Tiro de bazuca embarcado em bicicleta de triathlon

21/03/2021

Coluna Stasis

O título do texto deste mês está propositalmente confuso. Tratamos de reproduzir a confusão mental decorrente dos recentes escândalos com os gastos do exército brasileiro. Camarões, vinhos, champanhes, chicletinho, picanha, doce de leite, cervejas[i], e outras regalias e mordomias que os brasileiros em geral não têm. E aqui basta lembrar que fornecer auxílio-alimentação aos empregados é uma opção dos empregadores, logo raramente acontece. Mais raro ainda é que os empregados não paguem nada a título de coparticipação. Já os servidores públicos em geral costumam receber o benefício – e os militares costumam receber uma alimentação melhor do que a maioria dos brasileiros pode pagar para si. Mas disso já tratamos, em maior ou menor medida, nos últimos textos.

O capítulo mais recente desse escândalo é o dos gastos com a prática de esportes pelos militares. Não é novidade que os militares das forças armadas passam um período considerável do dia praticando esportes, afinal de contas é parte do treinamento para manter o condicionamento físico. Todos estamos, em maior ou menor grau, acostumados a ver militares correndo pelas ruas enfileirados, gritando de forma uníssona frases e palavras de ordem. Tais práticas, como Foucault muito bem demonstrou, são próprias de regimes institucionais (exército, escola, fábrica, família) de disciplinarização dos corpos e, de controle de mente dos milicos, dos trabalhadores, dos indivíduos produtores e consumidores em geral. O que não sabíamos é que esportes caríssimos também são praticados, com o nosso dinheiro – com o escasso dinheiro público que falta na educação, que falta na saúde para compra de cilindros de oxigênio em Manaus etc. – triathlon com bicicletas de quase 30 mil reais cada, esgrima com jaquetas de mais de 1,5 mil, tiro prático com calças de 5,5 mil e jaquetas de 3 mil[ii]. Para que são necessários esses equipamentos?

Um olhar apressado pode fazer-nos concluir justo o que está no título: os militares se preparam para, durante uma guerra, desembarcar em terras inóspitas pedalando bicicletas de triathlon, com uma mão segurando bazucas com as quais atiram e com a outra lutando esgrima. Tudo isso a fim de investir contra as frotas inimigas e proteger o Brasil.

A existência de cursos de tiro embarcado em motocicletas e carros[iii], a boa alimentação, a vestimenta adequada e o alto custo disso tudo podem servir de catalisadores para esse equívoco, afinal, a hipótese não parece tão absurda. O marketing em prol do alistamento militar costuma destacar a flexibilidade da carreira militar com algumas atitudes à altura do Rambo. O imaginário social é, nesse sentido, bem alimentado pela máquina militar-propagandística.

Seria uma pena se o Brasil: a) tivesse uma história de baixa atuação em guerras; b) não tivesse armamentos, aeronaves, navios e carros de combate em qualidade e quantidade suficientes para uma guerra; c) nenhuma ameaça real estivesse em curso para o Brasil, ao menos não que pudesse ser combatida pelas forças armadas; d) nas poucas participações do país em guerras, a contribuição fosse nula ou quase nula. Não. Não é isso. Nos enganamos. O Brasil realmente é assim, mas não há pena nenhuma. É um projeto…

Não há motivo algum para custearmos essa Babilônia a troco de nada com coisa nenhuma. Se os militares querem praticar triathlon, que comprem as bicicletas; se querem praticar esgrima, que comprem as espadas e roupas; se querem usar roupas de 8 mil reais o conjunto para atirar, que comprem. Nada disso tem algo a ver com a atuação para a guerra – nem mesmo para o extermínio do próprio provo, na guerra interna travada contra as favelas via intervenções federais e atuação da força nacional. Tampouco contribui para a proteção de fronteiras. Aliás, as maiores ameaças às fronteiras e à soberania nacional são os pacotes de medidas neoliberais para garantir os lucros dos bancos e o livre acesso às riquezas naturais do país para pesquisas realizadas por grandes laboratórios farmacêuticos. Mas nada disso é combatido pelas forças armadas, nem brasileiras, nem de qualquer outro país.

Como não somos ouvidos, tratando o tema com seriedade ou não, preferimos continuar criticando ao estilo nietzschiano: promovendo a paródia. Se somos palhaços lançados em um picadeiro, resta-nos fazer a palhaçada. Se o exército quer justificar os gastos, sugerimos, então, que aprendam a atirar de bazuca, embarcados nas bicicletas de triathlon, para fazer jus ao título do nosso texto. Ah, mas também é imperioso atingir o alvo a mais de 500 metros de distância, pois munição de bazuca também custa caro. É preciso ser eficiente. Graças aos neoliberais, protegidos pelas forças armadas e por outras corporações brasileiras, a eficiência é um princípio que rege a atividade da administração pública (art. 37, caput, da Constituição).

Provem, ó militares tupiniquins, que dão conta desse desafio!

Diante desta situação surreal, grotesca, hilariante é urgente observarmos como se constituíram as formas militares no Brasil Império e, sobretudo no Brasil República. Ao estudarmos o percurso de afirmação desta instituição em suas diversas armas, constatamos um aspecto determinante na constituição da própria sociedade brasileira, que se caracteriza pela hegemonia de uma elite de senhores engenho (durante a colônia), barões do café e coronéis regionais (Império e Republica Velha), Oligarquias agrárias e urbanas ao longo do século XX. Este contingente minoritário numericamente, mas dominante política e economicamente também é conhecido atualmente pelos desavisados pela expressão: “homens de bem”.  Abaixo deste grupo encontramos corporações, entre elas, a do judiciário, dos médicos, dos engenheiros e, dos militares cuja função é manter em segurança a hegemonia político-jurídica, burocrática das elites herdeiras do ethos escravocrata. Tais corporações são aquinhoadas com benesses e extravagâncias pagas com o dinheiro público. Recursos públicos extraídos da retirada de direitos trabalhista da milhões de brasileiros assalariados, e outros tantos milhões de brasileiros lançados na informalidade, no exército de reserva dos desempregados.

Todos estes absurdos que estamos assistindo em função de sua condição surreal seriam cômicos se não fossem trágicos em função da barbárie que promovem condenando crianças, adolescentes, jovens, homens e mulheres a reproduzirem o “eterno” círculo vicioso de reprodução de miséria e violência. Ou, dito de outra forma, este patrimonialismo praticado pelos homens de bem e pelos membros das corporações a seu serviço é “imoral” e próprio de sociedades de bárbaros desprovidos de uma proposta civilizatória, de respeito à condição humana. Não se trata mais de uma condição vergonhosa, mas sim humilhante. Quando estudamos atentamente a história dos mais distintos povos constatamos a existência de elites, de governantes empenhados em construir um Estado forte consistente que perdure pelos tempos afora, bem como possa ser inscrito na memória das futuras gerações. Por seu turno, quando olhamos para nossa história constatamos que alguns personagens e movimentos sociais procuraram de todas as formas chamar atenção para a urgência e necessidade de se estabelecer as bases de um contrato social como condição inadiável se afirmar as bases civilizatórias da sociedade brasileira.

Em todos os momentos de nossa história que tal condição se apresentou, lideranças e movimentos sociais foram duramente reprimidos pelas forças policias e militares do estado, foram condenados sob estado de exceção pelo poder judiciário, bem como foram lançados à margem da sociedade brasileira pelas demais instituições patrimonialistas constitutivas do Estado brasileiro, como exemplo podemos citar: Quilombo de Palmares, Guerra de Canudos, Guerra do Contestado. Humilhação, abandono, violência policial-militar desmesurada, lembremos aqui dos perseguidos, dos exilados, dos torturados e mortos pela ditadura militar de 1964 a 1984, do massacre do Carandiru, do massacre do Eldorado do Carajás, de Chico Mendes, de inúmeras lideranças religiosas e populares violentadas e massacradas pelo patrimonialismo, pelos donos da colônia e seus cães de guarda que se locupletam com a miséria e a vergonha de toda uma nação.  É este lamaçal de imoralidade privada sobre os bens públicos que torna este imenso país num imenso campo de concentração, de produção e vida nua, de violência gratuita. Riam quanto puderem os militares com suas quinquilharias compradas com os recursos públicos que faltam à saúde e à educação. Riam os deputados e senadores comprados pelo poder executivo para reproduzirem esta lógica. Riam os empresários sonegadores de impostos públicos. Riam os juízes do Supremo, do Superior Tribunal de Justiça, da Comarca do quinto dos infernos com seus generosos salários. Riam os assalariados, os tolos, os imbecis...

Celebremos a imperfeição, o grotesco, brutalidade de uma nação sem contrato social.

Viva... deus é brasileiro...

Post Scriptum

Antes de enviarmos este texto para a Redação do Empório (na manhã do dia 23/2/2021), recebemos um áudio de WhatsApp disseminado pela máquina de Fake News. O áudio começa fazendo referência a um tal de “Dilso” que estaria em Brasília para assistir o circo pegar fogo na Petrobrás. O vivente narra, em tom ambíguo, como é ruim o sujeito-general que supostamente assumiu o comando da estatal do petróleo: poucas horas após assumir o cargo, demitiu 300 funcionários e esvaziou um dos vinte e dois andares do prédio principal. Agora o andar estaria ocupado por oficiais de inteligência e policiais federais para investigar as manobras de pessoas que visam destruir o governo atual (supostamente vinculadas ao PT). A troca do presidente, um economista liberal vinculado ao governo, por um general, igualmente vinculado ao governo, supostamente vai resolver o problema. Ocorre que nesta data foi convocada assembleia extraordinária da empresa para deliberar sobre a troca de presidentes. O presidente, portanto, continua a ser o economista. O único jeito de ser verdadeiro o áudio do tiozão do Zap é uma viagem no tempo feita pelo sujeito-general para comunicar o vivente-gravador de áudios acerca do que fará nos próximos dias. Eis mais uma oportunidade para o desafio que lançamos nas linhas anteriores. Pensamos em alterar o título deste texto para “Tiro de bazuca do topo do prédio da Petrobrás acoplado em plataforma de petróleo puxada por tiranossauro rex em zona continental durante uma viagem no tempo”, mas, devido à extensão, excederia o limite de palavras do site.

 

Notas e Referências

[i] https://www.terra.com.br/noticias/forcas-armadas-usam-verba-para-comprar-picanha-e-cerveja,6091c2bf20e6875be0bae4a76fc7026arggxlj3x.html

[ii] https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/exercito-compra-bicicletas-de-triathlon-por-r-263-mil-a-unidade/

[iii]     Por exemplo: http://www.amazonas.am.gov.br/2017/09/ccdt-realiza-curso-de-tiro-embarcado-e-abordagem-fluvial-direcionado-aos-servidores-da-instituicao/

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura