Um corpo que cai: uma concisíssima reflexão acerca de coisas que voam e não são aves, crianças expostas a riscos que vêm dos céus e adultos que, aparentemente, desconhecem-nos – Por Marcos Catalan

17/02/2017

Ausardiaz – a personagem é fictícia – adora lançar-se parque afora, correndo, sem direção, sem rumo que possa ser, previamente, calculado ou antevisto. Despreocupado e confiante, ele procura o cheiro do mato, busca um pequeno lago envolto por frondosas árvores que há muito crescem, por lá, como se florescessem em um livro de Sartre[1], delicia-se com o perfume das flores que começam a murchar ante a aproximação do outono. Caça cães, gatos, patos, pequenas tartarugas, carpas, borboletas, cigarras, besouros e até formigas que, incessantemente, trabalham ignorando a reforma da Previdência Social que, sombriamente, se aproxima. Ele busca, ainda, provar o delicado toque do vento em sua tez enquanto o inverno não o impede de fazê-lo diante de sua fragilidade física. Certas vezes, acaba por experimentar o nem sempre agradável sabor da terra. Nada que prenda a sua atenção por mais de três ou quatro minutos. Tal entusiasmo se explica. Com pouco mais de seis anos – segundo ele, muito bem vividos – e, tendo passado pelo menos cinco deles em um loft com cinquenta e sete metros quadrados que divide com Cástor e Pólux – seus pais – e com um casal de lulus da Pomerânia, batizados Píramo e Tisbe, apesar de nascidos na Polônia.

Ultimamente, entretanto, uma cena cada vez mais comumente presenciada – por ele e por tantos outros seres não-ficcionais que transitam diariamente pelos parques e (ou) outros espaços de convivência que tem seus ventres, explicitamente, expostos às intempéries nascidas nas mudanças dos humores de Zeus – tem chamado a atenção de Ausardiaz. Objetos de diversos tamanhos, formas, pesos e coloridos que vão dos mais sóbrios aos mais berrantes o têm encantado ante a capacidade de pairarem no ar, suspensos, imóveis em algumas ocasiões, outras vezes movendo-se no ar mais rapidamente que o olhar do inocente observador, vencendo essa força inexplicável que insiste em imantar os corpos ao chão e os impede experimentar as delícias contidas nos sonhos de Ícaro. Coisas que passam, cada vez mais próximas, sobre sua cabeça, às vezes. Mecanismos que voam, sustentados por hélices de distintos formatos, por cenários até então rasgados, tão somente, pelo voo de vibrantes bem-te-vis, de curiosos sabiás, de alvas garças e de um sonoro bando de periquitos verdejantes, pelos passeios de um infiel joão-de-barro nas tardes de primavera e, com alguma sorte, pelos destemidos rasantes das andorinhas no verão ou o movimento frenético e incessante de alegres colibris.

Brinquedos!

O virginal Ausardiaz é incapaz de identificar que drones – incluídos, na ideia, aeromodelos, aeronaves remotamente pilotadas e veículos aéreos não-tripulados – são frutos da técnica. O rapazote não tem maturidade cognitiva suficiente para entender que aquilo que vê não são brinquedos, como ousou, mentalmente, decodificar. Mas não o julguemos. Muitos adultos – infantilizados[2], é fato – são, igualmente, incapazes de percebê-lo, mesmo não merecendo adjetivos como cândidos ou inocentes. A História poderia ter finalizado o seu curso com o Playstation ou com os jogos em rede. Mas isso não ocorreu. Ela preferiu seduzir crianças crescidas (ou não) ofertando a elas aeronaves que, no mais das vezes, tem como pressuposto de sua utilização – visando o simples deleite, em razão de alguma atividade ligada ao trabalho ou por qualquer outro motivo, tanto faz – a sujeição aos comandos normativos emitidos pelos gestores da aviação civil no Brasil. Isso quer dizer que antes de serem operadas, muitas vezes, haverá um sem número de regras que hão ser observadas. Regras que versam acerca do espaço aéreo que poderá (ou não) ser atravessado, cruzado por estas máquinas, bem como, que versam acerca da necessidade de habilitação, obviamente, antecedendo o seu uso[3] recreativo ou profissional.

Tais produtos da técnica, ao mesmo tempo, são coisas. E coisas que sofrem os efeitos da Gravidade, o que as torna mais perigosas quando não estão no chão, ainda, que nosso casto infante não possa compreendê-lo. O leitor, certamente, ao contrário, consegue-o. Coisas podem cair, atraídas pela Lei da Gravidade. E quanto maior a massa e (ou) quanto mais pessoas dividindo o espaço com essas coisas, aparentemente, maior o risco. Os físicos, salvo melhor juízo, parecem conseguir sintetizar tudo isso em uma fórmula: F = M.g.H/D. Nela, H é a altura donde a coisa partiu – porque parou de funcionar, chocou-se com outra, sofreu interferência em seu sistema de direção –, M a massa do corpo – medida em quilos e, algumas destas coisas, podem, facilmente, ter mais de um –, g a aceleração promovida pela gravidade e, enfim, D consiste em uma variável atada à maior ou menor rigidez da superfície atingida e que busca aferir o deslocamento de um corpo sobre o solo no momento em que ele para, após tocá-lo, ou, quiçá, depois de atingir outra superfície qualquer, como um corpo demasiadamente humano. Antes que o leitor indague, antecipo que ignoro, por completo, a densidade de qualquer parte do corpo humano para fins do cálculo sugerido.

O curioso Ausardiaz não compreende nada disso. Apenas se encanta com o voo destas coisas que sabe não serem aves. Essas coisas que voam sem ter asas. Se entretém a ponto de olvidar os muitos instantes de arrebatamento até então vividos naquele espaço campestre que considerava seu. Se regozija, especialmente, ao observar aquelas que são tingidas e (ou) decoradas com tons vermelhos. O tamanho importa pouco, a cor rubra o hipnotiza. Como esses seres encarnados, lacerando os céus, chamam a sua atenção. Vermelho foi última cor que tocou seu olhar. O carmim, em tons vibrantes, flui há alguns dias por seu rosto, por suas mãos ...

O Direito foi incapaz de tutelar o infante que protagoniza e inspira estas singelas notas. Notas que poderiam resgatar que aqueles que operam tais máquinas respondem, objetivamente, pelos danos por elas provocados consoante a arquitetura jurídica erigida pela codificação civil brasileira a partir da inspiração encontrada na responsabilité du fait des choses dos franceses. Apontamentos que talvez conduzissem – talvez, induzissem – o leitor à conclusão de que o sobrevoo de áreas destinadas ao convívio urbano poderia ser utilizado como um exemplo de atividade de risco, reforçando, ainda, a necessidade de recurso à matriz objetiva na imputação do dever de reparar. Reflexões que poderiam derivar, ainda, para o universo jusconsumerista, eis que, detectado um defeito de concepção, de fabricação ou de informação, a vítima de um acidente de consumo – ao usar as vestes de consumidor by stander – tal qual ocorre nas hipóteses construídas pela literatura jurídica civilista, também encontrar-se-á abrigada em cenários nos quais a culpa fora sepultada há bastante tempo e dela somente restem alguns espectros a assombrar a existência humana. Escritos que poderiam resgatar que prevenção, no Direito pátrio, tem a forma de dever jurídico – as regras da Agência Nacional da Aviação Civil, por exemplo, atribuem densidade ao referido dever – e que, portanto, a sua inobservância merece sanção independentemente da manifestação, em concreto de um dano ou da vivificação de uma situação fenomênica apta a dispará-lo.

A Sociedade de risco envolve-nos, a todos.

Os véus que a decoram, como uma densa bruma, impedem, no mais das vezes, a percepção anterior ao infortúnio da potencial manifestação, em concreto, de perigos que pairam no ar, no texto, literalmente no ar.

Riscos que possuem inúmeras fontes. Um cabo solto, pilhas ou baterias, inadequadamente, conservadas ou, inadvertidamente, mal carregadas. A ausência de mecanismos que comuniquem o operador – ou melhor, que possam pousar a máquina – antes que a energia que, momentaneamente, burla a força da gravidade, chegue ao fim. Danos ao sistema operacional provocados pelo transporte e (ou) pelo acondicionamento em desacordo com as orientações, grafadas em idioma distinto da lingua mater, no manual de instruções, ou que, simplesmente, foram desprezadas por uma personagem moldada nas forjas da geração touch screen ou um ancestral seu que ainda pode ser identificado a partir das estruturas de parentesco desenhadas na codificação civil.

Quantos exemplos mais poderão vir a ser visualizados na intertextualidade deste escrito? Impossível dizê-lo. O que pode ser afirmado, entretanto, neste momento, é que conhecidos (ou não) por seus fabricantes, importadores ou por qualquer outro ser que faça voar coisas que, queira ou não o leitor, caem do céu, além do dever de reparar os danos materiais e extrapatrimoniais havidos nestes contextos – exceção feita às situações envoltas pela moldura do fato exclusivo da vítima, embora, resta saber que condutas poderão ser imputadas, a tal título, à inocentes infantes –, talvez alguns deles tenham que carregar consigo, por toda a sua existência, o peso de algumas outras sensações que não temos a habilidade de traduzir por meio de palavras.


Notas e Referências:

[1] SARTRE, Jean-Paul. A náusea. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

[2] BARBER, Benjamin. Consumido: como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Trad. Bruno Casoti. Rio de Janeiro: Record, 2009.

[3] http://www.anac.gov.br/Anac/assuntos/paginas-tematicas/drones


 

Imagem Ilustrativa do Post: drones // Foto de: Andrew Turner // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ajturner/15685514648

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