Um estatuto que não é da família

05/10/2015

Por Guilherme Wunsch - 05/10/2015

A comissão especial que discute o Estatuto da Família na Câmara dos Deputados aprovou, no dia 24 de setembro, o texto principal do Projeto de Lei 6.583/2013, que, dispõe sobre o Estatuto da Família e a define como a união entre homem e mulher. É lastimável que depois de todos os avanços conquistados a partir da Constituição Federal de 1988, que influenciaram diretamente no modo de ser família, aprova-se um texto construído com bases fundamentalistas e discriminatórias, que, em nada representam a realidade e anseios sociais, em um contexto pluralizado, onde diferentes arranjos familiares formam-se cotidianamente.

O Estatuto em tramitação, vincula o instituto da família, ao Código Civil de 1916 impregnado de determinados preceitos morais, em vista da manutenção patriarcal da família, onde ao marido cabia exercer o papel de chefe da sociedade conjugal, cuja tarefa era administrar os bens particulares da mulher, fixando o domicílio da família, bem como autorizar a profissão da esposa. Ou seja, nada mais do que a elevação do papel do homem na direção da sociedade conjugal.

Pode-se dizer que Código de 1916 firmava um tom patrimonialista, onde a realização humana dava-se através da propriedade. Não havia igualdade entre os cônjuges e entre os membros como um todo, afinal, os atuais princípios que vedam, por exemplo, a discriminação entre filhos legítimos e ilegítimos não estavam presentes no contexto social estruturado nesta época.

É de se destacar que o antigo diploma civil abarcou dos artigos 233 a 239 os direitos e deveres do marido, enquanto que estabeleceu nada mais do que quinze artigos, do 240 ao 255, os direitos e deveres da mulher. Nesse modelo, o patriarca era o chefe supremo da família matrimonializada e legítima. O marido era chefe da família e a mulher e os filhos eram hierarquicamente inferiores. Aliás, em todos os sentidos, o Direito de Família clássico assentou-se na desigualdade e nas presunções, a saber, a própria presunção pater is est quem nuptia demonstrant[1], pela qual se impedia a discussão da origem da filiação se o marido não a negasse em curto prazo, haja vista os preconceitos da hegemonia familiar patriarcal e matrimonializada, já explicitada nas linhas acima.

É como se a instituição família possuísse um desenvolvimento próprio com interesses superiores aos pessoais. A família não deveria servir para os seus membros, mas sim à sociedade, através do pacto matrimonial, que legitimava a sua principal função, qual seja, procriar, para se facilitar o trabalho e o maior acúmulo de riquezas. De tal forma, o casamento seria a única possibilidade de se reconhecer um laço familiar, codificando esta forma familiar, cerrando todas as portas para as diferentes constituições familiares, e traduzindo este fechar em tentativas de normas completas e fechadas ao longo do ordenamento jurídico.

Tal cenário não é aquele que se privilegia na leitura do artigo 226 da Constituição Federal. O pluralismo das entidades familiares, uma das mais importantes inovações da Constituição brasileira, relativamente ao direito de família, encontra-se ainda cercada de perplexidades quanto a dois pontos centrais, que são questionados por Paulo Luiz Netto Lôbo: “a) há hierarquização axiológica entre elas?; b) constituem elas numerus clausus?”.[2] O autor se propõe a enfrentar preferencialmente a segunda questão, gizando-a ao plano da Constituição brasileira, ou seja, extraindo sentido das normas nela positivadas, utilizando critérios reconhecidos de interpretação constitucional.

Para o autor, várias áreas do conhecimento, que têm a família ou as relações familiares como objeto de estudo e investigação, identificam uma linha tendencial de expansão do que se considera entidade ou unidade familiar. Na perspectiva da sociologia, da psicologia, da psicanálise, da antropologia, dentre outros saberes, a família não se resume à constituída pelo casamento, ainda antes da Constituição, porque não estavam delimitados pelo modelo legal, entendido como um entre outros.

Deve-se observar a utilização de um critério exaustivamente considerado pelo Direito de Família, a questão da afetividade como um norteador da composição das relações familiares, em suas mais plurais formas. Assim, considera que a afetividade tem fundamento constitucional; não é petição de princípio, nem fato exclusivamente sociológico ou psicológico. No que respeita aos filhos, a evolução dos valores da civilização ocidental levou à progressiva superação dos fatores de discriminação, entre eles.

Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade, tendo em vista que consagra a família como unidade de relações de afeto, após o desaparecimento da família patriarcal, que desempenhava funções procriativas, econômicas, religiosas e políticas. Não há mais espaço para aquela família monolítica, autoritária, com hierarquia entre seus membros. Família passa a ser muito mais que laço sanguíneo. O velho sistema de família coloca-se diante de si mesmo para se questionar a sua própria existência

No caso do Direito de Família percebe-se que anteriormente as características que definiam a família abrem espaço para novas configurações. Assim, o que antes se chamava de família matrimonializada, hierarquizada, patriarcal e de feição transpessoal acaba por ser substituída pela pluralidade familiar, a igualdade substancial,  a direção diárquica, onde os laços constituem-se pelo afeto, a fim da realização e felicidade da família, no modelo eudemonista, portanto.[3]

Deste modo, a família, no contexto contemporâneo, define-se a partir da passagem do sistema codificado para o sistema constitucional, já que a Constituição Federal de 1988 assume o papel de ser norma fundamental, englobando a família, antes à margem do Código Civil de 1916, e, portanto, despatrimonializa o estatuto jurídico da família, para considerar agora o estatuto jurídico pessoal. Neste diapasão, reflete Luiz Edson Fachin, ao afirmar que “na Constituição Federal encontra-se um conjunto significativo de dispositivos que tratam da regulamentação jurídica da família. O valor e o “valer” da Constituição, sem embargo estão além da norma positivada. Assim, se apreende esse fenômeno, a “constitucionalização” do Direito de Família, através do qual a Constituição Federal ocupa o lugar classicamente deferido ao Código Civil e, hoje, é a lei fundamental, ali está a base do Direito de Família, regras e princípios fundamentais.”[4]

Supera-se o modelo de grande família, onde permanecia o caráter patriarcal e hierarquizado da família. Não é mais o indivíduo que existe para a família, mas a família que existe para a pessoa, em busca da felicidade.[5] Assim, o Direito de Família brasileiro contemporâneo acaba por trazer mais reflexões do que conclusões.

Ademais, a família apresenta-se sob uma perspectiva sociológica plural, a partir da aplicação dos princípios constitucionais que não se reduzem ao mero texto constitucional positivado, abrindo espaço para a entrada de novos sujeitos de direito de família, como por exemplo, o idoso e a criança, especialmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Nesta medida, ao surgirem novos sujeitos de direito, bem como a sua consagração pelo ordenamento jurídico, é que se desvela o fenômeno denominado de repersonalização, com a reconstrução dos sujeitos de direito. Como diz o Ministro Fachin, “a repersonalização tanto diz respeito ao modo de pensar o Direito, quanto à inserção de um outro sentido do sujeito de direito, diverso do sistema clássico, que foi calcado em uma abstração, em um corte da realidade”.[6]

Essa visão sociológica faz lembrar sempre de Ulrich Beck e Elisabeth Beck quando refletem tão profundamente que “a nossa resposta é que o amor e a família perdem o seu laço que o prendia a um único lugar e, passa a procurar a sua sorte na diversidade do mundo. Isto dá origem a um amor distante, que é de inicialização geográfica e cultural. Ou aqui ou ali, ou nós ou eles - todas essas alternativas desaparecem do horizonte do amor. Poucas linhas divisórias absolutamente insuperáveis permanecem: não a cor de sua pele, sua nacionalidade ou religião, ou até mesmo as distâncias que separam os países e continentes. Pelo contrário, é o outro geograficamente distante que contém os atraentes de novas possibilidades de amor. O amor brotou novas asas.”[7]

Por tais razões, o Estatuto da Família, não representa as famílias, mas sim, um modelo único e fechado, escolhido pelos representantes da democracia, por mais irônico que isso possa parecer. O amor brotou novas asas.


Notas e Referências:

[1] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. Texto disponível em: http://www.ibdfam.com.br/public/artigos.aspx?codigo=109. Acesso em: 27 de setembro de 2015.

[2] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/9408-9407-1-PB.pdf. Acesso em: 27 de setembro de 2015.

[3] FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.39.

[4] FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.80-89.

[5] FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.80-89.

[6] FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil à luz do novo código civil brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.232.

[7] Our reply is that love and family lose their tie to a single place and instead seek their fortune in the diversity of the world. This gives rise to a distant love that is boot geographical and cultural. Either here or there, either us or them - both these alternatives disappear from the horizon of love. Few absolutely insuperable dividing lines remain: not the colour of one's skin, one's nationality or religion, or even the distances separating countries and continents. On the contrary, it is the geographically distant other that contains the alluring new possibilities of love. Love has sprouted new wings (Tradução para a língua portuguesa livre do autor). BECK, Ulrick. BECK-GERSHEIM, Elisabeth. Distant love: personal life in the global age. Translated by Rodney Livingstone. Cambridge: Polity Press, 2011. p.166-167.

BECK, Ulrick. BECK-GERSHEIM, Elisabeth. Distant love: personal life in the global age. Translated by Rodney Livingstone. Cambridge: Polity Press, 2011.

FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil à luz do novo código civil brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.232.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/9408-9407-1-PB.pdf. Acesso em: 27 de setembro de 2015.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. Texto disponível em: http://www.ibdfam.com.br/public/artigos.aspx?codigo=109. Acesso em: 27 de setembro de 2015.


Guilherme WunschGuilherme Wunsch é formado pelo Centro Universitário Metodista IPA, de Porto Alegre, Mestre em Direito pela Unisinos e Doutorando em Direito pela Unisinos. Durante 5 anos (2010-2015) fui assessor jurídico da Procuradoria-Geral do Município de Canoas. Atualmente, sou advogado do Programa de Práticas Sociojurídicas – PRASJUR, da Unisinos, em São Leopoldo/RS; professor da UNISINOS; professor da UNIRITTER e professor convidado dos cursos de especialização da FADERGS, FACOS, FACENSA E IDC.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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