TRIBUTOS FEDERAIS: A COMPENSAÇÃO DE OFÍCIO E UMA FLAGRANTE INCONSTITUCIONALIDADE

22/08/2019

            Posturas contrárias aos interesses dos sujeitos passivos são corriqueiras no âmbito da Receita Federal, ao ponto de ocorrerem interpretações forçadas do próprio texto legal. Portanto, não é surpreendente a observação de decisões exaradas com fundamentação em diplomas inaptos à criação de regulamentação acerca de determinadas matérias.

            A compensação de ofício está dentro desse grupo de inúmeros temas, afetados por discussões a respeito da validade (constitucionalidade) dos entendimentos aplicados pelo Fisco. Tal procedimento realiza-se quando, após pedido de restituição ou ressarcimento de tributos pagos indevidamente à Receita Federal, identifica-se a existência de débitos do sujeito passivo em aberto. Apesar de já fazer parte da rotina de parcela considerável das empresas, a compensação na modalidade aqui analisada tem-se mostrado mais um procedimento permeado por abusos do Fisco sobre aqueles que têm o dever jurídico de pagar tributos.

Diante desse cenário, é possível encontrar arbitrariedades e abusos respaldados por diplomas legais revestidos de uma aparente aptidão para regulamentar. Observa-se a flagrante irregularidade no procedimento apontado na Instrução Normativa RFB nº 1717/2017, que prevê em seu art. 89:

Art. 89. A restituição e o ressarcimento de tributos administrados pela RFB ou a restituição de pagamentos efetuados mediante Darf ou GPS cuja receita não seja administrada pela RFB será efetuada depois de verificada a ausência de débitos em nome do sujeito passivo credor perante a Fazenda Nacional.

§1º Existindo débito, ainda que consolidado em qualquer modalidade de parcelamento, inclusive de débito já encaminhado para inscrição em Dívida Ativa da União, de natureza tributária ou não, o valor da restituição ou do ressarcimento deverá ser utilizado para quitá-lo, mediante compensação em procedimento de ofício.

§2º A compensação de ofício de débito parcelado restringe-se aos parcelamentos não garantidos.

§3º Previamente à compensação de ofício, deverá ser solicitado ao sujeito passivo que se manifeste quanto ao procedimento no prazo de 15 (quinze) dias, contado da data do recebimento de comunicação formal enviada pela RFB, sendo o seu silêncio considerado como aquiescência.

§4º Na hipótese de o sujeito passivo discordar da compensação de ofício, a unidade da RFB competente para efetuar a compensação reterá o valor da restituição ou do ressarcimento até que o débito seja liquidado.

§5º Havendo concordância do sujeito passivo, expressa ou tácita, quanto à compensação, esta será efetuada na ordem estabelecida nesta Instrução Normativa. [...][i] (grifo nosso)

            A Receita Federal impõe, por meio de Instrução Normativa, a realização da compensação de ofício sobre débitos parcelados pelo sujeito passivo, com a limitação aos parcelamentos sem garantia. Inócua, esta última disposição, pois, sob a óptica do Código Tributário Nacional, já se observa a flagrante ofensa ao ordenamento jurídico, uma vez que o art. 151, VI, do CTN expressa que o parcelamento é condição suspensiva da exigibilidade do crédito tributário, sendo incabível sua compensação nos moldes aplicados pelo Fisco, pois conflita com a referida norma.

            Ainda são passíveis de destaque as determinações dos parágrafos 3º, 4º e 5º, que tratam da anuência do sujeito passivo, que, em caso de discordância, terá o valor da restituição ou do ressarcimento retido até o pagamento do débito. E, ainda, caso se manifeste favoravelmente à compensação, não terá direito à escolha da ordem dos débitos submetidos ao procedimento, que respeitará aquela prevista nos artigos subsequentes da IN RFB nº 1717/2017, na qual se verifica novamente a determinação indevida da compensação de débitos parcelados.

            Nota-se uma incoerência lógica, vez que algo posto em inexigibilidade (por força legal) não pode ser cobrado, mas acaba sendo, disfarçadamente, quando é feita a compensação de ofício.

            Imagine-se a hipótese em que o sujeito passivo não possui débitos em aberto, apenas um parcelamento regular de dívida tributária, e busca a restituição de um valor perante a Receita Federal. O órgão verificará a existência dos débitos parcelados e fará um pedido de manifestação ao sujeito passivo a respeito da compensação de ofício. No caso de concordância com o procedimento, o sujeito verá o crédito restituível ser compensado com o débito parcelado.

            É importante chamar a atenção do contribuinte para o momento em que se inaugura o procedimento da compensação de ofício, pois o documento emanado do Fisco traz, nas entrelinhas, os artigos da referida Instrução Normativa, conteúdo com os quais, o contribuinte acaba anuindo sem a reflexão necessária e diante de informações incompletas, assimétricas. Entende-se que tal documento não pode gerar repercussão negativa ao contribuinte, a ponto de compensar créditos tributários de exigibilidade suspensa pelo parcelamento, mas apenas autorizar a compensação de forma legal, desconsiderados os dispositivos cuja constitucionalidade está sendo questionada, cabendo, portanto, controle do Poder Judiciário neste aspecto. 

            Como visto, a atuação da RFB tem obstado a restituição de valores e, em alguns casos específicos, compensado débitos parcelados, mesmo com a existência de outros débitos exigíveis. As consequências podem ser graves para empresários que dependam de valores provenientes de restituições e de certidões para participarem de certames licitatórios, não raro essenciais para a manutenção da atividade empresarial.

            Não obstante a existência de observações quanto à força legal de instruções normativas e soluções de consulta da Receita Federal, a compensação de ofício também é disposta em lei ordinária, constituindo-se no maior argumento fazendário. Trata-se de disposição do art. 73 da Lei nº 9.430/1996, que possui a seguinte redação:

Art. 73.  A restituição e o ressarcimento de tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil ou a restituição de pagamentos efetuados mediante DARF e GPS cuja receita não seja administrada pela Secretaria da Receita Federal do Brasil será efetuada depois de verificada a ausência de débitos em nome do sujeito passivo credor perante a Fazenda Nacional.

Parágrafo único.  Existindo débitos, não parcelados ou parcelados sem garantia, inclusive inscritos em Dívida Ativa da União, os créditos serão utilizados para quitação desses débitos, observado o seguinte:                   

I - o valor bruto da restituição ou do ressarcimento será debitado à conta do tributo a que se referir;

II - a parcela utilizada para a quitação de débitos do contribuinte ou responsável será creditada à conta do respectivo tributo.[ii] (grifo nosso)

            A Receita Federal tem realizado as compensações de ofício sobre débitos parcelados, embasando tal conduta na existência da disposição legal colacionada acima. Todavia, há ainda algo mais importante a se ressaltar sobre esse ponto da legislação.

            A Corte Especial do Tribunal Regional Federal da Quarta Região julgou recentemente a Arguição de Inconstitucionalidade nº 5025932-62.2014.404.0000, declarando a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 73 da Lei nº 9.430/1996, incluído pela Lei nº 12.844/2013, por afronta ao art. 146, III, b, da Constituição Federal.

            Vejamos a ementa do Acórdão:

TRIBUTÁRIO. INCONSTITUCIONALIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 73 DA LEI Nº 9.430/96, INCLUÍDO PELA LEI Nº 12.844/2013. AFRONTA AO ART. 146, III, 'B' DA CF/88. 1. A norma prevista no parágrafo único do art. 73 da Lei nº 9.430/96 (incluído pela Lei nº 12.844/13) é inconstitucional, pois afronta o disposto no art. 146, III, 'b' da CF/88. Isso porque, com a finalidade única de permitir que o Fisco realize compensação de ofício de débito parcelado sem garantia, condiciona a eficácia plena da hipótese de suspensão do crédito tributário, no caso, o 'parcelamento' (CTN - art. 151, VI), à condição não prevista em Lei Complementar. Em outras palavras, retira os efeitos da própria suspensão da exigibilidade do crédito tributário prevista em Lei Complementar. 2. Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade acolhido pela Corte Especial. Declarada a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 73 da Lei nº 9.430/96 (incluído pela Lei nº 12.844/13). (TRF4 5025932-62.2014.4.04.0000, CORTE ESPECIAL, Relator OTÁVIO ROBERTO PAMPLONA, Julgamento em 27/11/2014)[iii]

            O julgamento refere-se justamente ao artigo 73, mais especificamente sobre seu parágrafo único, utilizado constantemente pela RFB para respaldar sua conduta abusiva. Seguindo jurisprudência do STJ, pacífica no sentido de que não é cabível a imposição de compensação de ofício sobre débitos do sujeito passivo que se encontram com a exigibilidade suspensa, o colegiado decidiu pela inconstitucionalidade formal do referido dispositivo, vez que contraria a disposição de que cabe à lei complementar o estabelecimento de normas gerais em matéria tributária, especialmente sobre o crédito, como prescreve a alínea b, do inciso III, do art. 146 da Constituição Federal.

            A discussão foi levada ao âmbito do Supremo Tribunal Federal, decidindo-se pela configuração da repercussão geral em matéria constitucional, no RE nº 917.285/SC, de relatoria do Ministro Dias Toffoli. A União manifesta-se pelo cabimento de compensação, aduzindo uma série de argumentos, como o de que o art. 146 da Lei Maior não exige que a disciplina e as condições de parcelamentos concedidos ao sujeito passivo sejam estabelecidas por lei complementar. Nesse sentido, afirma que o art. 155-A do Código Tributário Nacional estabelece que a regulamentação de parcelamento deve ser realizada por lei ordinária e, por isso, mediante a mesma espécie normativa, podem ser previstas regras de compensação de ofício.  Aduz-se, ainda, pela Fazenda Nacional, que o art. 170 do CTN delega à lei ordinária o estabelecimento de garantias e condições para a compensação, sendo a exigibilidade indissociável do crédito tributário, o que viabiliza o procedimento quando a dívida é líquida e certa.

            Favorecendo os sujeitos passivos, a tese de que a compensação de créditos desprovidos de exigibilidade não é autorizada pelo CTN tem força relevante, juntamente com aquela que reputa obrigatória a edição de lei complementar para a realização de tal procedimento. Por mais numerosos que sejam os argumentos do Fisco, há de se ressaltar o resultado do julgamento realizado pela Corte Especial do TRF4, considerando a existência de afronta à Constituição na Lei nº 9.430/1996.

            É possível concluir que os esforços da União buscam impedir que o sujeito passivo receba créditos quando ainda possuir débitos com o Fisco, o que contraria o interesse público, consubstanciado na arrecadação tributária. No entanto, são grandes as chances de que o julgamento do RE nº 917.285/SC declare inconstitucional a disposição do parágrafo único do art. 73 da lei supracitada, confirmando a atuação abusiva da Receita Federal. É absolutamente ilógico que débitos tributários com exigibilidade suspensa por força de lei sejam compensados com créditos que poderiam ser restituídos aos sujeitos passivos, porque esse procedimento retira a eficácia da suspensão atribuída.

Enquanto ainda pendente de julgamento, a questão leva pessoas físicas e jurídicas a se socorrerem do Judiciário para reverter ou evitar a compensação de ofício sobre os créditos com exigibilidade suspensa. Os valores pleiteados em pedidos administrativos de restituição ou ressarcimento podem ser fundamentais para a saúde financeira de uma empresa, por exemplo, sendo incabível a retenção com base em um equívoco do legislador.

No universo legislativo das normas de direito tributário, é frequente o surgimento de polêmicas e contrapontos de grande magnitude. Diante de mais um caso de possível inconstitucionalidade, resta a espera pelo julgamento justo e favorável aos direitos dos sujeitos passivos, que concretizam importante defesa contra as arbitrariedades da Fazenda Pública.

Conclui-se que o resultado do julgamento no plenário do STF poderá impactar sobremaneira a rotina financeira de grande parte das empresas. Atenção redobrada para aquelas que se utilizam de créditos, apesar de aproveitarem os benefícios de parcelamentos tributários, pois, em caso de confirmação da inconstitucionalidade, poderão obter a restituição de valores que costumeiramente seriam retidos pela Receita Federal.

 

Notas e Referências

[i] BRASIL. Instrução Normativa RFB nº 1717, de 17 de julho de 2017. Estabelece normas sobre restituição, compensação, ressarcimento e reembolso, no âmbito da Secretaria da Receita Federal do Brasil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 18 jul. 2017. Disponível em: < http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=84503>. 

[ii] BRASIL. Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996. Dispõe sobre a legislação tributária federal, as contribuições para a seguridade social, o processo administrativo de consulta e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 30 dez. 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9430.htm>.

[iii] TRF4. Arguição de Inconstitucionalidade: nº 5025932-62.2014.4.04.0000. Relator: Otávio Roberto Pamplona. Julgamento: 27/11/2014. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, 2014. Disponível em: <https://eproc.trf4.jus.br/eproc2trf4/controlador.php?acao=acessar_documento_publico&doc=41417190222396471030000000003&evento=490&key=40cd939bc34c023fc79e98d5fa6d5712b0604bc1789908902caa51b90acaf509&hash=93e17cfd9aed5efc3a35ef3ac019cce2>.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Hammer Books // Foto de: succo // Sem alterações

Disponível em: https://pixabay.com/en/hammer-books-law-court-lawyer-719066/

Licença de uso: https://pixabay.com/en/service/terms/#usage

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura