Um brinde à mulher: entre avanços e retrocessos, uma pausa para celebrar

08/03/2015

 Por Leilane Serratine Grubba - 08/03/2015

O desenvolvimento humano relacionado ao gênero reside num limbo entre o céu e o inferno, entre avanços e retrocessos[1]. Neste dia 8 de março, internacionalmente dedicado à mulher, levanto um brinde aos avanços conquistados por meio de lutas, mas não nos esqueçamos que, em pleno século XXI, o conceito de gênero continua enraizado na base cultural das sociedades modernas, fazendo com que a diferença biológica entre homens e mulheres seja utilizada para moldar as noções de masculinidade e feminilidade, transformando as diferenças em desigualdade.

Parece que existe uma natureza humana diferenciada, construída por meio de uma pedagogia da identidade, segundo Lagarde (1996), que faz com que seja natural que mulheres ocupem o espaço de mulheres. Apesar disso, foram muitas as manifestações das mulheres, ao longo da história da humanidade, visando o seu reconhecimento enquanto sujeito, como as protagonistas femininas que lutam pelo processo histórico da paz, permitindo dar uma identidade sexual à história normalmente pensada sob o ponto de vista masculino, bem como revisar o conceito de poder.

Brindamos a essas lutas e conquistas, mas não podemos esquecer a importância de, após as comemorações, refletirmos sobre o que ainda é necessário ser conquistado (o que ainda existe de desigualdade de gênero a ser superado). Isso porque, tradicionalmente, as sociedades foram se organizando ao assinalar papeis e valores aos indivíduos em função do gênero a que pertencem e da construção simbólica atribuída a ele (DÍEZ JORGE; MIRÓN PÉREZ, 2009, p. 72). Afinal, conforme afirmou ironicamente Nietzsche (2010, p. 20), em seu Crepúsculo dos Ídolos, “O homem criou a mulher – a partir do que, afinal? De uma costela de seu deus – de seu ‘ideal’...”. Nesse sentido, ainda há muito a ser feito.

A atribuição de papeis diferentes e hierárquicos estereotipados de gênero e a atribuição da superioridade de um sobre o outro – supremacia do masculino, por exemplo: meninos educados em valores dominantes, como a competitividade e agressividade, inibindo as qualidades de ternura e sensibilidade, consideradas femininas – é o fundamento da violência de gênero que equivale o padrão de masculinidade ao modelo essencial de ser humano (DÍEZ JORGE; MIRÓN PÉREZ, 2009, p. 89).

Conforme o Relatório de desenvolvimento humano (RDH), as desvantagens enfrentadas pelas mulheres são uma fonte principal de desigualdade, pois a descriminação se reflete na saúde, na educação e no mercado de trabalho, repercutindo, ademais, sobre a liberdade feminina. A desigualdade de gênero varia de país para país, sendo que as perdas devido a essa desigualdade variam dos 17% aos 85% no desenvolvimento humano (NAÇÕES UNIDAS, 2010, p. 8).

Mais do que isso, a desigualdade tende a aumentar na proporção do que chamamos de opressões sobrepostas, ou seja, se aliarmos a questão de gênero à classe social ou à etnia, dentre outras (SANDOVAL, 2000).

Esse fato normalmente pode ser bem visualizado quando estudamos a questão de desigualdade de gênero. Em que pese os avanços no tratamento igualitário de oportunidades e de direitos entre homens e mulheres, bem como as descriminações positivas, que geram uma descriminação da mulher com o intuito de promover a igualdade material, empiricamente, verificamos que a situação de desigualdade em razão do gênero ainda existe, em pleno século XXI.

Uma desigualdade que se manifesta de maneira sobreposta nos âmbitos da saúde, educação, emprego, liberdade, etc., somente pelo simples fato de uma pessoa ter nascido homem ou mulher. Embora os avanços alcançados pelas mulheres desde a década de 90, do século XX, a desigualdade de gêneros continua a ser uma das principais barreiras do desenvolvimento humano. De maneira concreta e imanente, o RDH2010 nos mostra as seguintes conclusões (NAÇÕES UNIDAS, 2010, 81-83):

  1. nos países em que existe, culturalmente, a preferência pelo nascimento de meninos, o número de mulheres desaparecidas, isto é, de abortos e mortes, em 2010, é superior a 134 milhões;
  2. no Cáucaso e na Ásia Central, governos vêm defendendo o regresso a uma sociedade mais tradicional, no sentido da descapacitação (educação) das mulheres;
  3. estudos em 13 países apontam para uma média de 20% do total de mulheres que já sofreu violência doméstica. Embora muitos países protejam as mulheres de violação ou violência doméstica por meio de legislações, deixam de protegê-las contra o assédio e a violação conjugal;
  4. em vários países, como o Egito, a Jamaica e o Paquistão, as leis laborais contribuem para a exclusão das mulheres do mercado de trabalho formal; e
  5. não obstante a melhora, a desigualdade de salários entre gêneros é empírica. Em 33 países desenvolvidos, os salários das mulheres alcançavam apenas 69% do salário médio masculino, entre os anos de 1998 e 2002, tendo subido para 74% entre o período de 2003-2006.

Diante desses dados, percebemos que a violação da dignidade feminina é um tema atual do século XXI e deve ser pensado com seriedade. Para tanto, são importantes os dados concretos trazidos pelo RDH 2014, a respeito dos grupos vulneráveis, como as mulheres (desigualdade de gênero), e, principalmente, quando existem outras barreiras que podem reforçar-se mutuamente e negativamente (ex. gênero feminino, portadora de deficiência e pertencente à classe social e economicamente mais baixa). (NAÇÕES UNIDAS, 2014, p. 6).

Existe, segundo as Nações Unidas (2014, p. 35), uma vulnerabilidade estrutural na sociedade, que tem por base a posição das pessoas na sociedade (gênero, etnia, tipo de trabalho), que evoluiu e persistiu na história. As mulheres continuam a experimentar diferentes tipos de desvantagens e discriminação, no domínio da saúde, educação e emprego. Nesse sentido, em todo o mundo, o valor do Índice de desenvolvimento humano (IDH) para o gênero feminino é, em média, 8% mais baixo do que o valor do IDH masculino. Por sua vez, o Índice de desigualdade de gênero[2] (IDG), relativo a 149 países revela a existência de forte desigualdade (2014, p. 50-53).

Em termos globais, conforme o RDH2014, são as mulheres que sofrem a discriminação mais generalizada: “as leis podem ser explicitamente discriminatórias contra as mulheres em matéria de família, casamento, direitos econômicos e violência” (2014, p. 88). Além disso, podem sofrer discriminação por via de instituições sociais, como cargas mais pesadas em termos de trabalho não remunerado de assistência a pessoas dependentes, violência contra a mulher.

Mas apesar dos retrocessos, que devemos estar conscientes para continuar a buscar a igualdade de gêneros, brindamos, no dia de hoje, para os avanços já conquistados.

O RDH (2014, p. 89) aponta para possibilidades de avanços no desenvolvimento humano feminino e na diminuição da desigualdade de gênero. Exemplo disso é a mais ampla representação das mulheres na vida política, que pode melhorar a situação das mulheres em geral. Em Ruanda, por exemplo, hoje se têm algumas das mais progressivas leis na África para empoderar as mulheres e protegê-las da violência.

Essa tentativa de diminuição da desigualdade de gênero também é seguida pelas Nações Unidas. Entre junho e julho de 1975, aconteceu a primeira Conferência[3] Mundial sobre as Mulheres, na Cidade do México. A primeira Conferência coincidiu com o Ano Internacional da Mulher e foi uma tentativa de abrir um diálogo mundial sobre a igualdade de gênero, por meio de um lento processo que deveria envolver a deliberação, a negociação, a escolha de objetivos, a identificação de obstáculos e a revisão do progresso já realizado.

Na Conferência de 1975, a Assembleia-geral das Nações Unidas identificou três objetivos-chave para o trabalho da ONU no que tange às mulheres, são eles: (a) igualdade total de gênero e eliminação da discriminação de gênero; (b) total integração e participação da mulher no desenvolvimento; (c) aumento da contribuição das mulheres para o fortalecimento da paz no mundo.

Posteriormente, em 18 de dezembro de 1979, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres[4] (CEDAW), considerando valores políticos, econômicos, sociais, culturais e civis.

A CEDAW, conhecida como a Carta internacional de direitos da mulher, define o que é a discriminação contra a mulher, além de construir uma agenda para ações nacionais que tenham como objetivo erradicar essa forma de discriminação, que deve ser entendida como qualquer distinção, exclusão ou restrição feita com base no sexo, que tem como efeito ou objetivo prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade dos homens e das mulheres, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais no campo político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro.

Os Estados signatários se comprometem às medidas de combate à discriminação da mulher, principalmente nas seguintes formas: (a) incorporar o princípio da igualdade entre homens e mulheres nos sistemas jurídicos e abolir qualquer tipo de leis discriminatórias; (b) estabelecer tribunais e outras instituições públicas que garantam a efetiva proteção das mulheres contra a discriminação; e, (c) eliminar todos os atos de discriminação contra as mulheres.

Tendo elevado a causa da igualdade de gênero para o centro da agenda global, em 1980 foi realizada uma segunda Convenção, na cidade que Copenhague, que percebeu os progressos já realizados em termos de igualdade de gênero, mas reconheceu que alguns sinais de disparidade de sexo e gênero começaram a emergir dos direitos já assegurados e da habilidade das mulheres exercerem esses direitos. Os problemas foram verificados em razão dos seguintes motivos:

  1. falta de envolvimento dos homens para melhorar o papel das mulheres na sociedade;
  2. vontade política insuficiente;
  3. falta de reconhecimento do valor da contribuição das mulheres para a sociedade;
  4. falta de atenção às necessidades específicas das mulheres no planejamento;
  5. falta de mulheres em cargos de tomada de decisão;
  6. serviços insuficientes para apoiar o papel das mulheres na vida nacional;
  7. falta de recursos financeiros necessários; e,
  8. falta de conscientização das mulheres sobre as oportunidades disponíveis para elas[5].

Após, em julho de 1985, a Conferência mundial para revisão os ganhos concernentes à década das mulheres[6] na ONU ocorreu em Nairóbi, no Quênia. A ideia-objetivo para a mulher foi o da igualdade, desenvolvimento e paz. A Conferência mundial de Nairóbi[7] afirmou a necessidade do compromisso para a promoção de políticas nacionais e multilaterais e cooperação para o desenvolvimento humano. A ONU entendeu, ademais, que a efetiva promoção dos direitos da mulher ocorre em condições internacionais de paz e segurança, onde as relações entre os Estados são baseadas no respeito pelos direitos das nações, pela soberania dos territórios, das pessoas em sua possibilidade de autodeterminação, pelo direito de viver em paz dentro das fronteiras territoriais de cada Estado-nação.

A quarta Conferência mundial da ONU sobre as mulheres e a igualdade de gênero ocorreu em Beijing (Pequim)[8], em 1995. O principal feito da quarta Conferência foi o reconhecimento da necessidade de mudar o foco da mulher para o conceito de gênero, reconhecendo que toda a estrutura da sociedade e todas as relações entre homens e mulheres deveriam ser reavaliadas. Os direitos das mulheres passaram a ser vistos como direitos humanos, e a igualdade de gênero passou a ser uma questão de interesse universal.

Entre avanços e retrocessos, no que tange à desigualdade de gênero, ainda há muito a ser feito. Aos poucos, a socidade moderna tem conseguido evoluir quanto ao empoderamento feminino. Importa brindarmos ao dia de hoje, comemorando essas evoluções de igualdade de gênero. Mas também devemos focar no que precisa ser feito para que seja possível vencer os atrasos e retrocessos, com ênfase em: (a) vontade política; (b) aumento da participação política das mulheres; (c) incremendo da educação; (d) conscientização das mulheres sobre as oportunidades disponíveis; (e) igualdade salarial entre gêneros para a mesma função; (f) reconhecimento do valor da contribuição das mulheres para a sociedade, etc.


Notas e Referências:

DÍEZ JORGE, Maria Elena; MIRÓN PÉREZ, Maria Dolores. Una paz feminina. In MOLINA RUEDA, Beatriz; MUÑOZ, Francisco A. (ed.) Manual de Paz y Conflictos. Granada: Universidad de Granada – Instituto de la Paz y los Conflitctos, p. 67-93. Disponível em: <http://www.ugr.es/~gijapaz/Manual/Una%20Paz%20Femenina.pdf>. Acesso em 03 de janeiro de 2009.

LAGARDE, Marcela. Género y feminism. Desarrollo humano y democracia. Madrid: Horas y Horas, 1996.

NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. Disponível em: < http://www.un.org/womenwatch/daw/cedaw/>. Acesso em 07 mar. 2015.

NAÇÕES UNIDAS. Relatório de desenvolvimento humano 2010. A verdadeira riqueza das nações: vias para o desenvolvimento humano. Disponível em: <http://hdr.undp.org/en/media/HDR_2010_PT_Complete_reprint.pdf>. Acesso em: 07 mar. 2015.

NAÇÕES UNIDAS. Relatório de desenvolvimento humano 2014. Sustentar o progresso humano: reduzir as vulnerabilidades e reforçar a resiliência. Disponível em: <http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr2014_pt_web.pdf>. Acesso em 07 mar. 2015.

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo. Porto Alegre: L&PM, 2010.

SANDOVAL, Chela. Methodology of the oppressed. Minnessota: University of Minnessota Press, 2000

[1] Neste artigo, opto por pincelar os avanços e retrocessos com base no último Relatório de desenvolvimento humano (2014), publicado pelas Nações Unidas, assim como as quatro Conferências Internacionais para a proteção da mulher.

[2] O IDG apresenta uma medida da desigualdade de gênero com base em três dimensões: (a) saúde reprodutiva (taxa de mortalidade materna e taxa de fertilidade adolescente); (b) capacitação (percentagens de assentos parlamentares detidos por cada sexo e percentagem da população, dividida por homens e mulheres, que concluiu o ensino secundário e superior); e (c) participação no mercado de trabalho (participação das mulheres e homens na força de trabalho).

[3] Para saber mais sobre as Conferências Internacionais sobre as mulheres, consultar o seguinte endereço eletrônico: <http://www.un.org/womenwatch/daw/followup/session/presskit/hist.htm>. Acesso em 04/12/2013.

[4] A Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher encontra-se disponível no seguinte endereço eletrônico: <http://www.un.org/womenwatch/daw/cedaw/>. Acesso em 04/12/2013.

[5] Para saber mais sobre a Conferência de Copenhague, visitar o seguinte endereço eletrônico: <http://www.un.org/womenwatch/daw/beijing/copenhagen.html>. Acesso em 06/12/2013.

[6] Para saber sobre a Convenção, consultar o seguinte endereço eletrônico: <http://www.un.org/womenwatch/confer/nfls/>. Acesso em 04/12/2013.

[7] Para saber mais sobre a Conferência de Nairóbi, visitar o seguinte endereço eletrônico: <http://www.un.org/womenwatch/daw/beijing/nairobi.html>. Acesso em 06/12/2013.

[8] Para saber mais sobre a Conferência de Pequim, consultar o seguinte endereço eletrônico: <http://www.un.org/womenwatch/daw/beijing/beijingdeclaration.html>. Acesso em 06/12/2013.

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Leilane Serratine Grubba2Leilane Serratine Grubba é Doutora em Direito (UFSC). Mestre em Direito (UFSC). Pesquisadora NECODI. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2294306082879574.

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