Tipicidade Taxativa das Hipóteses Flagranciais

24/06/2017

Por Bruno Taufner Zanotti e Cleopas Isaías Santos – 24/06/2017

1 Considerações Iniciais

Por se tratar de uma restrição aos direitos fundamentais[1] da inviolabilidade do domicílio (art. 5º, inc. XI, da CF) e da liberdade de locomoção (art. 5º, incs. XV e LXI, da CF), as hipóteses de prisão em flagrante devem ser compreendidas dentro do arcabouço teórico daquela modalidade dogmática (restrição a direitos fundamentais), ao menos no constitucionalismo brasileiro, o qual, neste particular, segue, com algumas peculiaridades, a tradição alemã. Assim, cumpre-nos começar por algumas considerações a esse respeito.

Analisando o sistema constitucional português, J. J. Gomes Canotilho leciona que “há três ‘universos’ de restrições de direitos recortados por actos normativos com valor de lei: (1) restrições feitas directamente pela Constituição; (2) restrições feitas por lei, mas expressamente autorizadas pela Constituição; (3) restrições operadas através de lei mas sem autorização expressa da Constituição”[2]. A prisão em flagrante, tanto na hipótese da inviolabilidade do domicílio (art. 5º, inc. XI, da CF), quanto na da liberdade de locomoção (art. 5º, inc. LXI), apresenta-se como uma restrição feita diretamente pela Constituição de 1988.

Contudo, como a prisão em flagrante é realizada direta e concretamente por autoridades públicas ou por particulares (art. 301 do CPP), conformando aquilo que o constitucionalista português citado anteriormente chamou de medidas ou intervenções restritivas[3], faz-se necessária a edição de uma lei, conformando aquela hipótese restritiva. Daí por que defendermos que as únicas, taxativas e fechadas hipóteses de flagrância delitiva são as previstas no art. 302 do CPP[4], dispositivo este que não sofreu alteração com a Lei nº 12.403/2011. É, em síntese, o que tão enfaticamente Romeu Pires de Campos Barros chamou de tipicidade processual[5]. Tal tipicidade atende ao princípio da legalidade, herança revolucionária liberal e exigência inafastável da Constituição Federal de 1988 (art. 5º, inc. II).

Para Monteiro de Barros[6], entretanto, “do art. 302 do CPP, só mostra compatibilidade com a noção democrática de prisão em flagrante o primeiro inciso. Nos demais, não se identificam os requisitos de visibilidade e imediaticidade”. Vale lembrar, porém, que o critério da visibilidade, como analisamos em outro trabalho[7], sofre variadas críticas, especialmente em decorrência das chamadas falsas memórias.

Luigi Ferrajoli[8] vai além e afirma que a prisão em flagrante, em si mesma, por ser realizada sem ordem judicial, é herança do velho sistema processual, de cariz inquisitorial e antigarantista.

Apesar dessas relevantes críticas, faremos a análise apartada de cada uma dessas hipóteses.

2 Flagrante próprio ou real

O chamado flagrante próprio ou flagrante real corresponde às duas primeiras hipóteses de flagrância, previstas nos inc. I e II, do art. 302 do CPP, ou seja, quando alguém, respectivamente, “está cometendo a infração penal” ou “acaba de cometê-la”. Essas são as hipóteses que melhor traduzem a noção de flagrância delitiva, ou seja, aquela em que o agente é preso durante a execução de um crime ou no instante em que parou sua atividade criminosa, mesmo que o crime não se consuma. Esta a razão por que a visibilidade e a certeza do cometimento do delito traduzem, neste caso, um forte fundamento de legitimidade para a permissão legal de restrição à liberdade de alguém.

Não é outra a razão que faz com que a doutrina e a jurisprudência chamem estas modalidades de flagrante próprio. É que, entre todas, estas são as que melhor traduzem a ideia de flagrare (fogo que queima) dos italianos.

Aqui, o fumus commissi delicti parece inquestionável. Autoria e materialidade são facilmente comprovadas a partir dos sentidos, especialmente a visão. Não obstante, alguns problemas de interpretação acerca da configuração desta hipótese podem ocorrer, mas a solução encontra-se no direito material, não no processual.

Com efeito, todas as hipóteses de prisão em flagrante pressupõem o início da execução de um delito, regra no direito penal pátrio para a punibilidade de uma conduta. Porém, uma tal determinação nem sempre é fácil de ser feita, especialmente para o Delegado de Polícia, no momento da análise de uma situação, para definir, com segurança, e sem incorrer em abuso de autoridade, sobre a formalização de uma prisão. É o caso, por exemplo, dos crimes contra o patrimônio, como o furto. Exige, portanto, muita atenção do Delegado de Polícia e um bom conhecimento acerca do tema da tentativa em direito penal.

3 Flagrante impróprio ou irreal

Nas hipóteses previstas nos incs. III e IV, do art. 302 do CPP, não temos traduções de realidades flagranciais propriamente ditas. Porém, o legislador presume que de flagrante delito se trate. São realidades normativas, ou simplesmente ficções jurídicas, mas que devem servir de parâmetro para a atuação do Delegado de Polícia.

Não obstante o que foi dito, a doutrina e a jurisprudência chamam de flagrante impróprio, quase flagrante ou flagrante irreal apenas a hipótese do inc. III do art. 302 do CPP. Segundo este dispositivo, também estará em flagrante delito quem for “perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração”.

Para a configuração desta hipótese, é imprescindível que o início da perseguição se dê imediatamente após a cessação da atividade criminosa, esteja ou não consumado o crime, e de forma contínua, independente do tempo que durar. O que importa, portanto, para a caracterização do flagrante impróprio é a perseguição imediata e contínua do suposto autor da infração. E isto é fundamental para o Delegado de Polícia, tendo em vista que, não raras vezes, esta autoridade é posta diante de uma situação em que, ou a perseguição se iniciou horas, e até dias, depois de cessada a atividade criminosa, ou teve início imediatamente, porém, foi interrompida. A ausência de um desses critérios tornará atípica a hipótese, pois são cumulativos, devendo ser considerada, caso venha a ser formalizada, ilegal a referida prisão em flagrante.

4 Flagrante presumido

A última hipótese típica do art. 302 do CPP é a do inciso IV, denominada de flagrante presumido, ficto ou assimilado. Segundo o citado dispositivo, também se considera em flagrante delito quem “é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papeis que façam presumir ser ele autor da infração”. Como aludido anteriormente, aqui também o legislador cria uma realidade normativa, uma presunção legal de uma realidade real, qual seja, uma situação de flagrância delitiva. E por se tratar de uma presunção, o risco é ainda maior para o Delegado de Polícia incorrer em ilegalidade.

Sobre este último aspecto, aliás, vislumbramos um escalonamento decrescente de realidade flagrancial nas hipóteses do art. 302 do CPP e um escalonamento crescente de riscos de se cometer um erro quanto à autoria de um delito e consequente abuso de autoridade. Realidade flagrancial e risco de abuso são, portanto, inversamente proporcionais.

Com efeito, no flagrante próprio o risco é mínimo, no impróprio, é mediano e no presumido, é elevado. Desse modo, o flagrante impróprio e o presumido exigem maior atenção por parte do Delegado de Polícia.

Voltando à análise dos elementos característicos da tipicidade desta hipótese de flagrante, observa-se que é necessário que o agente seja encontrado, pouco tempo depois da prática de um delito, com algum elemento de prova (arma, objeto, documentos, etc.) diretamente relacionado ao crime perpetrado, fazendo presumir ser ele o autor da referida infração penal.

Segundo Gustavo Badaró[9], “não existe diferença de conteúdo, sob o ponto de vista cronológico, entre as expressões ‘logo após’ e ‘logo depois’”, de tal forma que, para este autor, na esteira de Tourinho Filho[10], a imediatidade da reação à prática do delito é critério comum nas hipóteses do flagrante impróprio e do flagrante presumido. Esta imediatidade, porém, não é absoluta, o que caracterizaria, nas lições de Tourinho Filho[11], a hipótese do inc. II.

Entendemos coerente e em plena sintonia com a instrumentalidade garantista do Processo Penal este entendimento. Se, como referido, a prisão em flagrante constitui uma restrição aos direitos fundamentais do imputado, e, de igual modo, o sistema constitucional deve buscar a máxima efetividade de tais direitos, parece imperiosa a exigência de que qualquer restrição a direitos fundamentais deverá ser interpretada restritivamente. Daí por que estarmos de acordo com o entendimento acerca da equivalência cronológica entre as expressões “logo após” e “logo depois”.


Notas e Referências:

[1] Não desconhecemos a importância, para um tratamento mais adequado sobre o tema, das diferenças entre limites e restrições, nem tampouco das diferentes concepções da teoria interna e da teoria externa dos limites a direitos fundamentais. Contudo, por opção metodológica, pois extrapolaria os objetivos deste trabalho, os mesmos não serão tratados. Na doutrina pátria, por todos, os seguintes trabalhos densificam o tema: PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais: uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006; e FREITAS, Luiz Fernando Calil de. Direitos fundamentais: limites e restrições. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006; SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2011.

[2] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 450.

[3] Id. Ibid., p. 451.

[4] Art. 302.  Considera-se em flagrante delito quem:

I - está cometendo a infração penal;

II - acaba de cometê-la;

III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação       que faça presumir ser autor da infração;

IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.

[5] Sobre o tema, cf: BARROS, Romeu Pires de Campos. Do fato típico no direito processual penal. Revista Forense, vol. 176, p. 26-31; e especificamente sobre a tipicidade das hipóteses de flagrância, BARROS, Romeu Pires de Campos. Processo penal cautelar. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 125 e ss.

[6] BARROS, Vinícius Diniz Monteiro. A prisão em flagrante no modelo constitucional de processo. Belo Horizonte: Arraes, 2013, p. 84.

[7] SANTOS, Cleopas Isaías; ZANOTTI, Bruno Taufner. Delegado de Polícia em Ação: teoria e prática no estado democrático de direito. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 269 e ss.

[8] FERRAJOLI, Luigi. Dei diriti e delle garanzie: conversazione con Mauro Barberis. Bologna: Il Mulino, 2013, p. 52.

[9] BADARÓ, Gustavo. Processo penal. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2012, p. 723.

[10] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. São Paulo: Saraiva, 2012, v. 3, p. 504-505.

[11] Id. Ibid., p. 505.


Bruno Taufner ZanottiBruno Taufner Zanotti é Doutorando e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Pós-graduado em Direito Público pela FDV. Professor do curso de pós-graduação Lato Sensu em Direito Público da Associação Espírito-Santense do Ministério Público. Professor de cursos preparatórios para concurso público nas áreas de direito constitucional, penal e processo penal. Diretor Jurídico da ADEPOL-ES e SINDEPES. Delegado da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. Coordenador pedagógico do Projeto Delegado (www.projetodelegado.com.br). 


Cleopas Isaías Santos. Cleopas Isaías Santos é Mestre e Doutorando em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB. Professor de Pós-Graduação latu sensu em diversas instituições. Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico do Maranhão – FAPEMA. Delegado de Polícia.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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