Às margens de uma ebulição cibernética, o mundo se adequa a uma inédita reformulação na sociedade, impactando significativamente em questões comportamentais. Avanços e revoluções não restritos ao universo científico-tecnológico estão aderidos a inúmeros setores e escolas, e ao lado disso a ciência jurídica também dá seus passos para a análise acerca dos impactos envolvidos, bem como para a elaboração de soluções estratégicas, pertinentes e harmônicas à legislação.
Nesse contexto, é que o desenvolvimento de créditos e ativos digitais, por meio da tecnologia blockchain, têm revolucionado cada vez mais o mercado imobiliário. Cabe, portanto, o entendimento sobre Tokens e Blockchain: Origem, Função, Tipos, Aplicabilidade e, a partir daí, a prática relacionada ao mercado imobiliário.
Conceitualmente a palavra Token é originária da língua inglesa e em tradução livre, é definida como “cupom digital”[i], já em termos gerais e atualmente aplicáveis, o Token é utilizado como um objeto ou símbolo que é trocado por bens ou serviços.
No entanto, sua gênese remonta à época de transição de sociedades nômades de caçadores-coletores para sociedades agrícolas, e a expansão de economias de troca simples para economias mais complexas (Schmandt-Besserat, 1992). Desde aquele período, os tokens, de algum modo ou de outro, forneceram a estrutura econômica básica para as futuras transações monetárias, como conhecemos hoje. Permeando desde o supermercado ao mercado de ações, qualquer sistema econômico de troca envolve alguma forma de reforço simbólico[ii].
Superados os primórdios desses ativos digitais, é necessário compreender o sistema em que hoje tramitam, isto é, a ordenação que rege e permite toda a sua evolução, a tecnologia blockchain.
O Blockchain, por sua vez, nada mais é do que uma “cadeia de blocos de informação” ou mesmo um protocolo de tecnologia: descentralizado, criptografado e imutável, que foi desenvolvido para solucionar algumas lacunas e instabilidades anteriormente existentes.
Na live “Blockchain e Tokenização no setor imobiliário. Uma tendência real?”[iii] Cristiano Rabelo, CEO e fundador das empresas integrantes do Grupo Prospecta, em entrevista com o Engenheiro e Business Country manager da CoinPayments, Rubens Neistein, define o blockchain como um grande livro de registro, onde todas as transações já realizadas são computadas – em uma carteira semianônima - e todos os processos de transações são criptografados e imutáveis.
Na mesma webinar, o entrevistado (Rubens) compara a tecnologia Blockchain à funcionalidade do protocolo TCP/IP (Transmission Control Protocol) no acesso aos conteúdos dispostos na internet. O TCP/IP corresponde a “linguagem” dos computadores e representa a forma com que os dados e informações são trocados[iv], assim, em análise análoga, é possível afirmar que o blockchain apresenta a mesma proficiência na cadeia de informações, sendo o instrumento que codifica e proporciona a segurança necessária para a efetividade e imutabilidade das transações.
É justamente dentro desse sistema de troca de informações (blockchain), que os tokens assumem a representação eletrônica de um ativo real, que poderá ser utilizado para diferentes finalidades. De modo geral esses ativos são entendidos como meios de trocas, e os tokens possuem segmentos e diferenças marcantes como explica, parafraseando, Rabelo[v]:
- Payment Token
- É o gênero de token no qual se enquadram as criptomoedas, funciona como um método de pagamento, que possibilita transferir valores de uma carteira para outra.
- Utility Token
- Os tokens utilitários têm como finalidade principal o acesso a um produto ou serviço, ex: programas de milhagens. “As empresas que desejam arrecadar dinheiro oferecem tokens de utilidade aos investidores para que possam ser usados para comprar bens ou serviços que elas fornecem[vi].”
- Security Tokens
- Já os security tokens poderão ser subdivididos em diversas categorias e representam a propriedade sobre ativos reais. Um dos exemplos são os equity tokens que oportunizam a possibilidade de tokenização de parte de uma Empresa, ou seja, podem ser enquadrados em ações de empresas ou commodities.
Por fim, mas não menos importantes, estão os chamados:
- Real Estate Tokens (RETO):
- Os quais possibilitam o direito ou mesmo a participação (fracionada ou totalitária) à propriedade de um imóvel.
A tokenização de imóveis é um processo relativamente novo, no entanto, diversas organizações já estão oferecendo soluções com benefícios significativos para investidores e detentores de tokens[vii].
No cenário imobiliário, o ativo subjacente do token é uma propriedade. Na maioria das vezes, o objetivo da tokenização é vender, investir e/ou negociar propriedades concluídas ou mesmo em construção, mas não se limitando a isso.
Na hipótese de tokenização para venda, um proprietário decide vender sua propriedade usando tokenização. Para isso, ele seleciona uma plataforma de tokenização adequada e envia um pedido com seus dados pessoais, bem como uma descrição das características mais importantes de sua propriedade, a qual deve passar por uma auditoria e uma avaliação independente do seu valor.
Uma vez que a propriedade é tokenizada, o proprietário determina quantas partes virtuais da propriedade serão divididas e quanto cada parte deve valer. Os tokens são oferecidos para venda na plataforma. Os investidores compram os tokens e se tornam coproprietários da propriedade vendida.
Foi assim que um edifício de luxo de 6,5 milhões de euros em uma determinada área de Paris encontrou compradores. A SAPEB AnnA, uma empresa pública, emitiu um milhão de tokens Anna no valor de € 6,50 cada. Como um token tem todas as características de um título de acordo com o Código Monetário e Financeiro francês, o token Anna está sujeito às disposições da lei. Cada token dá direito a dividendos, direitos de participação, direitos de voto em assembleias gerais e acesso a relatórios financeiros (FCE MEDIA, 2022).
Já na tokenização por investimento, a finalidade principal é possibilitar o levantamento de dinheiro para que um proprietário possa renovar ou reformar uma propriedade ou permitir que os investidores gerem renda de uma propriedade com um investimento mínimo.
O processo é semelhante àquele em que um proprietário decide vender uma propriedade tokenizada. A diferença é que o token não transfere a propriedade do ativo, mas dá direito ao proprietário a uma parte da receita de aluguel do ativo ou pagamentos de dividendos fixos. No entanto, apenas o proprietário tem o direito de dispor do edifício (FCE MEDIA, 2022).
Estes são exemplos gerais de como podem ser internacionalmente aplicados. Já pelo olhar da legislação brasileira, os tokens representam subgêneros, ou mesmo, seriam espécies das próprias cédulas de créditos imobiliários (CCI), previstas na Lei 10.931/2004. Para a hipótese de tokenização desses créditos, seria necessário tramitar instrumento público ou particular na instituição onde há a custódia das respectivas cédulas, no caso Brasil, credenciada pelo Banco Central (GAIGER e SILVA, 2021).
Adicionalmente, em disposição prevista na Lei 8.668/93, a tokenização de ativos imobiliários poderá ser viabilizada por meio de um Fundo de Investimento Imobiliário, o qual deverá seguir as regulamentações e fiscalizações da Instrução Normativa 472 da CVM (GAIGER e SILVA, 2021).
Em todas essas hipóteses os incentivos são evidentes, permeiam desde a diversificação dos ativos, ao fracionamento do valor patrimonial, à liquidez momentânea, como também na redução de custos de transação desinentes da automatização e isenção de intermediários.
Outro objetivo relevante é democratizar o mercado imobiliário, como esclarece Rubens Neistein, ao afirmar que “Fazer com que pessoas físicas do mundo todo possam acessar e comprar um token e, assim, viabilizar investimentos para projetos que pessoas não tinham acesso”[viii].
Em que pese o entusiasmo diante da desburocratização e celeridade dos meios de transação abarque cada vez mais o mercado, é necessário ponderar suas aplicabilidades e respeitar os fundamentos essenciais do ordenamento jurídico imobiliário pátrio.
Tem-se observado a tentativa de intervenção nesse mercado, sob o fundamento de proporcionar segurança jurídica a essas transações. Também se discute a natureza jurídica do fracionamento decorrente da tokenização, ou seja, seria ou não valores mobiliários? Até porque o fracionamento da propriedade em larga escala encontra barreiras no atual sistema de registro e de transferência de domínio, justificando-se, ao menos nesse momento, certa busca por regulamentação.
É por essa razão que a CVM tem atuado de modo pontual. Destaque-se, por exemplo, a Deliberação n. 881, em que a CVM “emitiu stop order endereçado a empresa tokenizadora e seu administrador responsável, tendo em vista suposta oferta irregular de valores mobiliários no âmbito de tokenização de frações ideais de empreendimento imobiliário”[ix]. Segundo a análise técnica da CVM, no caso, a estrutura organizada não se caracterizaria como venda de frações ideais imobiliárias, possuindo a natureza de contrato de investimento, por constituir valor mobiliário na sua formatação, o que foi negado pela empresa envolvida.
Veja-se que a avaliação da CVM não se refere à irregularidade da tokenização em si, mas sim a configuração do negócio, que, na hipótese, envolveria valor mobiliário, porque teria aportes e investimentos coletivos, com ganhos financeiros e, portanto, sujeito à atuação da Comissão de Valores Mobiliários.
De todo modo, a referência ao caso acima serve de atenção. Olhar para frente, ser criativo e aplicar o novo, sem deixar de observar a legislação e respeitar a segurança jurídica, imprescindíveis para a eficiência das transações no mercado imobiliário.
Não há dúvidas que a tokenização trará facilidades e dinamismo para as transações imobiliárias, inclusive abrangendo pequenos investidores em um mercado significativamente exclusivo a grandes adquirentes, no entanto, deve-se preservar a segurança jurídica e a economia, levando as legislações fundamentais e as regras basilares do ordenamento jurídico aos holofotes de qualquer transação ou negócio realizado.
Conclui-se com o aceno positivo para esse novo mercado, ressalvando-se a importância da adequação legislativa brasileira, com o objetivo de albergar essa prática em um horizonte mais seguro, mas sem perder a dinâmica e a velocidade que os ativos digitais exigem.
Notas e Referências
[i] SILVA, Nathaly D. GAIGER FERREIRA, Paulo R. Tokenização imobiliária sob a perspectiva jurídica e notarial. Portal do Bitcoin (UOL), 05/12/2021. Disponível em <https://portaldobitcoin.uol.com.br/tokenizacao-imobiliaria-sob-a-perspectiva-juridica-e-notarial/>.
[ii] HACKENBERG T. D. (2009). Token reinforcement: a review and analysis. Journal of the experimental analysis of behavior, 91(2), 257–286. Disponível em <https://doi.org/10.1901/jeab.2009.91-257>.
[iii] RABELO, Cristiano. Blockchain e Tokenização no setor imobiliário. Acelerando Negócios Imobiliários. Youtube, 15 de abril de 2021. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=8e1TBFQOAhc>.
[iv] GASPER, Larissa. Protocolo TCP/IP: o que é e como funciona. Host Gator. 10 de junho de 2021. Disponível em <https://www.hostgator.com.br/blog/o-que-e-protocolo-tcp-ip/>. Acesso em 24 de junho de 2022.
[v] RABELO, Cristiano. Blockchain e Tokenização no setor imobiliário. Acelerando Negócios Imobiliários. Youtube, 15 de abril de 2021. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=8e1TBFQOAhc>.
[vi] einvestidor@estadao.com. O que é um token digital? Conheça todos os tipos. Disponível em: https://einvestidor.estadao.com.br/educacao-financeira/o-que-token-quais-sao-tipos.
[vii] (Real Estate Tokenization: why and how it works. FCE Media, 05 de junho de 2022, Media, Articles. Disponível em <https://fcegroup.ch/en/news/text/id394-2022-06-05-real-estate-tokenization-why-and-how-it-works>. Acesso em 19, junho, 2022.)
[viii] NEISTEIN, Rubens. Tokenização imobiliária, atuação da CVM e cenário atual. 04 de abril de 2022. Disponível em <https://adit.com.br/tokenizacao-imobiliaria-atuacao-da-cvm-e-cenario-atual-confira-os-highlights-do-webinar-da-adit/>. Acesso em 20 de setembro de 2022.
[ix] Disponível em < https://www.cesconbarrieu.com.br/cesconbarrieuinsights/cvm-alerta-sobre-atuacao-irregular-de-tokens >. Acesso em 20 de setembro de 2022.
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