“Tradições”, “costumes”,” religiões” e violência? o que diz a Carta Africana sobre os Direitos e Bem-estar da Criança

27/07/2021

 Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Sombras

O assassinato de crianças,

bem como todas as formas inimagináveis de violência

devem despertar em todos nós

a mais séria e responsável repulsa.

 

Sim, pois é repugnante um ser que

provoca dor no outro,

seja a física, psíquica, moral.

Quando um ser viola um outro,

não se trata de uma agressão isolada,

individualizada,

toda a humanidade é atingida, maculada,

pois cada um de nós chora

a lágrima do outro.

 

Sim, a violência nos corrói,

faz com que nos percamos,

perdemos o que nos caracteriza,

anulamos nossa humanidade.

 (Josiane Rose Petry Veronese)

Gostaria de iniciar este artigo falando de um outro lugar, de um outro olhar no tema da violência, tendo a criança como elemento humano central ao estudo. Sobretudo, as discussões em torno dos conceitos e das características relativas às tradições, costumes, religiões e, em específico, no que concerne a violência, representam por si, um dos espaços mais interessantes para aprofundar os diversos argumentos. De resto, seguindo a perspectiva da interculturalidade, essas temáticas versam como conceitos que necessitam avançar em sua compreensão, a dar conta da implantação de suas raízes, o que seria uma condição essencial para entabular um verdadeiro diálogo que aporte novos significados no combate de expressões e manifestações, as quais tenham, em sua essência, a violência.  

Na perspectiva de estudos da diversidade, da própria igualdade e da interculturalidade, a palavra violência define e reforça as imposições e os condicionamentos provenientes das relações de poder estabelecidas.

Não tenho a pretensão de adentrar na questão do multiculturalismo, o qual precisa ser respeitado e compreendido em suas diversas construções e concepções. De fato, não é sobre isto que desejo neste artigo.

O que penso que seja necessário refletirmos é a questão da violência, no caso, em específico, a violência contra a criança. Defendo a tese de que nenhuma realidade, condição, cultura, tradição, religião, possa justificar a violência, sob nenhum pretexto, ou argumento.

Neste momento, portanto, não trarei à análise as demarcações contra todas as formas de violência pautadas na Convenção sobre os Direitos da Criança, ONU, 1989, o que pode ser representando pelo seu artigo 19[1]:

1. Os Estados-Partes tomarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto estiver sob a guarda dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela.

2. Essas medidas de proteção deverão incluir, quando apropriado, procedimentos eficazes para o estabelecimento de programas sociais que proporcionem uma assistência adequada à criança e às pessoas encarregadas de seu cuidado, assim como outras formas de prevenção e identificação, notificação, transferência a uma instituição, investigação, tratamento e acompanhamento posterior de caso de maus-tratos a crianças. Acima mencionadas e, quando apropriado, intervenção judiciária.

O que apontarei neste texto é a Carta Africana sobre os Direitos e Bem-estar da Criança, tão pouco referendada nos estudos acadêmicos. Afinal, do que trata esta Carta?

O Sistema Africano de Proteção aos Direitos Humanos, além da Carta Africana sobre os Direitos Humanos, apresenta outros documentos específicos, como a Carta Africana sobre os Direitos e Bem-Estar da Criança Africana.

Essa Carta, adotada em 1º de julho de 1990, entrou em vigor em 29 de novembro de 1999. Tendo sido ratificada por 41 Estados-Partes, dos 53 Estados que fazem parte da Organização da Unidade Africana (OUA), atual União Africana (UA). Este instrumento institui um Comitê Africano de Peritos que tem a função de examinar os relatórios enviados pelos Estados-Partes, bem como recepciona e aprecia as queixas e elabora os inquéritos. Todo Estado-Parte deve submeter ao Comitê, nos dois anos seguidos à sua entrada e, posteriormente, a cada três anos, o Relatório (art. 43, 1, alíneas a e b). [2]

Artigo 1: Obrigação dos EstadosPartes

1. Os Estados Africanos Membros da Organização da Unidade Africana, Partes da presente Carta, reconhecem os direitos, liberdades e deveres consagrados na presente Carta e se engajarão no empreendimento de todas as medidas necessárias, em conformidade com os seus processos constitucionais e as disposições da presente Carta, para adoptar todas as medidas legislativas ou outras necessárias para efectivar às disposições da presente Carta.

2. Nenhuma disposição da presente Carta terá efeito sobre quaisquer outras disposições mais favoráveis à realização dos direitos e do bem-estar da criança, que figurem na legislação de um Estado-Parte ou noutros quaisquer acordos ou convenções internacionais em vigor no referido Estado.

3. Todo costume, tradição, prática cultural ou religiosa que for incompatível com os direitos, deveres e as obrigações contidas na presente Carta deverão ser desencorajados na medida de sua incompatibilidade. (grifou-se)

Some-se o Artigo 21, que vem reforçar a negativa às todas as práticas que em sua essência são violadoras ao desenvolvimento, ao bem-estar, à dignidade da criança:

Artigo 21: Protecção Contra as Práticas Sociais e Culturais Negativas

1. Os Estados Parte da presente Carta tomarão todas as medidas apropriadas para eliminar as práticas e costumes sociais e culturais prejudiciais que afectam o bem-estar, a dignidade, o crescimento normal e o desenvolvimento da criança, em particular:

(a) Àqueles costumes e práticas prejudiciais à saúde, ou à vida da criança; e

(b) Àqueles costumes e práticas que constituem uma discriminação da criança em função do sexo ou doutras razões.

2. O casamento de crianças e a promessa em casamento de jovens meninos e meninas são proibidos e serão tomadas acções eficazes, incluindo as legais, para especificar que a idade mínima de casamento é 18 anos e dever-se-á fazer o registo de todos os casamentos em um registo oficial.

É algo extremamente relevante que, o artigo 1, em inciso 3 e, depois, o artigo 21, façam esta advertência: não existe tradição, cultura, religião que imponham a violência. Não existe defesa para o castigo, para a dor, a exploração contra uma população vulnerável.  Tratando-se de um grande equívoco ao resgate de um multiculturalismo que se oponha à ampla universalização de direitos.

Práticas abusivas – em todas as suas formas e condições – praticadas contra crianças, precisam ser banidas. Sobre o conceito de “criança”, tem-se na Carta Africana sobre os Direitos e Bem-estar da Criança:

Artigo 2: Definição de uma Criança

Nos termos da presente Carta, ‘Criança’ significa todo o ser humano com idade  inferior a 18 anos.

Não existe um argumento lógico, plausível, que justifique a perpetuidade da dor imposta durante milênios às crianças, em várias raças, etnias, culturas, religiões. Nada!

Todo ato de violência nos causa profundo estranhamento. E a Carta Africana sobre os Direitos e Bem-estar da Criança vem, justamente ao encontro desse precioso argumento: só cresceremos em humanidade se obstarmos  todas as modalidades de violência. A criança precisa ser cuidada, a criança precisa ser protegida.

Quantos séculos, quantas gerações serão necessárias para que a violência seja, finalmente, abolida da terra?

A lista de violações é enorme, não há que se dizer, nominar como “tradição”, a supressão do clitóris, os anéis (argolas) colocadas nos pescoços, os sofrimentos em muitos rituais de passagem, o casamento infantil, a mendicância forçada (crianças talibés), a violência sexual... enfim, todas as formas nos diminuem enquanto humanidade, nos bestializam, nos barbarizam. A violência tem a obscuridade das sombras, o amor tem o despontar da luz.

 

Notas e Referências

Carta Africana dos Direitos e Bem-Estar da Criança. Disponível em: http://cdh.uem.mz/images/pdfs/Carta_Africana_dos_Direitos_e_Bem-Estar_da_Crianca.pdf. Acesso em: 13 maio 2021.

Convenção sobre os Direitos da Criança. Adoptada pela Assembleia Geral nas Nações Unidas em 20 de novembro de 1989. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/textos/tratado11.htm. Acesso em: 13 maio 2021

[1] Convenção sobre os Direitos da Criança. Adoptada pela Assembleia Geral nas Nações Unidas em 20 de novembro de 1989. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/textos/tratado11.htm. Acesso em: 13 maio 2021.

[2] Carta Africana dos Direitos e Bem-Estar da Criança. Disponível em: http://cdh.uem.mz/images/pdfs/Carta_Africana_dos_Direitos_e_Bem-Estar_da_Crianca.pdf. Acesso em: 13 maio 2021.

 

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