TRANSFEMINICÍDIOS NO BRASIL: UMA VISÃO JURÍDICA ANTROPOLÓGICA

28/11/2023

Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), em parceria com o Observatório da Saúde LGBT e com o Núcleo de Estudos em Saúde Pública do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares – Ceam/UnB da Universidade de Brasília, o Mapa dos Assassinatos de Travestis e Transexuais no Brasil em 2017, revela que naquele ano 179 pessoas trans foram assassinadas. Dentre essas, 169 eram travestis e mulheres transexuais e 10 homens trans, dos quais 18 casos tiveram suspeitos presos, o que representa 10% dos casos. Esse resultado coloca o Brasil na liderança do ranking mundial de assassinatos de travestis e transexuais.

A cada 48h uma pessoa trans é assassinada no Brasil. De acordo com a ONG internacional Transgender Europe (TGEU), que monitora os assassinatos de travestis e transexuais pelo mundo, entre 01 de outubro de 2016 e 30 de setembro de 2017, foram assassinadas 171 pessoas trans no Brasil, seguidos de 56 mortes no México, 25 nos Estados Unidos, 10 na Colômbia e 7 na Argentina e El Salvador no mesmo período (ANTRA, 2017).

No Brasil existem legislações protetivas de gênero feminino, no que diz respeito à prevenção, repressão e combate à violência como é o caso da Lei Maria da Penha – Lei 11340/2006, e do Feminicídio – 13.104/15. Contudo, apesar da existência dessas, parece haver um entrave na sua aplicação na realidade de mulheres trans.

O ordenamento jurídico pátrio e internacional, são pacíficos quanto ao entendimento que o Direito a Igualdade (Não discriminação, de sexo, raça, cor, etnia e religião), é Direito Humano Fundamental. Isto é demonstrado, por meio do artigo 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil, bem como do artigo 1º da Convenção Americana de Direitos Humanos, artigo 2.1 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e artigo 2.2 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, podendo-se citar, uma profusão de outras legislações opta-se por escolher estas em que fica claro a não discriminação quanto ao sexo.

Quanto a não distinção de sexo, amplamente utilizada nas legislações, decide-se pela interpretação sistêmica, uma vez que não refere-se apenas à prática sexual, que envolve uma atividade física, mas sim a sexualidade, característica comum a todo ser humano, e compreendida como um aspecto biológico que engloba fatores endógenos e exógenos por meio do sinergismo multifatorial, ou seja, como contexto social, cultural, histórico, psicológico, econômico, político, religioso e éticos em que o sujeito está inserido.

Dessa feita, a sexualidade nutre-se da interação social, de forma especial e profunda por meio da comunicação do indivíduo consigo mesmo e com o outro. Sobre esse aspecto a Organização Mundial da Saúde – OMS (2001), afirma ser a sexualidade “uma energia que nos motiva para procurar amor, contato, ternura e intimidade” e ela “influencia pensamentos, sentimentos, ações e interações e, por isso, influencia também a nossa saúde física e mental”

A sexualidade relaciona-se com o que o ser humano é capaz de sentir, expressar e represar no âmbito de seu ser, é ainda a maneira que o ser humano se coloca no mundo. Portanto, afirma-se que designação de gênero se refere a escolha inicial, feita ainda no nascimento, por isso chamada de gênero de nascimento, e é de forma preliminar a escolha entre o masculino e o feminino, por terceiro. Passo outro a identidade de gênero é uma categoria de identidade social, assim, Cunha (2018) afirma que:

(...) Identidade de gênero, conceito que se mostra conexo com a percepção ou pertencimento do indivíduo com relação ao seu gênero, independente da sua constituição fenotípica, em eu se inserem os cisgneros (aqueles que expressam gênero compatível com sua condição física de nascimento) e os transgêneros (pessoas que apresentam uma incompatibilidade físico – psíquica, fazendo com que se entendam pertencentes a um gênero distinto daquele que ordinariamente é conferido a seu sexo de nascimento), sendo que este último grupo estão os transexuais, inseridos como portadores da disforia de gênero (código 302), conforme preconiza o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos mentais (DSM-V) da Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Associantio – APA) e inserido no Código Internacional de Doenças (CID – F64.).” GRIFO NOSSO

A identidade de gênero guarda características humanas intrínsecas capaz de provocar grande aceitação ou sofrimento tanto individual quanto coletivo à sociedade. As pessoas trans, de acordo com quinta versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM – V), referem-se ao amplo espectro de indivíduos que, de forma transitória ou persistente, se identificam com um gênero diferente do nascimento. O transexual indica um indivíduo que busca ou que percorre por uma transição social de masculino para feminino ou de feminino para masculino, o que, em muitos casos, envolve também uma transição somática por tratamento hormonal e cirurgia genital (cirurgia de redesignação sexual), ainda conforme a DSM-V.

Até 18 de junho de 2018, a OMS, considerava o transgênero, uma disforia de gênero, no entanto durante o lançamento da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 11), foi anunciada a retirada dos transtornos de identidade de gênero do capítulo de doenças mentais.

A retirada da transexualidade como disforia de gênero, implica na mesma ser entendida com incongruência de gênero, colocando-a no capítulo sobre saúde sexual. Ainda de acordo com OMS, existem evidências de que a incongruência de gênero não se trata de um transtorno mental, mas que ainda “há a necessidade de garantir atendimento às demandas específicas de saúde da população trans”, o que explica o fato do termo não ter sido retirado totalmente da CID. Essa alteração será vigente a partir de 01 de janeiro de 2022, no entanto, em que pese ser um avanço, não foi capaz de retirar da população de transexuais e travestis os impactos do estigma e da discriminação no Brasil.

A temática em questão, em razão das consequências nocivas em desfavor das mulheres trans vítimas de feminicídio, bem como de seus familiares, tem sido motivo de preocupação de diversos setores da sociedade civil organizada. No Brasil existem legislações protetivas de gênero, como é o caso da Lei Maria da Penha - Lei 11340/2006, e do Feminicídio - 13.104/15, no entanto em que pese o entendimento que essas leis são aplicáveis ao gênero feminino, conforme estabelece o artigo primeiro da Lei Maria da Penha, a aplicação como instrumento de proteção a mulher trans, sofre, críticas, bem como padece de adoecimento moral da sociedade que é o preconceito.

Feminicídio é, conforme Lei 13.104/2015, que alterou o Código Penal, em seu artigo 121, parágrafo segundo, matar mulher, por razões do sexo feminino, utilizandose a interpretação sistêmica do direito, tem-se que o feminicídio é crime de ódio, direcionado ao gênero feminino. Nesse sentido é importante nomear o problema, haja vista que é uma forma de visibilizar um cenário grave e permanente: milhares de mulheres (cis e trans) são mortas todos os anos no Brasil.

O Atlas da Violência 2020 informa que as denúncias contra a população LBTQI+, tem como entrave à escassez de indicadores de violência pormenorizada. Tal ausência, é a materialização do preconceito, uma vez que assassinato das mulheres transexuais e travestis no Brasil, sequer ganha visibilidade no atlas da violência, ou em qualquer outra fonte institucional. Nesse sentido é válido dizer que transfeminicídio é a tradução do mundo das ideias para o mundo fático, do preconceito e ódio, que ocasionam a morte dessas mulheres.

Para Bento (2014) o transfeminicídio é uma política disseminada, internacional e sistemática de eliminação da população trans. Nesse diapasão, em que pese os vultuosos números de morte de mulheres trans no país, não existe fonte Estatal oficial. Para o acompanhamento do número de violência existente, o trabalho é realizado por algumas ONGs, como é o caso da Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA

Afirma esta Associação, que os casos de transfeminicídios (ANTRA, 2018), registrados em 74 países, cerca de 40% ocorreram no Brasil, para além do elevado número de mortes, o assassinato de transexuais, sobretudo mulheres trans, é caracterizado, em sua maioria em razão da brutalidade de suas circunstâncias. A invisibilidade trans, no país como enfatiza Bento (2014), faz com que essas pessoas tenham dificuldade para ser reconhecidas desde a infância até a morte, já que durante a infância as pessoas trans são executadas:

quando as famílias descobrem que o filho ou a filha está se rebelando contra sua natureza e que desejam usar roupas e brinquedos que não são apropriados para o seu gênero, o caminho usado para ‘concerta-lo’ é a violência.” Mesmo depois de morrer o seu gênero é tirado de si e mesmo os ativistas não enfatizam o gênero ao fazerem a contabilidade dos mortos (BENTO, 2014 sem página).

Ainda de acordo com ANTRA em dossiê publicado em 29 de Janeiro de 2020, 124 pessoas trans foram assassinadas em 2019, a maioria das mortes em território brasileiro foi registrada na região Nordeste, onde 45 pessoas trans foram assassinadas, no total de vítimas, 97,7% eram do gênero feminino. Nesse sentido afirma-se que:

O transfeminício se caracteriza como uma política disseminada, intencional e sistemática de eliminação da população trans no Brasil, motivada pelo ódio e nojo. Qual a quantidade de mortes é suficiente para chegar a esta conclusão? No Brasil não há nenhuma fonte totalmente confiável. O que existe é um acompanhamento por algumas ONGs de ativistas LGBTT de matérias jornalísticas sobre as mortes de pessoas LGTT. Nestas notícias, as pessoas trans são apresentadas com o nome masculino e são identificados como "o travesti". E no âmbito conceitual são consideradas como vítimas da homofobia. Acredito, ao contrário, que as mortes das mulheres trans é uma expressão hiperbólica do lugar do feminino em nossa sociedade. Se o feminino representa aquilo que é desvalorizado socialmente, quando este feminino é encarnado em corpos que nasceram com pênis, há um transbordamento da consciência coletiva que é estruturada na crença de que a identidade de gênero é uma expressão do desejo dos cromossomas e dos hormônios. O que este transbordamento significa? Que não existe aparato conceitual, linguístico que justifica a existência das pessoas trans. Mesmo entre os gays, é notório que a violência mais cruenta é cometida contra aqueles que performatizam uma estilística corporal mais próxima ao feminino. Portanto, há algo de poluidor e contaminador no feminino (com diversos graus de exclusão) que precisam ser melhor explorados (BENTO, 2014, sem página ).

A invisibilidade do transfeminicídio ocasionada pelo preconceito gera insegurança jurídica e falseamento da realidade violenta nacional, assim as mulheres trans ficam em situação apática, esquecida e assintomática à realidade nacional.

 

Notas e referências

ANTRA - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS, Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019 / Bruna G. Benevides, Sayonara Naider Bonfim Nogueira (Orgs). – São Paulo: Expressão Popular, ANTRA, IBTE, 2020. Disponível em https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/01/dossic3aa-dos-assassinatos-e-daviolc3aancia-contra-pessoas-trans-em-2019.pdf. Acesso em 10 de out. de 2023.

ANDRADE, Luma Nogueira de. Travestis Na Escola: Assujeitamento ou Resistência à Ordem Normativa. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Fortaleza,escolar. Rev. Estud. Fem. vol.19 no.2 Florianópolis May/Aug. 2011. 2012. Disponível em:< http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- 026X2011000200016>. Acesso em: 12 out. 2023

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