Tratamento em Hospitais de Custódia a partir do Filme “Ilha do Medo”  

20/11/2020

O longa metragem “Ilha do Medo”, dirigido por Martin Scorsese e lançado no ano de 2010, foi baseado no romance de Dennis Lehane, escrito em 2003. Cineasta, roteirista e ator, o norte-americano Martin Scorsese ganhou diversas premiações, entre elas com os filmes “O lobo de Wall Street” e “Os bons companheiros”. Recentemente, em 2019, estreou o filme “O Irlandês”. A maioria de seus trabalhos é dramático e com a história do filme em tela não foi diferente, tendo em vista que se baseia na vida de um criminoso esquizofrênico.

O filme tem como protagonista Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio), um veterano da Segunda Guerra Mundial e investigador da Polícia Federal americana, que sente fortes enxaquecas e visões envolvendo suas memórias da guerra, além de alucinações com sua falecida esposa, morta em um incêndio provocado por Andrew Laeddis (Elias Koteas), zelador do prédio onde moravam. Em 1954, ele e seu parceiro, o xerife Chuck (Mark Ruffalo), são chamados para investigar o desaparecimento de uma paciente de Ashecliffe, um hospital de custódia e tratamento psiquiátrico localizado em uma ilha.

Os hospitais psiquiátricos, também conhecidos por manicômios, são instituições que por muito tempo se mantiveram como único local de tratamento para pessoas com problemas mentais, isolando-as da sociedade (Santos, Farias e Pinto, 2015). A própria família dos pacientes psiquiátricos optava pela sua institucionalização, ao acreditar que o tratamento do transtorno mental deveria ser feito unicamente por médicos em hospitais, como pode ser observado no trecho abaixo.

Durante séculos, o doente foi retirado da família e postulou-se que ele precisava ser cuidado por quem sabia cuidar e tinha o “saber e a cura” - os médicos -, e em local adequado e isolado, separado da família e da sociedade - o hospital (Maciel et al., 2009).

Entretanto, com a Reforma Psiquiátrica, que teve início na Itália, em 1970, e chegou ao Brasil no fim desta década a partir do movimento antimanicomial, a realidade sobre a violência nessas instituições foi revelada e novas ideias de tratamento surgiram a fim restabelecer os direitos civis desses indivíduos (Maia e Fernandes, 2002). Apenas em abril de 2001, com a Lei nº.10.216/2001 (BRASIL, 2001), houve o decreto de extinção dos manicômios e o surgimento de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), onde as pessoas acometidas por doenças mentais seriam mantidas no ambiente da sociedade e receberiam tratamento digno (Maia e Fernandes, 2002; Santos, Farias e Pinto, 2015).

A relação entre o doente mental e a sua família sempre apareceu conflituosa, uma vez que a aceitação da doença e o convívio com o paciente são adaptações a serem feitas por um processo bastante complexo (Spadini e Souza, 2006). Ademais, o doente mental encontra dificuldades para interagir socialmente e, consequentemente, para entrar no mercado de trabalho, resultando em sua exclusão deste setor e dependência perante a família. Para Rodrigues, Marinho e Amorim (2010), o trabalho é um meio de inclusão social entre essas pessoas e um direito de cidadania, o que difere de ações humanistas, assistenciais ou terapêuticas (Rodrigues, Marinho e Amorim, 2010).

Em se tratando de pessoas diagnosticadas com problemas mentais e que cometeram infrações, a hospitalização ocorre em locais denominados hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico (HCTP) ou denominados manicômios judiciários (Santos, Faria e Pinto, 2015; Lira, 2016). Estes indivíduos são considerados inimputáveis, sendo absolvidos do cumprimento de pena por não entenderem o caráter ilícito de seus atos devido a doença mental comprovada judicialmente e, como medida de segurança, são compulsoriamente internados nesses hospitais (Emerim e Souza, 2016).  Esta internação faz com que sejam excluídos da sociedade, ao mesmo tempo em que, muitas vezes, não recebem tratamento adequado - conforme visualizado entre os pacientes de Ashecliffe - o que fere os direitos humanos perante a legislação brasileira (Lira, 2016).

Desde as antigas civilizações, as pessoas consideradas “anormais” eram abandonadas e acabavam por morrer de fome ou por ataque de animais (Spadini e Souza, 2006). Há registros de que a sua marginalização começou a ocorrer de modo evidente após a revolução industrial, momento em que se associou o distúrbio mental à incapacidade de ser produtivo, fato intolerável para uma sociedade fundamentada no trabalho (Mota e Barros, 2008).

Os procedimentos invasivos surgiram a fim de controlar o distúrbio mental e as alterações emocionais e comportamentais inerentes a ele. Dentre estes métodos, destacam-se as intervenções cirúrgicas no cérebro conhecidas como psicocirurgias e que consistem na “implantação de eletrodos, destruição ou estimulação direta do cérebro por qualquer meio” (Fins, 2003). Uma das técnicas psicocirúrgicas mais famosas, que foi considerada equivocadamente assertiva para o tratamento de transtornos mentais, é a lobotomia, difundida pelo médico Walter Freeman (Alves, Bombarda e Bacheschi, 2004). Este modelo de intervenção é citado no filme (Foto 1) por ser uma forma de suprimir os “maus comportamentos” apresentados pelos pacientes, todavia, de forma cruel e desumana.

Foto 1: Cena do filme.

 

Fonte: Ilha do Medo (2010).

Masiero (2003) descreve que as evidências sobre a efetividade da lobotomia não eram suficientes para uma aplicação em larga escala em seres humanos, no entanto, logo se disseminou por todo o mundo, chegando ao Brasil em 1936. O autor ressalta que não houve consenso técnico sobre esta intervenção e a mesma mostrou-se muito perigosa e invasiva com porcentagem significativa de complicações e de óbitos.

Observa-se que a cura nunca foi alcançada, pois o que se obtinha era a anulação de determinados comportamentos dos pacientes, os quais se tornavam passivos e apáticos por conta do procedimento, conforme se verifica no filme em uma das falas do médico (Foto 2). Assim, a reinserção social jamais era conquistada e a consequência era um tratamento ineficaz.

Foto 2: Cena do filme.

 

Fonte: Ilha do Medo (2010).

É importante refletir sobre os verdadeiros interesses da lobotomia, tendo em vista que a técnica perdurou mesmo após a constatação de que os benefícios não compensavam os riscos e prejuízos físicos e psicológicos aos pacientes (Masiero, 2003). O autor cita que um dos principais objetivos das psicocirurgias foi a diminuição do número pessoas internadas em hospitais psiquiátricos e de custódia, a fim de reduzir os gastos públicos com esta população.  

Na década de 70, com os movimentos a favor da Reforma Psiquiátrica e com a aprovação de documentos governamentais, buscou-se mudar a realidade do sistema brasileiro no que tange ao tratamento psiquiátrico. A Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados estabeleceu, em dezembro de 1991, os Princípios para a Proteção de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e para a Melhoria da Assistência à Saúde Mental. Em relação a medicação destes pacientes, destaca-se o parágrafo 14:

A psico-cirurgia e outros tratamentos invasivos e irreversíveis para transtornos mentais, jamais serão realizadas em um paciente que esteja involuntariamente em um estabelecimento de saúde mental e, na medida em que a legislação nacional permita sua realização, somente poderão ser realizados em qualquer outro tipo de usuário quando este tiver dado seu consentimento informado e um corpo de profissionais externo estiver convencido de que houve genuinamente um consentimento informado, e de que o tratamento é o que melhor atende às necessidades de saúde do usuário.

No Brasil, de acordo com informações do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (INFOPEN), em relatório de junho de 2016, havia 3.770 pessoas com medidas de segurança abrigadas em HCTP. Estes locais, de acordo com a Política de Saúde Mental do país, deveriam ser substituídos, já que é onde persiste o ambiente de uma “massa de iguais”- mesmo uniforme, mesmos horários, mesmo tratamento, mesmo lugar social (louco e criminoso), mesma atribuição (perigoso) e mesmo destino (estar trancafiado) (Emerim e Souza, 2016). Os atendimentos a estes inimputáveis deveriam ser prestados principalmente em ambulatórios ou CAPS, com tratamento individualizado e adequado, evitando a internação prolongada e ininterrupta (Santos, Farias e Pinto, 2015; Lira, 2016).

A alagoana Nise Magalhães da Silveira (1905 a 1999), reconhecida mundialmente por sua contribuição à psiquiatria, dedicou-se à humanização do trabalho com doentes mentais e de forma contrária a métodos que considerava agressivos, tais como o confinamento em hospitais psiquiátricos e as lobotomias. Em entrevista publicada (Santos, 1994), fez um relato que merece ser refletido diante de quaisquer tratamentos com o intuito verdadeiro de recuperar a saúde mental. Ela conta que certa vez um paciente lhe ofereceu “um coração em madeira e no centro do coração um livro aberto...” dizendo, "um livro é muito importante, a ciência é muito importante, mas se se desprender do coração não vale nada".

 

Notas e Referências

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Imagem Ilustrativa do Post:Ilha do Medo - Foto Tereza Torres // Foto de: Turismo Bahia // Sem alterações

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