processo penal do inimigo no Brasil, inserido pela lei 9.034/95.

[26] Ver Leis 9.099/95 e 9.714/98

[27] Ver Lei 10.684/2003, art. 9º.

[28] BINDER, Alberto M. Justicia penal y estado de derecho. 2. ed. Buenos Aires: Ad Hoc, 2004.

[29] MARTINS, 2010, p. 83.

[30] LOPES JR., 2017, pp. 78-80.

[31] FERRAJOLI, 2002, p. 297.

[32] LOPES JR., 2017, p. 31.

[33] Ibidem.

[34] PRADO, 2014, p. 19.

 

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