THELMA ASSIS: PARA NÃO ESQUECER(MOS) SEU NOME E SOBRENOME  

03/05/2020

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

A vitória de uma mulher que participou de um experimento de um programa de televisão aberta, com duração de três meses, vai ser, sim, reduzida à sua cor/raça, porque, supostamente, “ela não teve outros méritos”. E, a negação de que isso tenha a ver com o elemento racial, numa tentativa de ocultação da seletividade, informa o “pacto narcísico branco” (BENTO, 2002), que obstaculiza e interdita pessoas negras excluindo-as de espaços de poder e bem-estar social e político através do esvaziamento de suas qualidades e questionamento de suas competências (conhecimento, habilidades e atitudes).

O tratamento dispensado ao Babu e à Thelma,por participantes do BBB enas redes sociais, foi firmado na dessemelhança ou na falta de similitude deles para com as/os demais. Babu e Thelma, apesar de serem dois, formaram uma dupla ímpar. Thelma, por exemplo, não foi alçada ao status de sujeita ou mulher em muitas ocasiões, uma vez que ela foi recorrentemente coisificada como planta, uma expressão típica do reality para significar quem não faz falta ou diferença no jogo. E aí é que está. Babu e Thelma foram a diferença. Curiosamente, Babu chegou a ressignificar o conceito vulgar de planta naquele jogo, imprimindo beleza e indicando a potência do florescimento. Thelma Assis, nós enunciamos o seu nome e sobrenome porque aprendemos com Lélia Gonzalez que, se descuidarmos receberemos apelidos ao gosto da branquitude cujas práticas são normatizadas e regimentadas pelo pacto narcísico.

Voltando à Thelma, é forçoso dizer que ela seria julgada e condenada por qualquer caminho que escolhesseou que tivesse feito na trajetória do reality. Por exemplo, o seu voto no Babu, em defesa da Rafaela Kalliman, na reta final do programa gerou algumas das manifestações virtuais mais odiosas que já testemunhei nos últimos anos e eu lido, com frequência, com discurso de ódio digital. Mesmo sabendo-se que Babu votaria na Thelmapara proteger o seu parceiro de jogo, se ele houvesse prosseguido na disputa.

A violência contra a vencedora do BBBemergiu independente do gênero e cor/raça das/dos agressoras/es mas tinha tudo a ver com o gênero e cor/raça da ofendida. É a colonialidade. Nossa concepção civilizatória ocidental não foi cunhada, em nenhuma altura da história, pela ética do amor pregada por Martin Luther King e, nem pelo amor à liberdade, ou ao amor como libertação, em Bell Hooks. Teremos que seguir transgredindo para nos constituirmos pelo chamado ancestral para a sagrada missão de sermos quem somos, “apesar de”. E, apesar de tantas tentativas interruptivas, nada sensatas, de humanas e de fadas, o Babu e a Thelma seguiram juntos do início ao fim, lutando mais, a cada novo nível do jogo, em busca do prêmio de um milhão e meio, referente ao primeiro lugar. E eu gosto muito disso. Eles entraram com disposição mental para disputar o primeiro lugar.Não foram atrás de seguidores/as – mas conseguiram - , nem de uma posição no pódio e, sim, “da posição” do pódio, a primeira colocação. Sabiam não ser possível dividir o prêmio, masperegrinaram juntos tanto quanto foi (im)possível.

Bom... a Thelma não ganhou porque é negra: eu poderia resumir tudo nesta frase. Mas, se o fizesse, perderia o passeio que me garante dar “uma espiadinha” e sair do isolamento para sentir o vento e o Sol na cara, o cheiro de terra, o sabor de fruta tirada do pé, os pelos arrepiados, cascalhos sob os pés. Porque escrever transporta a gente da quarentena, ainda que do Quarto de Despejo, para onde quisermos, por um brevíssimo momento, nem que seja para tirar a atenção da dor da fome para a cor que a fome tem, num delírio lírico.

Vejam. No geral, e sistematicamente, mulheres negras perdem no Brasil. Basta somente olhar os dados do IPEA (2013; 2015), DIEESE (2017), Perseu Abramo (2010) e ONU Mulheres (2018) sobre remuneração, qualidade do trabalho, chefia feminina das famílias, grau de escolaridade, índice de violência sexual e de feminicídio e presença no sistema prisional.

Então, num jogo em que se está em disputa o carisma pessoal (aqui a gente recorre às críticas ao juízo de gosto Popperianoe ao padrão de beleza hegemônico, por Audre Lorde); trânsito entre pessoas e grupos (capital político) para firmar parcerias; e, o mais importante, a empatia do público,tudo só depende de você, jogador/a, e das/dos telespectadoras/es, dentre as/os mais de 209 milhões de brasileiras e brasileiros.

Convenhamos que, no BBB, a empatia do público é decisiva. Mas, como se obter empatia quando há pouquíssima capacidade do público de se projetar através da existência de uma mulher preta escura, pouco importando se ela é médica? Mulheres negras não possuem a imagem e a jornada da heroína desejável, seja fora, seja dentro de um programa televisivo. Se tivessem, seriam retratadas com regularidade e normalidade pelos meios de comunicação em geral, pois compõem parcela populacional majoritária no Brasil, por gênero (IPEA, 2013; 2015), mas, como vimos, na 20ª edição do Big Brother Brasil, de dezoito participantes, apenas dois deles eram pessoas negras, sendo uma mulher e um homem.

Atrevidamente, posso assegurar que Thelma é dona de sua história, como cada uma de nós, ainda que interfiram, por grilagem, na nossa autonomia privada para desqualificar nossas escolhas e decisões. Thelma consolidou, dentro e fora do programa, a vitória. Thelma é possível! Mas, notem, ela não se viabilizou sozinha. Thelma é a soma de lutas históricas pelo soerguimento do sujeito coletivo subalternizado por práticas políticas e discursivas contra o seu corpo, não apenas biológico.

Eu tomo como hipótese que a maioria das pessoas votantes, muito provavelmente, não foram pessoas negras porque, de acordo com a Agência Brasil (2018) e o IPEA (2013; 2015), nossos domicílios dominam os 30% de exclusão digital aferida no Brasil pelo último censo IBGE (2010).Logo, muitas/os não votaram por impossibilidade absoluta. Ainda assim, a despeito dos limitantes tecnológicos, a final do BBB 20 foi marcada por grande mobilização de pessoas e coletivos integrantes do movimento negro ecyberativistas, que reivindicaram apoio e comprometimento da classe artística, e foram bastante convincentes nesse quesito, obtendo grande adesão nacional e internacional, a exemplo de Viola Davis, mulher negra e atriz estadunidense premiada com o Oscar em 2017 pela atuação como atriz coadjuvante no aclamado filme A Cerca/Um Limite Entre Nós – filme excepcional, com atuação da diva e de Denzel Washington, injustiçado no Oscar, que eu indico fortemente. Viola Davis foi uma das poucas atrizes, a 23ª, para ser precisa, a completar a Tríplice Coroa de Atuação por premiações nos três veículos de arte e entretenimento nos Estados Unidos da América: cinema (Oscar), teatro (Tony) e televisão (Emmy).

A vitória de Thelma Assis no BBB 20 não se deu “por isso”, mas, é mais significativa, sim, pela representatividade que possui a vitoriosa, sem nem precisar abrir a boca para proferir qualquer palavra afirmativa para ser legitimada a respeito de nada versus coisa nenhuma! Trata-se de uma mulher preta retinta e médica num país cuja abolição resta inacabada e que, hoje, mais parece um navio negreiro estilizado, a deriva, um projeto cambaleante de nação predestinado ao desconhecido. 

 

Foto: Reprodução TV GLOBO 

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