Teorias implícitas da personalidade e o estereótipo do usuário de maconha

01/09/2015

Bruno Cortez Castelo Branco - 01/09/2015

A marca do positivismo criminológico é a naturalização da conduta criminosa, como se existisse objetivamente e precedesse qualquer definição legal. Os valores tutelados são tomados como autoevidentes e universais, como que compartilhados por todos os indivíduos. Trazendo à tona o problema da definição do delito, as teorias da reação social ou "labeling approach" transmutam radicalmente o objeto de estudo da criminologia: os conceitos de "crime" ou de "criminoso", ao invés de ontológicos, são considerados status socialmente construídos e atribuídos a certos grupos de pessoas que se encaixam num dado estereótipo e, por conseguinte, não alcança a todos indiscriminadamente, ainda que alguém tenha realizado o mesmo comportamento juridicamente punível.

Para a compreensão da criminalidade enquanto processo de criminalização, essa nova corrente teórica investiga a atuação das agências oficiais que ditam o que seja crime e que reagem contra ele: vai da elaboração abstrata das regras (criminalização primária) até a sua aplicação concreta (criminalização secundária) pela polícia, Ministério Público, magistratura e agentes penitenciários. Dizer que um ato é ou não criminoso depende então do que será feito a respeito dele.

O sociólogo norte-americano Howard Becker[1]foi um dos pioneiros dessa nova abordagem ao pesquisar precisamente como uma pessoa se torna usuária de maconha. Refutando as explicações convencionais de cunho psicológico que apontam o uso da droga como manifestação de uma tendência individual, um traço de personalidade próprio de quem teria necessidade de fugir da realidade, porque incapaz de enfrentá-la racionalmente, Becker assinala que impulsos e desejos vagos (curiosidade, p. ex.) são transformados em padrões de comportamento por meio da interpretação social.

A conclusão parcial a que se chega é de que não são motivos desviantes que levam ao comportamento desviante, mas o comportamento desviante que acaba por produzir a motivação desviante. As explicações psicológicas não explicam porque boa parte dos usuários não exibe os traços considerados causadores do comportamento, tampouco a grande variabilidade do comportamento de um dado indivíduo com relação à droga ao longo do tempo.

Há, conforme Becker, três etapas para que alguém se torne um usuário de maconha: o noviço precisa, inicialmente, aprender a técnica para fumar corretamente a substância para que ela produza seus efeitos ("ter um barato"); em seguida, é preciso que a pessoa aprenda a reconhecer esses efeitos e associá-los ao uso da maconha de forma consciente, o que envolve a aquisição de novos saberes através do compartilhamento da experiência com outros usuários; ademais, os efeitos relacionados ao uso da droga devem ser definidos como agradáveis, prazerosos.

O gosto, como ensina Pierre Bourdieu[2], é um fator socialmente adquirido, uma definição favorável que uma pessoa adquire com as outras. Desenvolver o gosto por ostras, sushi ou vinhos, assim como por maconha, dependerá do grau de interação com outros consumidores. À medida que o contato com a droga se torna mais intenso, o usuário torna-se uma espécie de "sommelier" capaz de identificar a procedência, qualidade e potência da substância. O sujeito, pois, desenvolve uma motivação para usar maconha que não estava nem poderia estar presente nele sem antes percorrer as etapas anteriores. Mas estas, conquanto necessárias, ainda não são suficientes.

Para ultrapassar o estágio de usuário iniciante (que fuma pela primeira vez) e ocasional (que só fuma quando outros disponibilizam) e chegar ao patamar de usuário regular (quando consumo se torna rotina sistemática), os obstáculos impostos pelo controle social precisam ser rompidos: inicialmente, a própria limitação do fornecimento e acesso à droga, que obriga o interessado a buscar o mercado ilegal; mesmo ganhando a confiança do seu grupo para adquirir a substância diretamente do distribuidor, há ainda o medo (real ou imaginário) de ser identificado publicamente por não-usuários, como a família (medo de perder o seu afeto) ou o empregador (medo de ser demitido do trabalho), obrigando o sujeito a manter a prática em sigilo ou desenvolver técnicas para esconder os efeitos da substância; por fim, há uma última fronteira: quebrar o tabu dos imperativos morais que taxam os "maconheiros" de irresponsáveis, incapazes de autocontrole e "fracos", bem como o mito de que o uso deságua irremediavelmente no vício ("caminho sem volta").

Essa representação social do senso comum foi lançada por ninguém menos do que pelo Procurador-Geral da República na sessão plenária do Supremo Tribunal Federal do dia 20 de agosto de 2015, que afirmou categoricamente que "noventa por cento das pessoas expostas à maconha se tornam viciadas", quando pesquisa[3] da Universidade John Hopkins (EUA) demonstra que apenas 8% por centro dos usuários de maconha se tornam dependentes ─ no caso do álcool o percentual sobe para 12 a 13% e, no do tabaco, para 33%. O problema não é o uso, mas o uso problemático. Este, ao contrário das fantasias midiáticas, é exceção.

A estreita correlação entre o direito e as categorias do senso comum já fora elucidada por Peter McHugh[4]: além da alteração da rotina (hábito socialmente concebida como "normal"), a atribuição de "responsabilidade moral" avalia a possibilidade de se exigir ou não do autor, conforme as circunstâncias do caso concreto, uma conduta diversa, e perquire se havia consciência de se estar agindo em violação às regras. A dogmática penal delineia nomem iuris peculiares, mas a ideia é exatamente mesma: tipicidade (vontade de afrontar um padrão legal de conduta), antijuridicidade (violação tolerada pelo ordenamento) e culpabilidade (consciência e possibilidade de agir de outro modo).

Para avançar ainda mais na compreensão da temática, especialmente quanto à arbitrária definição de quem seja "usuário" e de quem seja "traficante", dado que as condutas do art. 28 da Lei de Drogas estão igualmente abarcadas pelo art. 33 do mesmo diploma legal, dois aportes da psicologia social são fundamentais: a heurística da representatividade e as teorias implícitas da personalidade. Passo a apresentar cada uma delas e seu impacto no estudo da interações sociais e dos processos de criminalização, ainda que de modo bastante sucinto.

A heurística da representatividade nos informa que tendemos a classificar um objeto com base na semelhança com um outro objeto aparentemente semelhante. Se um policial militar, no front diariamente, acredita que a maneira como a pessoa se veste ou o tipo de cabelo que usa são fatores relevantes para identificar alguém como "traficante", ele representará essa identidade em sujeitos que, não obstante portem drogas ilícitas, o fazem apenas para consumo pessoal. Projetam-se standards que, na verdade, podem não revelar nada sobre a pessoa, mas certamente revela uma outra coisa: o processo de definição é constantemente condicionado pelo resultado do processo de definição exercido em situações precedentes.

Todos já ouvimos falar que "a primeira impressão é a que fica". As teorias implícitas da personalidade[5] evidenciam justamente as estratégias informais-intuitivas empregadas rotineiramente pelo homem comum para "conhecer" o outro com o menor esforço possível, ainda que com grande probabilidade de erro. Estamos bem mais propenso a aceitar como "verdadeiro", como mais digno de confiança, o que vai ao encontro das nossas pré-concepções do que qualquer outra informação que não a corrobore. Temos uma necessidade de categorizar a tudo, porque só assim somos capazes de estabelecer relações de pertencimento para distinguir o que é igual do que é diferente. Essa noção que cada pessoa tem da forma como os traços de personalidade se interrelacionam opera quase que automaticamente, sem que o indivíduo se dê conta disso.

A tendência de encarar a personalidade como um conjunto de traços rígidos ou como flexíveis terá um grande impacto nos julgamentos sociais. Numa posição rígida, afirmaríamos que, se alguém é desonesto, sempre o será; se uma pessoa é fria, está condenada a ser assim pelo resto da vida. Já numa posição flexível, diríamos que, se alguém é indeciso ou preguiçoso, nada impede que, com o passar do tempo, com a maturidade, mude esse perfil. Essa tentativa de promover uma associação lógica entre adjetivos aparentemente próximos (frio e desonesto, indeciso e preguiçoso, inteligente e ambicioso), através de inferências (se a pessoa possui o traço x, então também deve possuir o traço y), é a marca registrada das teorias implícitas de personalidade.

É a partir destas teorias que se dá a construção social de estereótipos, como a do usuário de maconha: um sujeito pintado como desajustado, rebelde, aéreo, que não merece confiança. Pior: improdutivo para a lógica do capital. O teorema de W. I. Thomas não calharia melhor do que aqui: se  definem situações como reais, elas são reais em suas consequências. As inferências sobre a personalidade do usuário de drogas (ilícitas), mesmo sem qualquer amparo na realidade, terminam produzindo efeitos bem visíveis no mundo sensível.

Assim como temos uma língua culta ou padrão (gramática) e uma língua informal (gírias, regionalismos, etc), o sistema criminal só pode ser compreendido para além do aparente se problematizarmos a sua atuação concreta, que repousa mais em metarregras (Fritz Sack) do que em regras, continuamente em preconceitos e raramente em "tábulas rasas". É preciso desnudar os postulados falaciosos da ideologia da defesa social, notadamente o princípio da igualdade, porque, parafraseando Nietzsche, o processo de criminalização se apresenta como um "eterno retorno dos mesmos" ─ os personagens podem até mudar de nome, mas o seu papel é sempre o marginal. Ordem e repressão para a ralé, progresso e blindagem para as classes sofisticadas: meros operadores que não se perguntam como a máquina funciona continuarão a legitimar e eternizar essa configuração. Se o gosto está vinculado à classe, o paladar punitivo também tem sua preferência.


Notas e Referências: [1] BECKER, Howard. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

[2] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à Sociologia do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

[3] BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, R. (Org.). Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983d. p. 82-121.

[4] WAGNER, Fernando; ANTHONY, James. From First Drug Use to Drug Dependence: Developmental Periods of Risk for Dependence upon Marijuana, Cocaine, and Alcohol. Disponível em: < http://www.nature.com/npp/journal/v26/n4/full/1395810a.html#REFERENCES>,

[5] FERREIRA, Mário B. et al. Para uma revisão da abordagem multidimensional das impressões de personalidade: O culto, o irresponsável, o compreensivo e o arrogante. Aná. Psicológica [online]. 2011, vol.29, n.2, pp. 315-333. ISSN 0870-8231.


Bruno Cortez

Bruno Cortez Castelo Branco, Mestre em Direito Penal (UFPR) e Professor Universitário em Curitiba.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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