Turisprudência não pode ser a regra da decisão

20/10/2015

Por Alexandre Morais da Rosa - 20/10/2015

A confusão entre precedentes e meros julgados, sem caráter democrático de utilização decisória (aqui), continua embalando os debates atuais sobre a Teoria da Decisão, especialmente pelos impactos que o art. 489 do Novo Código de Processo Civil na Teoria da Decisão, conforme aponta Lenio Streck (aqui).

Daí que talvez valha a pena reproduzir o prefácio do livro de Maurício Ramires (aqui). O livro já é um clássico e, quem sabe, as reflexões possam iluminar e nos auxiliar a compreender a resistência de boa parte do senso comum teórico (Warat).

Conheci Maurício Ramires no excelente Programa de Pós Graduação da UNISINOS (mestrado e doutorado). Da turma dele, alguns se destacaram, desde o início, justamente porque apontavam para onde o discurso jurídico padrão manca. Não era gente preocupada em “arredondar” o discurso, em relegitimar o positivismo, nem salvar ninguém. Com suas inquietações colocaram novas interrogações, enfim, fizeram as perguntas certas! As perguntas certas são condição de possibilidade para se responder. Assim, caso o sujeito esteja jogado numa “inautenticidade”, fora do “círculo hermenêutico”, banhado por distinções metafísicas, as questões são só aparentemente formuladas, porque, de fato, são variações sobre o mesmo tema, sem perder o tom. Disto a academia e os Manuais estão lotados. Divagações e distinções ad-hoc que, aparentemente, resolvem as questões postas diante de um “caso jurídico”, mas que servem apenas como “analgésicos decisórios”. No fundo a Teoria da Decisão manejada pelo senso comum teórico é um protocolo sem sentido, nem sabor, em que o sujeito se anula, isto é, não se faz ver. Claro que em todas estas escolhas há uma responsabilidade do sujeito. Isso porque o sujeito sempre é responsável.

Mas no mundo jurídico o analfabetismo funcional é lancinante. O “operador do direito” sabe ler o Código, compra a coleção de resumos, faz o turismo da jurisprudência – “Turisprudência” – e, no caso de certa parcela de magistrados, até conseguem decidir, mas não entendem o que fazem. É como se houvesse uma “Estrutura Dual”. No manifesto a coisa é “mostrada” com a aparência de fundamentação, num efeito estético persuasivo de semblante, enquanto no plano dos pressupostos, do latente, ou seja, do que serviu de fundamento, o vazio significante tome conta. O vazio, como tal, embora seja condição de possibilidade, no caso de decisões judiciais, numa democracia, não pode ser qualquer coisa. O julgador não está autorizado a julgar a partir de ementas e julgados embalados para presente. Os efeitos mágicos de produção em série e veloz contracenam com o descompromisso, a ausência de responsabilidade do sujeito que assina. A tradição autêntica precisa fazer barreira e não se pode deixar levar por esta deriva de sentidos.

Recompor este lugar do Poder Judiciário, lugar em que Maurício ocupa, já que juiz estadual, é o desafio do presente livro. O caminho, claro, foi bem pavimentado pelos estudos de mais de década de Lenio Luiz Streck. Com ele podemos perceber o quanto Heidegger e Gadamer são importantes para o Direito, especialmente para entender porque a “argumentação jurídica” é um engodo performático. Aliás, Lenio consegue orientar dissertações que vão ao ponto. André Karam Trindade e Rafael Tomaz de Oliveira são exemplos recentes de gente séria e que possibilita a produção acadêmica responsável. O texto é bem escrito e direto, sem floreios sem sentido e mostra com exemplos que estamos vivendo um “Estado de Natureza Hermenêutico” (Streck), em que o poder-de-dizer transformou-se num poder-de-repetir-sem-entender qualquer coisa, a saber, com a profusão de enunciados, falta enunciação.

Recentemente, também dialogando com Lenio Streck, escrevi com José Manuel Aroso Linhares (Diálogos com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009) um texto que procura apontar que esta fusão de tradições (civil e common law) não pode ser aceita como um simples encontro, muito menos como um mero diálogo de fontes, pois representa a mudança da própria maneira de compreensão do Direito, transformado em um acessório econômico, e consumível. O risco de tal proceder é que se pode decidir fora da história, sem enunciação, na mais lídima autonomia dos enunciados, em que a responsabilidade do julgador é extinta!

Talvez Peter Sloterdijk possa ser um companheiro de caminhada ao apontar que a “razão cínica” opera no contemporâneo, especialmente no campo jurídico, pois neste campo (i) não se verificou a viragem linguística, (ii) inexistem condições autênticas de uma Hermenêutica Filosófica, (iii) há uma baixa constitucionalidade e a (iv) crítica não faz mais barreira, autorizando, assim, qualquer um, do seu lugar, a dizer uma verdade por puro desconhecimento e ignorância, em todas as instâncias.

Embora a esperança possa ser manipulada desde uma perspectiva cínica, de alguma forma, ela faz parte do horizonte de sentido de quem busca pensar o que faz para além do aparato instrumental. Este é o caso de Maurício Ramires. Estava escrevendo este prefácio quando encontrei um magistrado catarinense que se rendeu aos entreguistas. Disse-me que havia cansado e que agora “decidia” (sic) conforme a orientação do STJ e do STF. Havia renunciado ao seu lugar de magistrado e, dizia ele, “negava-se a dar falsas esperanças”. Para ele o jogo está dominado e nada se pode fazer. A batalha pela judicialização da política (Werneck Vianna) era inglória. Está preocupado e me dizia – entusiasmado – em tornar o Poder Judiciário eficiente, não fosse ela, a eficiência, uma fraude (Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Júlio César Marcellino Jr).

O que me chocou foi que sua postura é dual. Ele sabe que está sendo manipulado, mas mesmo assim faz (Zizek). Quando nos quedarmos a isto, diz Lenio Streck, temos que estocar comida, porque o mundo vai acabar. Se bem que talvez estamos tão preocupados com a crítica que não percebemos que o mundo se acabou. Bem vindo ao mundo de 1984 (Orwell)? Leia o texto e responda, se é que me entende..., diria Lenio Streck.


Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).

Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  Facebook aqui           


Imagem Ilustrativa do Post: El acertijo // Retrato Verde con efecto "Bokeh"// Foto de: Armando Aguayo Rivera // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/armandoh2o/7069748077/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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