Um imposto de renda confiscatório, um leão implacável

19/01/2017

Por Charles M. Machado – 19/01/2017

Sem correção há mais de 1 ano e com sucessivos reajustes abaixo da inflação nos anos anteriores, a tabela do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (IRPF) passou a acumular no fechamento de 2016 uma defasagem de 83,12% desde 1996, segundo estudo realizado pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco Nacional).

O levantamento levou em consideração a estimativa de 30 de dezembro do boletim Focus do Banco Central para o fechamento do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), de 6,36%.

Como não houve reajuste da tabela para o ano-calendário de 2016, a defasagem acumulada no ano também ficou 6,36%, o que é a maior anual dos últimos 13 anos. Até o final de 2015, a defasagem acumulada desde 1996, ano do início da série do levantamento, estava em 72,2%, o que nos leva a uma série de reflexões.

Apesar da crise, os sucessivos recordes de arrecadação, não são suficientes para aplacar a sanha de um Estado perdulário, que perpetua um sistema tributário perverso e antiprodutivo onde o mal se aplica ao povo às enxurradas, e o bem, ora o bem se serve à conta gotas.

A não correção da tabela é um grande exemplo dessa insensibilidade, o contribuinte brasileiro é novamente marcado, por mais esse gesto de insensibilidade do governo, vejam a ironia, que não pretende corrigir a tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física, nem tampouco as deduções com educação, pelos índices que de fato mensurariam as perdas dos últimos anos.

Ao não corrigir a tabela, transforma-se o IRPF, em um tributo sobre a receita, e não sobre a renda, que é resultado do acréscimo patrimonial, ferindo-se a ferro a Magna Carta.

É de se destacar que a correção monetária, conforme assentado na Doutrina e Jurisprudência pátria, consiste, unicamente, em um instituto que tem por objetivo garantir a manutenção do poder aquisitivo da moeda, que é corroída pela inflação, logo visa a recompor valores minorados pelo desequilíbrio do sistema monetário, nada acrescentando, tão-somente preserva-se o valor da moeda aviltado pelo processo inflacionário. Destaque-se que o próprio Fisco corrobora tal argumentação na medida em que também se utiliza dessa técnica contábil para exigir tributos não recolhidos.

Ressaltamos que a aplicação da correção monetária não é um benefício fiscal, nem muito menos um obséquio do Poder Estatal para com os contribuintes, mas sim uma conduta necessária para que determinados valores se ajustem em relação ao poder de compra da moeda, desgastado pelos períodos inflacionários.

Logo se correção não é benefício, a não correção fere os dispositivos constitucionais que vedam o confisco e o enriquecimento ilícito por parte do Estado.

Ao não corrigir a tabela, bem com as deduções com educação, é condenar o povo à ignorância, é dar ao cidadão brasileiro um tratamento de vassalo, como se direitos pudessem ser usurpados, pela simples vontade do governante de plantão.

Quando não se permite a dedução de cursos de língua estrangeira, fecham-se as portas para a conquista do mercado mundial, pela mão de obra brasileira, pois se converte a busca do conhecimento em algo supérfluo.

O que chamamos é um absurdo é o fato de apresentar esse limite de isenção como se fosse benefício, se esquecendo que tal previsão já se encontra na Constituição Federal, quando permite a União a criação de um Imposto que tribute o acréscimo patrimonial, não somente a receita de cada pessoa, como vem ocorrendo.

Deve-se entender acréscimo patrimonial das pessoas físicas a parcela que após extraído o mínimo existencial implique em aumento do patrimônio mesmo que a pessoa tenha gasto essa diferença com bens supérfluos e não tenha feito nenhum investimento.

O problema passa a ser que até o momento, as demais deduções, tais como os gastos de educação, não são adequadas a realidade do mercado, as pessoas acabam pagando IR sobre o que não é aumento de patrimônio.

O conceito de renda estabelece seus pressupostos na Constituição da República de 1988, insculpidos, mais precisamente, no artigo 153, inciso III, onde os elementos que compõe a capacidade tributária ativa estabelecem os parâmetros macros da exação tributária, conforme dispõe o Prof. Paulo de Barros Carvalho (2009, p. 665):

Podemos dar por consente que, em todas as imposições tributárias, os alicerces da figura impositiva estarão plantados na Constituição da República, de onde se irradiam preceitos pelo corpo da legislação complementar e da legislação ordinária, crescendo em intensidade a expedição de regras em escalões de menor hierarquia.

Assim, vislumbra-se que a definição de renda, ainda segundo o doutrinador apontado acima, fora construída através da previsão em Lei Complementar, precisamente, no art. 43 e 44 do Código Tributário Nacional[1] - CTN, porém com arrimo em disposição expressa contida na Constituição Federal, donde provêm seus pressupostos, verificável no art. 153, III.

Nessa esteira, cumpre anotar a previsão da Lei nº. 5.172/66, in verbis:

Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:

I - de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;

II - de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.

A enunciação constante no dispositivo legal acima, urge pela definição de seus signos, a fim de compreendermos o alcance da norma jurídica. Posto isto, seguindo a “teoria do acréscimo patrimonial”, exposta por CARVALHO (2009, p. 671), a “renda seria todo ingresso líquido, em bens materiais, imateriais ou serviços avaliáveis em dinheiro, periódico, transitório ou acidental, de caráter oneroso ou gratuito, que importe um incremento líquido do patrimônio de determinado indivíduo, em certo período de tempo”.

Desta feita, a lei complementar e os demais regramentos infra legais devem respeitar o conceito de renda, conforme a delimitação semântica do termo, sedimentada em pressupostos constitucionais, dos quais podem ser auferidos os seguintes conteúdos, conforme leciona José Artur Lima Gonçalves: “(i) saldo positivo resultante do (ii) confronto entre (ii.a) certas entradas e (ii.b) certas saídas, ocorridas ao longo de um dado (iii) período” (GONÇALVES, 1997, p. 179).

Deve-se destacar que, apesar de o tributo ser comumente denominado de “imposto sobre a renda”, ele também o é sobre “proventos de qualquer natureza”, os quais, por exclusão, nos termos do Código Tributário Nacional[2], são “(...) os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior” (art. 43, II, do CTN), ou seja, acréscimos patrimoniais não compreendidos pelo conceito de renda.

Elucidativo, o mestre Ives Gandra da Silva Martins (2011, p. 477), aponta que “[...] as doações teriam natureza jurídica de proventos e não de renda, na medida em que não decorreriam de fruto do trabalho, do capital ou da conjunção de ambos”.

No mais, o acréscimo patrimonial definido acima, para fins de incidência do tributo em vértice deve ocorrer somente quando há sua disponibilidade econômica ou jurídica, nos termos do Regulamento do Imposto de Renda (RIR) – Decreto n. 3000, de 26 de março de 1999 –, in verbis:

“Art. 2º As pessoas físicas domiciliadas ou residentes no Brasil, titulares de disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou proventos de qualquer natureza, inclusive rendimentos e ganhos de capital, são contribuintes do imposto de renda, sem distinção da nacionalidade, sexo, idade, estado civil ou profissão (Lei nº 4.506, de 30 de novembro de 1964, art. 1º, Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, art. 43, e Lei nº 8.383, de 30 de dezembro de 1991, art. 4º).”

O que se conclui do exposto no diploma legal é que a enunciação da obrigação, com os contornos da regra matriz de incidência tributária, destacando-se o critério pessoal quanto à sujeição passiva, assim como o complemento do verbo “auferir” que compõe a materialidade da hipótese, qual seja, a renda.

Quanto aos princípios que norteiam a tributação pelo Imposto de Renda, a Constituição da República de 1988 é clara ao dispor em seu art. 153, §2, inciso I, que o imposto sobre a renda “será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade, na forma da lei”.

De início, em conformidade com o princípio da universalidade, a tributação do imposto deve recair sobre todas as rendas e proventos, seja sobre aquelas auferidas dentro do território nacional, como a obtida além dos limites deste, incorporando a sistemática de tributação da renda mundial.

Lembro que esta possibilidade gera a chamada base global do imposto sobre a renda, pela qual a renda obtida por qualquer pessoa física ou jurídica, independente do lugar de sua produção, fica sujeita à incidência do imposto, desde que o Brasil exercite sua soberania em tal lugar. Ademais, fica vedado a segregação da renda obtida para sua tributação através de critérios distintos, ou seja, o IR não é seletivo.

Quanto ao princípio da generalidade, determina-se a aplicação do imposto sobre todos os indivíduos. Este princípio seria desdobramento do princípio da igualdade sobre o imposto de renda, de forma simples e coesa traduz que o IR deve incidir e ser cobrado, tanto quanto possível, de todas as pessoas, ou seja encontrando-se nesta no critério pessoal da Regra Matriz Incidência Tributária, naturalmente que respeitado o princípio da capacidade contributiva.

Com relação ao princípio da progressividade, as alíquotas aplicadas serão majoradas em conformidade com a renda passível de tributação, ou seja, quanto maior a base de cálculo, entendido como aumento patrimonial, maior será a alíquota.

Com isso o Imposto de Renda, quando não é corrigido nas suas deduções e tabelas de incidência, acaba sendo um tributo sobre a renda e não sobre o ganho de capital, pois ele acaba distorcendo as variações patrimoniais, resultando em uma maior carga tributária, o que equivale a um aumento sem lei.

Ainda de acordo com os estudos do Sindifisco, se a tabela fosse corrigida pelos índices de inflação acumulados, a faixa de isenção para o Imposto de Renda em vigor teria de ser até R$ 3.460,50. Atualmente, os isentos são todos aqueles que possuem renda tributável mensal inferior a R$ 1.903,98, esse número por si só dá uma dimensão da distorção que a não correção da tabela proporciona, e ao mesmo tempo dimensiona o ganho arrecadatório pela não correção monetária.

Inicialmente a proposta de Orçamento para 2017 enviado ao Congresso previa reajuste de 5% na tabela do IRPF.

Não houve nenhuma correção na tabela do IR em 2016. Com isso, na prática, os brasileiros passaram a pagar mais imposto de renda.

A última atualização da tabela vigente foi feita em 2015, quando o governo promoveu um reajuste escalonado, com validade de abril em diante. A média da correção foi de 5,6%.

Junto abaixo a tabela e a respectiva defasagem, promovida pela não correção dos seus valores:

Tabela 1

Quando se atinge o mínimo existencial está sendo maculado através da imposição tributária sob os atuais valores da tabela do imposto de renda, pois, tal qual observado anteriormente os valores indicados na tabela não correspondem a real desvalorização da moeda pela inflação, haja vista que o Estado tributa o que deveria estar isento, ou sob alíquota mais favorável ao contribuinte.

Noutro norte, a prática inconstitucional adotada, fere o princípio da vedação ao confisco, cuja garantia e proteção está delineada na Constituição Federal de 1988, no artigo 150, inciso IV. Nesse sentido, vejamos a lição de KLAUS TIPKE e DOUGLAS YAMASHITA[14] (2002, p. 67):

[...] segundo TIPKE, a capacidade contributiva termina, de todo modo, onde começa o confisco, que leva à destruição da capacidade contributiva, ou se, de acordo com Rothmann, ‘e da análise da capacidade económica que resultará a determinação do limite que separa a tributação legítima do confisco inconstitucional’, e se o art. 150, IV, da Constituição Federal/1988 veda ‘à União, Estados, Distrito Federal e Municípios (...) utilizar tributo e não apenas imposto com efeito de confisco (...)’, logo, é impossível negarmos a eficácia negativa do princípio da capacidade contributiva para todos os tributos, inclusive contribuições sociais, contribuições de melhoria e taxas.

Desta feita, a não correção da tabela do imposto de renda segundo os índices reais de apuração da correção monetária pela inflação fere os direitos constitucionais dos contribuintes e suas garantias, haja vista que não há a preservação do mínimo existencial, para manutenção da dignidade da pessoa humana, segundo os limites da capacidade contributiva, circunstância que, consequentemente, traduz no confisco da renda essencial à sobrevivência do cidadão.


Charles M. MachadoCharles M. Machado é Professor nos Cursos de Extensão da ESPM, Escola Superior de Propaganda e Marketing, em Direito das Marcas e Direito do Intangível, é advogado formado pela UFSC, Universidade Federal de Santa Catarina, consultor jurídico no Brasil e no Exterior, nas áreas de Direito Tributário e Mercado de Capitais. Foi professor nos Cursos de Pós Graduação e Extensão no IBET, nas disciplinas de Tributação Internacional e Imposto de Renda. Pós Graduado em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Salamanca na Espanha, Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário e Membro da Associação Paulista de Estudos Tributários, onde também já foi  palestrante. Autor de Diversas Obras de Direito. Email: charles@charlesmachado.adv.com.br


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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