TRABALHO INFANTIL E REFORMA TRABALHISTA  

18/08/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

Devemos compreender o “trabalho infantil”, em conformidade com as Convenções n. 138 e n. 182 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, como a atividade laboral realizada por sujeitos abaixo da idade mínima de admissão ao emprego ou trabalho estabelecida no país. Há que se registrar, inclusive, algo importantíssimo ocorrido no dia 4 de agosto: todos os 187 Estados membros da OIT – Organização Internacional do Trabalho ratificaram a Convenção 182 sobre as Piores Formas de Trabalho Infantil, portanto, uma ratificação universal, após a sua ratificação pelo Reino de Tonga. Esse fato configura-se no compromisso global da proteção contra as piores formas de trabalho infantil. Não restam dúvidas de que se trata de um momento histórico, em especial, em época assolada pela pandemia.

O trabalho infantil no Brasil decorre de causas complexas, como a herança escravocrata, a pobreza e baixa renda familiar, práticas de vigilância e repressão, a moralização do trabalho, a invisibilidade da exploração da mão de obra de crianças e adolescentes, a ausência de políticas publicas, e, ainda, o próprio consentimento familiar. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que consolida a Doutrina da Proteção Integral, em seu art. 227, referencia as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos, cujo atendimento tornou-se absolutamente prioritário pela família, pela sociedade, e pelo Estado.

Atualmente o Brasil se apresenta junto à comunidade internacional como referência no que tange a políticas públicas para a prevenção e eliminação do trabalho infantil. Desde meados da década de 1990, o Estado brasileiro reconheceu a ocorrência do problema e implementou fortes medidas nesse sentido. Elencam-se nessa perspectiva: a ratificação da Convenção n. 182 da OIT, a inserção de Direitos Fundamentais das crianças e dos adolescentes na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente. No Brasil, os limites para o efetivo ingresso no mercado de trabalho estão previstos no art. 7º, XXXIII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, alterado pela Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, que permite a realização de trabalho a partir dos 16 anos e, na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos de idade (ressalvadas as condições proibitivas que o vedam antes dos dezoito anos). In verbis: “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] XXXIII - proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos; [...]”.

Além disso, a ratificação da Convenção n. 182, da OIT, trouxe ao país a necessidade de delimitar as “piores formas de trabalho infantil”, para então elaborar-se políticas públicas, com a participação de organizações da sociedade civil, destinadas ao combate desta realidade. A expressão “piores formas de trabalho infantil” não intentou validar alguma forma de trabalho infantil, uma vez que todas são prejudiciais ao desenvolvimento das crianças, mas estabelecer metas prioritárias para ações urgentes de erradicação do trabalho precoce.

Após o Decreto n. 6.481 de 2008, de 12 de junho de 2008, que regulamentou os arts. 3º e 4º da Convenção n. 182 da OIT, aprovou-se a lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP). O referido documento proibiu o emprego de trabalho de crianças e adolescentes em mais de noventa atividades de risco ao seu desenvolvimento, em que pese algumas gozarem de aceitação social até os dias atuais, tal como os serviços domésticos. Segundo o anexo do Decreto n. 6.481/2008, passaram a ser qualificadas como Piores Formas de Trabalho Infantil no Brasil, no que concerne à segurança do trabalho, atividades em cemitérios, esgotos, lavanderias e tinturarias industriais, entres outros. A Lista TIP serviu de base aos trabalhos do Ministério do Trabalho e Emprego, existente à época, o qual constituiu Comissão Triparte, da qual se originou o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). O programa envolveu os Municípios, Estados e Governo Federal em ações articuladas para o atendimento aos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes, a exemplo da educação, saúde, assistência social, cultura, esporte e lazer.

No âmbito do trabalho do adolescente, o Capítulo V, do Estatuto da Criança e do Adolescente, em seus arts. 60 a 69, propõe-se a coibir, ao máximo, a exploração de seu labor, vinculando-se ao texto constitucional que proíbe o trabalho de menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos. Especificamente em relação ao trabalho dos aprendizes, as normativas do Estatuto da Criança e do Adolescente também estimulam programas de iniciativa pública e privada para o desenvolvimento de aprendizagem adequada, com o propósito de incluir os adolescentes em formação técnico-profissional apta a habilitá-los para sua futura inserção no mercado de trabalho, observada sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

Nesse cenário, faz-se imperioso o debate sobre o trabalho do adolescente no país frente  a reestruturação das normas do Direito do Trabalho brasileiro, provocada pela Lei n. 13.467 de 2017, com ênfase na Consolidação das Leis do Trabalho, e nas leis esparsas n. 6.019 de 1974, n. 8.036 de 1990 e n. 8.212 de 1991. A discussão tomou corpo quanto aos reflexos das mencionadas alterações legislativas no que se refere à tutela dos direitos dos trabalhadores, que impactaram essencialmente a proteção do adolescente incurso no mercado de trabalho, na perspectiva da Doutrina da Proteção Integral.

Há que se situar que no Brasil a cultura do trabalho dignificante, pautado em elementos higienistas, aliada às necessidades econômicas dos núcleos familiares, são fatores que possibilitam a consecução da exploração da força produtiva de crianças e de adolescentes – conjuntura presente no contexto social nacional desde o descobrimento até a contemporaneidade. Tal cenário, por sua vez, demonstra a percepção da infância e da adolescência no campo da invisibilidade, o que ratifica a violência e a exclusão histórica  dos nossos precoces e explorados trabalhadores.

Nesse particular, a linguagem empregada para a intervenção junto às crianças e aos adolescentes deixa evidente sua marginalização social. Consta-se que ao longo das décadas, no país, as nomenclaturas popularmente empregadas, e também as juridicamente instituídas, tais como: miúdo, pajens, grumetes, moleque (ou muleque), crias (de peito e de pé), menor, menor delinquente, menor abandonado e menor em situação irregular, retratam essa dinâmica social excludente.

A legislação ligada ao Direito do Trabalho, especificamente, manteve-se atrelada à tal concepção. Ainda que o Direito do Trabalho, a partir da década de 1930, tenha passado a regular patamares mínimos de proteção aos trabalhadores adolescentes (a exemplo da vedação de trabalho noturno, atentatório à moral, perigoso e insalubre), e a proibir a exploração da mão de obra infantil em regra, mesmo após a reforma trabalhista, a Consolidação das Leis do Trabalho persiste a utilizar o termo “menor” e “juízo de menores”, em vários de seus dispositivos vigentes.

O Direito do Trabalho brasileiro tem um conjunto de princípios basilares, quais sejam: o princípio da proteção; o princípio da primazia da realidade sobre a forma; o princípio da imperatividade das normas trabalhistas; o princípio da irrenunciabilidade de direitos,; o princípio da continuidade da relação de emprego; o princípio da intangibilidade salarial; e, por fim, o princípio da inalterabilidade contratual lesiva. Portanto, quais os impactos da reforma trabalhista frente às regulamentações do trabalho nacional.

Na nossa opinião,  a Lei n. 13.467 de 2017 provocou impactos profundos ao Direito Individual do Trabalho brasileiro, dos quais se avultaram aqueles relativos à permissão de aumento das jornadas de trabalho em atividades insalubres; à facilitação de formalização de bancos de horas, à descaracterização do caráter salarial de verbas remuneratórias; à inclusão de atividades finalísticas dos empregadores na dinâmica do trabalho terceirizado; à criação da figura do empregado hipersuficiente; à regulamentação de danos extrapatrimoniais na esfera dos contratos de trabalho e a instituição de métricas de tarifação para a indenização destes; e, especialmente, à criação das modalidades contratuais do teletrabalho e do trabalho intermitente.

Em relação ao Direito Coletivo do Trabalho, sobressaíram-se os reflexos da reforma trabalhista sobre a ruptura do sistema de custeio das entidades sindicais e a ampliação da negociações coletivas, o que se sedimentou pelo resgate e valoração do princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva. Quanto ao Direito Processual do Trabalho, percebeu-se que a sua afetação pela Lei n. 13.467 de 2017 ocorreu, notadamente, no que se refere ao acesso à justiça, o qual perpassou os mecanismos ligados à gratuidade da justiça, por limitar-se a concessão de benefícios processuais, tais como a isenção do pagamento de honorários periciais e sucumbenciais aos litigantes hipossuficientes.

Sobre os contratos de trabalho, no que tange, por exemplo, a discussão sobre a regulamentação na legislação laboral na modalidade contratual do teletrabalho, inferiu-se que para além das questões técnicas jurídicas que o norteiam (a exemplo do controle de jornada e da responsabilidade pelos insumos necessários ao desenvolvimento do labor fora do ambiente patronal), para o correto desenrolar desta espécie contratual, torna-se necessária a atenção à pessoa do trabalhador. As particularidades subjetivas do trabalhador neste tipo de contrato, tal como a estrutura familiar em que está inserido, tomaram contorno de fator imprescindível ao sucesso da sistemática, o que denota a necessidade de uma leitura conjugada do princípio laboral da proteção e do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, em sede de relações laborais pautadas no teletrabalho.

No que se refere ao contrato de trabalho intermitente, a referida modalidade contratual, a qual se estrutura na dinâmica de prestação de serviços descontinuada pelo trabalhador (sob a demanda ofertada pelo empregador), acaba por romper a noção tradicional de duração de trabalho e jornada, de continuidade da relação de emprego e, ainda, da estabilidade salarial do empregado. Nesse contexto, passa o empregado a sofrer variações temporais na prestação de serviços, bem como seus ganhos, os quais tornam-se imprevisíveis, porque proporcionais ao trabalho solicitado pelo empregador.

A irregularidade da prestação de serviços no tempo, e de ganhos do trabalhador, gera instabilidade sobre a gestão do seu tempo, e a possível perda da desconexão entre sua vida pessoal e profissional. Além disso, direitos constitucionalmente garantidos aos empregados em geral acabaram flexibilizados nesta espécie contratual, tais como a gratificação natalina e a remuneração de férias – os quais não podem ser usufruídos pelos empregados intermitentes nos moldes tradicionais da legislação trabalhista brasileira.

Resta constatado que no contrato de trabalho intermitente o recolhimento das contribuições previdenciária e social do empregado, embora siga a mesma regra dos contratos tradicionais de trabalho (qual seja, a regra da apuração mensal), não assegura as proteções sociais, necessariamente. Em decorrência da alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, nos meses em que não ocorrer labor, nada será depositado na conta fundiária do trabalhador intermitente, muito menos ocorrerá encaminhamento de valores à Previdência Social. Portanto, em consequência, um empregado intermitente, ainda de trabalhe por anos, terá limitações para adquirir a qualidade de segurado da Previdência Social, bem como para preencher os requisitos de contribuição necessários à aposentadoria.

Entendemos, pois, que a estrutura do contrato de trabalho intermitente fixada pela reforma trabalhista não é apta a proporcionar ao empregado a consecução de um labor que satisfaça às necessidades ligadas a sua subsistência, além de lesionar direitos fundamentais, e ocasionar danos a sua saúde física e psíquica. Assim, conclui-se que a modalidade contratual de trabalho intermitente afigura-se como lesiva aos empregados, tanto adultos, quanto adolescentes. Apresenta-se como um instrumento de precarização da sua condição de trabalho, que se afasta por completo dos preceitos da Doutrina da Proteção Integral, pois, não se vislumbra respeito ao superior interesse do adolescente trabalhador sob qualquer aspecto. Ao contrário, a modalidade contratual parece retroceder à ideologia higienista, que estruturou a educação pelo trabalho, aplicada para o combate da ociosidade de crianças e de jovens, a fim de se evitar a vadiagem (esta reprimida desde a década de 1890, por meio do Código Penal da República).

Além disso, há que se destacar que a saúde do adolescente exposto ao trabalho intermitente é englobada nos prejuízos da citada espécie de contrato de trabalho, porque propicia a ocorrência de períodos de férias sem remuneração concomitante, acaba-se por ameaçar o descanso do adolescente e, assim, fragilizar a desconexão de sua vida pessoal e profissional. Esta situação pode ser fator de comprometimento de seu bem-estar psíquico, e se constitui como violação, não apenas ao direito à profissionalização que detém o trabalhador menor de dezoito anos, mas ao seu direito à saúde.

Enfim, ao identificarmos a modalidade de contrato de trabalho intermitente, incluída no ordenamento jurídico nacional a partir da Lei n. 13.467 de 2017,  entendemos que esta forma contratual não atende à Doutrina da Proteção Integral dirigida aos adolescentes inseridos no mercado de trabalho, a partir dos dezesseis anos de idade, uma vez que é potencialmente prejudicial ao trabalho digno, sem restringir a sua adesão por trabalhadores adolescentes fere a proteção integral devida a tais pessoas, de modo a colocar em risco o seu desenvolvimento.

Os apontamentos aqui apresentados levam à proposições para o combate às violações de direitos dos trabalhadores adolescentes. Nesse sentido, indica-se como ação fundamental a limitação do modelo contratual do trabalho intermitente aos trabalhadores maiores de dezoito anos, para que os adolescentes restem inseridos, efetivamente, em relações de emprego profissionalizantes, de modo que lhes sejam conferidos, com prioritária e absoluta atenção, os direitos previstos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e pela Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 – tudo em conformidade com a Doutrina da Proteção Integral.

 

Notas e Referências

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