Trabalho dos bancários no marco da MP 905

14/01/2020

Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini

Sob a identificação de que o tema tratado na MP 905/2019 se refere ao contrato verde e amarelo, o legislador acaba por tratar de vários outros assuntos mesclados e sem uma sistematização adequada e clara, entre eles o relativo ao trabalho dos bancários. Como acentua André Molina, “a redação proposta pelo Poder Executivo é bastante confusa e contraditória, mais ainda quando analisada em conjunto com as outras partes do próprio art. 224 da CLT, que não foram alteradas, e os arts. 225 e 226 da mesma Consolidação, igualmente mantidos. Observa-se que não foi seguida a diretriz da boa técnica legislativa, já que não restringiu o conteúdo de cada artigo a um único assunto (art. 11, III, “b”, da LC n. 95 de 1998) e também não utilizou os parágrafos para expressar aspectos complementares à regra enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida (art. 11, III, “c”, da LC n. 95 de 1998)[1].

A impressão que se tem da MP é que se pretende reformar outros pontos da CLT e, ao invés de se propor um Estatuto dos Trabalhadores sintetizado e moderno, o legislador segue com os mesmo erros antes incorrido, isto é, de propor mini reformas, de modo mesclado e sem o respeito pela boa técnica. Ao revés de se atingir o objetivo da segurança jurídica, esta opção legislativa tende a causar, cada vez mais, maiores divergências e dúvidas, o que poderá se transformar num problema para as empresas e para os trabalhadores.

Minha intenção aqui é tratar unicamente da questão relativa à jornada e à redação do §4º do artigo 224 inserido pela MP 905/2019.

Aos bancários a CLT reservou uma seção própria no título sobre as normas especiais de tutela do trabalho. A razão de ser desta opção foi justamente porque a atividade bancária era considerada extenuante e penosa, seja pela posição antiergonômica que os trabalhadores bancários se ativavam, seja pelo estresse de manusear valores vultosos e da complexidade das operações inerentes à profissão. Sendo assim, fixou-se a eles uma jornada diferenciada comparativamente a outras profissões.

É certo que a situação da jornada dos bancários é uma matéria que evidentemente merecia uma revisão. No sistema fixado no artigo 224 da CLT, fixou-se a jornada de seis horas continuas nos dias úteis, exceto o sábado, perfazendo o total de 30 horas semanais, salvo se o bancário ocupar cargo de direção, gerência, fiscalização, chefia ou equivalente, caso em que se subordinaria a jornada de 08 horas diárias e 40 semanais, devendo o salário ser incrementado ao menos de 1/3 relativo adicional de função.

A nova redação trazida pelo MP altera a jornada dos bancários para restringi-la a seis horas unicamente para os trabalhadores no caixa, possibilitando que por acordo individual se estabeleça uma jornada de oito horas nos termos do artigo 58 da CLT, isto é, possibilita que os caixas possam acordar por meio de acordo individual até duas horas extras diárias, excepcionando a regra do §1º do artigo 224 celetário.

Em um apertado resumo: (i) todos os funcionários de banco, casas bancárias e Caixa Econômica Federal estarão submetidos a jornada de 08 horas, exceto os caixas; (ii) em se tratando de trabalhadores que ocupem cargos de gerência, fiscalização, chefia ou equivalente, a jornada diária será de 08 horas diárias, e o que diferenciará dos outros funcionários é o adicional de função de pelo menos 1/3 do salário do cargo efetivo; (iii) em se tratando de trabalhador bancário ocupante de cargo de direção absoluta que possa colocar em risco a atividade bancária empresarial, estará submetido as regras do artigo 62 da CLT relativa à desnecessidade a submissão a controle de jornada.

Neste sentido, é sabido que a evolução tecnológica causou uma verdadeira evolução no trabalho bancário, não se justificando mais uma jornada diferenciada para cargos que sejam de confiança ordinária. As atividades bancárias são todas estabelecidas em sistemas com alta taxa de controle e não reclamam mais aquela necessidade de uma regulamentação especial ante a penosidade. Muitas das atividades são hoje em dia desenvolvidas pelos próprios clientes dos bancos fora do ambiente bancário ou nos caixas eletrônicos. Portanto, exceto pela atividade de caixa, não se justifica se crie jornadas distintas para trabalhadores que, ao final, exercem funções idênticas.

Por fim, quanto ao §4º do preceito legal em análise, é certo que a regra nele imposta não representa nenhuma novidade. Todavia, somente se explica a redação em razão das decisões judiciais cuja interpretação era diversa. É comum nas ações trabalhistas, em que o bancário pretende receber a 7ª e 8ª horas como extraordinárias, aduzir que houve fraude na contratação de um suposto cargo de confiança quando, na verdade, a função exercida exigira confiança ordinária. Ocorre que nos casos em que o banco aplica a jornada de 08 horas a um gerente de relacionamento, por exemplo, acresce ao seu salário o mínimo de 1/3 da função de confiança. Como já disse, a função bancária mudou e, efetivamente, não parece que se trata de uma fraude, mas sim da alteração do modelo empresarial que não tem nenhuma semelhança com aquele que havia na década de 40/50 do século passado quando promulgada a CLT.

Todavia, se restar provado que a confiança para o exercício da função era a ordinária e que o bancário esteve sujeito a oito horas diárias de trabalho, o resultado será o retorno ao “status quo”, o que implica em dizer que nunca poderia ter recebido o adicional porque deveria estar recebendo as horas extras, de modo que os valores deverão ser compensados para que não haja enriquecimento sem causa.   

E como esta autora já se posicionou

“[...] a declaração de vontade é um elemento essencial ao nascimento do contrato de trabalho e, quando manifestada, deve guardar fidelidade com a vontade interna do seu emissor. Verificada esta condição, pode-se dizer que o negócio jurídico está apto a produzir os efeitos para o qual foi fixado (....) Há três planos em que se pode dividir o negócio jurídico: a) existência: diz respeito aos requisitos mínimos que devem nortear o negócio sem o qual ele não existiria (partes, vontade, objeto e forma (...); b) validade: subordina as consequências pretendidas do negócio a certos requisitos previstos na lei (...); c) eficácia: diz respeito às consequências previstas em lei em razão de estar o negócio subordinado a uma condição, encargo ou termo (...) Considerando as características peculiares do contrato de trabalho, as consequências da declaração do ato inexistente, nulo ou anulável serão as mesmas no que concerne à reparação de danos materiais e soluções da ruptura (ou não) do pacto laboral (...) O negócio nulo é aquele realizado com deficiência considerada suficientemente grave pela lei que lhe recusa a produção de efeitos. Esta é a base do dispositivo supramencionado que o torna inválido, isto é, o efeito jurídico pretendido pela parte não se realiza ou se realiza de forma limitada. O negócio nulo será aquele praticado em desobediência às ordens públicas e imperativas que o legislador acaba por sancionar com a pena máxima, isto é, impedindo que o negócio produza efeitos. Dessa forma, diante do grau de severidade imposto pelo legislador, a nulidade prevista não permite a produção de nenhum efeito e independe de uma declaração para que seja reconhecida a nulidade”[2].

Assim, a declaração de nulidade do ato gerará como consequência o retorno das partes ao “status quo”. Se havia dúvida antes quanto a esta possibilidade, agora, no âmbito da MP, não resta  mais nenhuma controvérsia: se o trabalhador nunca poderia ter tido o “status” do chamado cargo de confiança bancaria, o adicional e função não se lhe é devido e, em contrapartida, as horas cumpridas excedentes a jornada de seis horas deverá ser paga com o respectivo adicional.

Certamente com a nova regra do caput do artigo 224 da CLT esta situação desaparecerá, ou ficará restrita a questão do cargo de caixa, função esta que em nada se confunde com os outros cargos bancários. Certamente a discussão que será implantada dirá respeito a aplicação do § 4º no tempo, pois apenas se poderá reclamar a regra a partir da vigência da norma. Para o período anterior, certamente a jurisprudência seguirá dividida entre aquelas decisões que aplicavam a teoria das nulidades e, mesmo inexistindo a norma determinavam a compensação de valores com fundamento na proibição do enriquecimento sem causa, e daqueles que simplesmente ordenavam o pagamento das horas extras calculadas sobre a remuneração total, incluído aqui o valor do adicional, posição esta que não compartilho.

 

Notas e Referências

[1] MOLINA, André, A Jornada de Trabalho dos Bancários após a MO n. 905 de 2019, no prelo da Revista de Direito do Trabalho da LTr.

[2] NAHAS, Thereza. Novo Direito do Trabalho- Institutos Fundamentais. São Paulo, RT, 2017, pp. 159-160.

 

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