(Trans)bordar a cultura do respeito à diversidade:  pessoas transgêneras e os contextos educacionais e de trabalho

07/07/2020

A educação brasileira sempre foi um tema que necessitou e ainda necessita de muita discussão quanto às suas bases, diretrizes, parâmetros e infraestrutura. Para além das defasagens no processo educacional que afetam os sujeitos do contexto escolar, algumas outras falhas no que concerne à integração e à relação desses sujeitos, como a falta de amparo, incentivo ao respeito, a aceitação e a convivência saudável com as diferenças, tomam espaço em tempos nos quais as diversidades são vistas com repulsa por uma perspectiva conservadora, que se espalha de maneira preocupante.

Importante, nesse contexto, portanto, discorrer acerca da posição das pessoas transgêneras nos ambientes educacionais brasileiros. A existência de bullying, dificuldades de interação interpessoal com os colegas de classe, docentes, membros da equipe de gestão escolar e membros da equipe de serviços gerais, bem como a segregação espacial por sexos que, por vezes, impede, por exemplo, a realização de necessidades fisiológicas de acordo com o gênero de identificação, são obstáculos vividos pelas pessoas transgêneras e que abalam negativamente o processo de aprendizagem desses indivíduos, promovendo a exclusão deles dos ambientes escolares.

A formação escolar básica é essencial para alcançar outros níveis de ensino como o profissionalizante e o superior. Por conseguinte, se não há um ambiente escolar acolhedor e que impulsione o alcance dos cursos técnicos e superiores, os efeitos negativos são sentidos no momento da procura por empregos no mercado de trabalho. Com um processo educacional falho, a plena capacidade de competição no mercado de trabalho resta deveras prejudicada, além do que, nesse mercado, o preconceito com as pessoas transgêneras também é visível, ou melhor, invisível, pois, dado o conservadorismo existente em grande parte das organizações de trabalho, seus ambientes são hostis e segregadores. Logo, as pessoas transgêneras não são vistas nestes ambientes, porque são excluídas.

Nesse sentido, o estudo realizado visa analisar as instituições escolar e de trabalho sob o olhar da cultura do respeito às diferenças inerentes a todos os seres humanos, a fim de compreender o lugar de ser e estar das pessoas transgêneras nestes espaços.  Para abranger este objetivo, foi realizado um estudo pautado na revisão da literatura com enfoque qualitativo. Assim, foi possível tecer reflexões acerca de como uma educação não-inclusiva pode reverberar negativamente no mercado de trabalho.

 

1. Gênero, identidade de gênero e pessoas transgêneras

Antes de conceituar o que vem a ser a expressão “pessoas transgêneras”, é necessário conhecer o termo gênero. Segundo Butler (2018, p. 21), gênero pode ser entendido como uma influência de diferentes contextos históricos, os quais são caracterizados por diversas “[...] modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas.” Dessa forma, o gênero é uma construção cultural, e pode ser definido como “significados culturais assumidos pelo corpo sexuado” (BUTLER, 2018, p. 26).

À vista da conceituação de gênero, é necessário atentar-se para a definição de “identidade de gênero”. A identidade se relaciona com a forma como a pessoa se reconhece dentro dos padrões de gênero: feminino e masculino. Desse modo, as pessoas que se identificam com o gênero igual ao sexo de nascimento são chamadas de cisgênero, enquanto as pessoas que não se identificam com nenhum desses dois gêneros são chamadas de agêneros. Ainda, existem pessoas que se identificam com ambos os gêneros e são considerados intergêneros, andróginos, bigêneros e/ou crossdresser (BRASIL, 2016).

Com os conceitos de gênero e de identidade de gênero já expostos, é possível compreender que o termo transgênero pode ser utilizado de forma genérica para “descrever qualquer pessoa que se identifique com um gênero diferente ao do sexo de nascimento” (BRASIL, 2016, p.10). O referido termo abarca pessoas transexuais e travestis. Transexuais referem-se às “pessoas que nascem com o sexo biológico diferente do gênero com que se reconhecem”, de modo geral, pode-se considerar que “desejam ser reconhecidas pelo gênero ao qual se identificam”. Ademais, “as pessoas que nascem com o sexo masculino e que se identificam com o gênero feminino, exercendo seu papel de gênero feminino” são consideradas travestis (BRASIL, 2016, p.11).

A partir das conceituações, é importante destacar que a concepção de um ser humano pode ser olhada sob diferentes pontos de vista. Dessa forma, a concepção adotada neste estudo refere-se a tomar como constituição da individualidade de uma pessoa as suas dimensões biológicas, psicológicas, sociais e culturais. Assim, é possível identificar e compreender as especificidades e diferenças existentes em cada indivíduo, as quais constituem a diversidade na sociedade. O ser humano será tomado, aqui, portanto, como um ser biopsicossociocultural.

À vista disso, vale ressaltar que a constituição de gênero, também tende a apresentar interferência do fator biológico. Segundo estudos recentes, a dimensão biológica pode ter mais influência do que se pensava na constituição de pessoas transgêneras. Os estudos mostram que na formação do ser humano, durante a gestação, a genitália desenvolve-se antes do cérebro. Logo, torna-se visível a possibilidade de uma pessoa nascer com uma genitália feminina, mas identificar-se com o gênero masculino, bem como o contrário. Esse fenômeno ocorrido na gestação estaria ligado à influência de diferentes hormônios e substâncias que gerenciam a construção de diversas partes do corpo. Nesse sentido, além do aspecto social, a transgeneridade também pode ser compreendida sob o prisma biológico (BAO; SWAAB, 2011 apud SARASWAT; WELNAND; SAFER, 2015).

Partindo do pressuposto de que todos os indivíduos são iguais, enquanto seres humanos e que cada ser humano possui características próprias influenciadas por aspectos biopsicossociais, não cabe conceber qualquer forma de discriminação e segregação negativas devido as suas diferenças. No entanto, a posição das pessoas transgêneras na comunidade é permeada por diversos obstáculos como preconceito, transfobia, bullying e desrespeito pela sua identidade. Ainda na fase escolar, cujo ambiente reproduz o sistema de exclusão presente na sociedade, as pessoas transgêneras convivem com muitas barreiras impedindo-as à completa e saudável formação acadêmica. E, essas falhas no sistema educacional brasileiro, o qual não apresenta uma faceta inclusiva, acabam por refletir em como as pessoas transgêneras são recebidas e mantidas no mercado de trabalho.

 

2. Processo educacional falho e suas implicações no mercado de trabalho

Ao longo dos anos, a discussão sobre pessoas transgêneras no mercado de trabalho tem ganhando destaque. Isso porque há muito desconhecimento sobre o assunto, acarretando preconceito e desrespeito para com as pessoas transgêneras. O mercado de trabalho apresenta-se cada vez mais concorrente para as pessoas que buscam uma ocupação profissional e, neste âmbito, as pessoas transgêneras possuem ainda mais dificuldades em serem inseridas devido à falta de estudos ou qualificações, além da ausência de esclarecimentos das organizações de trabalho acerca da transgeneridade, podendo torná-la segregadora e excludente.

O preconceito destaca-se como um elemento que influi decisivamente na avaliação dos candidatos transgêneros que procuram, na maioria das vezes, sem obter sucesso, uma vaga de emprego. Nesse sentido, a objeção à aceitação dessas pessoas nos meios sociais começa já no seio dos diferentes arranjos familiares. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA – (2017), 13 anos, é a idade média em que pessoas transgêneras são expulsas de casa pelos genitores. Logo, com uma base familiar conturbada, o reflexo também chega no meio escolar (DIAS; BERNARDINELI, 2016).

Um ambiente escolar inclusivo, isto é, propício ao desenvolvimento da personalidade humana em todas as suas esferas, busca envolver todos os sujeitos do contexto escolar (estudantes, gestão escolar, professores, serviços gerais, arranjos familiares, comunidade, etc.) para cultuar o respeito às diferenças. De acordo com Cabezas, Ortega e Galán (2013 apud SALEIRO, 2017), uma das barreiras presentes desde os anos iniciais é a segregação espacial por sexos/gêneros na escola, a qual ocorre como um elemento de socialização nas escolas. Segundo essa expressão, os espaços na escola podem ser divididos em espaços sexuados fisicamente delimitados, a exemplo dos banheiros e vestiários e os demais espaços de convivência social, como as aulas de educação física – na qual se escalam times de meninas e times de meninos – e nos grupos de colegas que se formam nos trabalhos em equipe ou nas brincadeiras que ocorrem no intervalo entre as aulas (CABEZAS; ORTEGA; GALÁN, 2013 apud  SALEIRO, 2017).

Além da segregação de espaços, elemento estimulador de preconceito, quando não há uma política de inclusão e aceitação no ambiente escolar, o bullying aparece como outra barreira para a formação acadêmica das pessoas transgêneras. Nesse contexto, a formação dos professores pode ser vista como um fator importante na integração dos estudantes transgêneros no ambiente escolar, uma vez que docentes instruídos e capacitados são essenciais para mediar um processo de ensino e aprendizagem pautado na cultura do respeito às diferenças individuais que constituem cada ser humano, já que pode ocorrer de estudantes estarem imbuídos de crenças segregadoras e excludentes.

Por conta de ambientes escolares inóspitos, muitas vezes, as pessoas transgêneras acabam por abandonar os estudos, fato que, por si só, já é um obstáculo na entrada para o mercado de trabalho. Segundo dados do Projeto Arco-Íris/AfroReggae, cerca de apenas 0,02% das travestis e transexuais brasileiros estão cursando o ensino superior, ademais, 72% não possuem o ensino médio e 56% não completaram o ensino fundamental, base para a educação individual (ANTRA, 2017).

Diante disso, é possível perceber que os reflexos de um processo educacional falho são sentidos no mercado de trabalho, quando as pessoas transgêneras reivindicam o seu espaço. O preconceito e a discriminação negativa por parte dos empregadores pesam sobre o processo de contratação das pessoas transgêneras, fato que ocorre pela ausência de conhecimento popular das questões que permeiam a transgeneridade, além da deficiente estrutura de amparo estatal para tal minoria política. À vista disso, muitas pessoas transgêneras veem-se obrigadas a se prostituírem para subsistir, cerca de 90% dessa população trabalha na prostituição, conforme aponta a ANTRA (2017).

Em processos seletivos, muitos empregadores tendem a eliminar os candidatos transgêneros por causa da sua aparência e de seu nome, conforme ponderam Dias e Bernardineli (2016). As autoras acrescentam que, em grande parte dos casos, nos quais há contratação de pessoas transgêneras, estas tendem a ser submetidas a brincadeiras maliciosas e preconceituosas no ambiente de trabalho.  E chamam a atenção para a recorrente inserção das pessoas transgêneras em subempregos e prostituição, intensificada pela evasão escolar na infância, o que resulta na falta de oportunidades também na vida adulta.

Cabe destacar, outrossim, que muitas pessoas transgêneras enfrentam o constante desrespeito no que tange ao nome social. Então, vale a pena lembrar que, em março de 2018, na votação da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275, o Supremo Tribunal Federal considerou possível a alteração do prenome e gênero no assento civil independente da realização de cirurgia de transgenitalização e não sendo necessária autorização judicial. Por ser uma decisão recente, torna-se importante ponderar que nem todas as pessoas transgêneras já fizeram a troca de seu nome e de sexo nos documentos oficiais para ficar em consonância com sua identidade de gênero. E isso, em processos de recrutamento e seleção de pessoas, promovidos pelas organizações, no mercado de trabalho, pode suscitar situações desagradáveis, caso essas empresas não utilizem a política de adoção do nome social. Dessarte, ocorre o preconceito de pronto nessa fase de escolha de candidatos para vagas de emprego. Essa conjuntura decorre da comum associação física com os dados do documento, situação que constrange o candidato que está passando por um processo de avaliação de suas competências para uma determinada vaga. Fato que pode interferir no desempenho do candidato transgênero e, assim, criar obstáculos à sua inserção no mercado de trabalho.

Ademais, quando as pessoas transgêneras são contratadas, Dias e Bernardineli (2016) ressaltam que há existência de constrangimento, tanto no tocante à discordância da aparência física da pessoa com os dados que a identificam nos documentos oficiais, quanto à ridicularização refletida na circulação de piadas entre os funcionários. Na relação de subordinação, a questão torna-se ainda mais complicada, percebe-se, em muitos casos, a desvalorização do profissional, isto é, o empregador, por vezes, distribui tarefas inferiores ou que não condizem com as competências para as quais os trabalhadores transgêneros foram inicialmente contratados.

Segundo Lemões (2016), a questão da inclusão da diversidade nas organizações de trabalho é algo a ser dialogado na atualidade. Em busca de inovações, melhora da imagem pública e aumento da produtividade, empresas têm adotado a gestão da diversidade, ao contratar funcionários pertencentes a grupos vulneráveis como os homossexuais. No entanto, o que se percebe são diferentes graus de aceitação das diversidades, de maneira que as pessoas transgêneras (transexuais e travestis) ocupam um espaço de negligência no mercado de trabalho. De acordo com a autora, o papel da mídia de negócios referente à gestão da diversidade também é um fator de invisibilidade das pessoas transgêneras no mercado de trabalho, uma vez que, ao serem tratadas como sujeito coletivo, ou seja, apenas como símbolo do movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais – LGBT’s – suas individualidades são negadas.  

 

Considerações finais

O estudo realizado se propôs a analisar as relações existentes entre um processo educacional falho, presente no sistema de educação brasileiro e, as dificuldades e os obstáculos enfrentados pelas pessoas transgêneras na sua inserção e permanência no mercado de trabalho. Primeiramente, foram compreendidos os termos gênero, identidade de gênero e pessoas transgêneras. Nesse âmbito, foi possível observar que os fatores biopsicossociaisculturais podem influenciar na constituição do gênero. Desse modo, compreendeu-se, de acordo com os autores estudados, que a identidade de gênero se refere a percepção do indivíduo dentro dos padrões de gênero, feminino e masculino, construídos no meio social. Assim, pôde-se conceituar as pessoas transgêneras como pessoas que se reconhecem com um gênero diferente do sexo de nascimento.

A partir disso, foi tecido reflexões acerca dos ambientes educacionais, em que já no começo da educação básica, pode ser observado alguns obstáculos como a existência de bullying, dificuldades de interação interpessoal e a segregação espacial por sexos. Com um ambiente escolar hostil, as pessoas transgêneras tendem a não se sentirem estimuladas a concluir formação acadêmica de forma plena e, por esse motivo, podem conviver com dificuldades de inserção e permanência no mercado de trabalho. Ainda, pôde-se observar o preconceito presente dentro das organizações de trabalho, a exemplo do desrespeito ao nome social. Nesse sentido, considerou-se essencial a construção de um ambiente laboral inclusivo, o que se relaciona, em verdade, com a criação de diretrizes, parâmetros e estratégias que permitam desenvolver um ambiente cultuador do respeito e de aceitação das diversidades.

 

Notas e Referências

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS (ANTRA). Mapa dos assassinatos de travestis e transexuais no Brasil em 2017. 2018. Disponível em: <https://antrabrasil.files.wordpress.com/2018/02/relatc3b3rio-mapa-dos-assassinatos-2017-antra.pdf>. Acesso em: 26 jun. 2018.

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BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

CABEZAS, Luis Puche; ORTEGA, Elena Moreno; GALÁN, José Ignacio Pichardo. Adolescentes transexuales en las aulas. Aproximación cualitativa y propuestas de intervención desde la perspectiva antropológica. In CABRERA, Octavio Moreno; CABEZAS, Luis Puche. Transexualidad, adolescencias y educación. Miradas multidisciplinares. Madrid: Egales, 2013. p. 189-265.

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LEMÕES, Louise Lanes. A Diversidade Sexual nas Organizações: a (in) visibilidade de pessoas transexuais via mídia de negócios. 2016. 180 f. Dissertação (Pós-Graduação) - Curso de Sociologia, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2016.

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