Teoria geral do crime: Lição 2

25/03/2015

Por Marcelo Pertille - 25/03/2015

Olá, pessoal! No post passado iniciamos o estudo da teoria geral do crime e demos partida com a apresentação do tema, abordando, em seguida, as principais diferenças entre crime e contravenção penal. Hoje avançaremos com o conceito de crime.

Crime é usualmente definido sob três aspectos: MATERIAL, FORMAL e ANALÍTICO.

- MATERIAL: É a conduta (ação ou omissão) humana causadora de lesão ou perigo de lesão a bem jurídico protegido. Serve este conceito material como norte para a atuação legislativa, eis que a partir da identificação de valores sociais importantes passa o legislador a formalizar ou não a criminalização.

FUNIVERSA/PC-DF - Segundo a concepção material, crime é tudo aquilo que a sociedade entende que pode e deve ser proibido, mediante aplicação de sanção penal. Resposta: Correta

- FORMAL: É a conduta proibida pela lei penal, sob ameaça de imposição de pena.

CS-UFG/Assistente Jurídico - O conceito formal do crime constitui-se na conduta proibida por lei, sob a ameaça de aplicação da pena, numa visão legislativa do fenômeno. Assim sendo, respeita o princípio da legalidade ou da reserva legal, para o qual não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem lei anterior que a            comine. Resposta: Correta

FCC/TCE-PR - O conceito de delito formal é o fato humano proibido pela lei penal, e material há lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico-penal. Resposta: Correta

Não há, entretanto, no Código Penal um conceito expresso de crime, havendo quem defenda que a Lei de Introdução ao Código Penal (LICP - Decreto-Lei 3.914/41) supre essa omissão quando prevê:

Art 1º Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de   prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.

De outro norte, há autores que advogam que o dispositivo apenas prevê tipos de sanção penal, diferenciando com isso crime e contravenção penal, não servindo para fechar o conceito de crime. Prova disso seria a figura típica do art. 28 da Lei 11.343/06 – Lei de Drogas, pois as sanções previstas no preceito secundário da norma incriminadora (lembre-se: preceito primário é a descrição da conduta proibida; preceito secundário é (são) a(s) pena(s) prevista(as)) não encontram paralelo na redação do art. 1º da LICP:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

É preciso enfatizar que apesar de ter havido muita discussão sobre a descriminalização da conduta, pois muitos passaram a interpretar que diante da ausência de penas de reclusão ou detenção, tendo quem defendesse ainda que o tipo passou a constituir infração penal sui generis, prevaleceu o entendimento do Supremo Tribunal Federal manifestado no Informativo 456, relacionado ao RE 430.105/RJ:

A Turma, resolvendo questão de ordem no sentido de que o art. 28 da Lei 11.343/2006 (Nova Lei de Tóxicos) não implicou abolitio criminis do delito de posse de drogas para consumo pessoal, então previsto no art. 16 da Lei 6.368 /76, julgou prejudicado recurso extraordinário em que o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro alegava a incompetência dos juizados especiais para processar e julgar   conduta capitulada no art. 16 da Lei 6.368 /76. Considerou-se que a conduta antes descrita neste artigo continua sendo crime sob a égide da lei nova, tendo ocorrido, isto sim, uma despenalização, cuja característica marcante seria a exclusão de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva da infração penalAfastou-se, também, o entendimento de parte da doutrina de que o fato, agora, constituir-se-ia infração penal sui generis, pois esta posição acarretaria sérias   consequências, tais como a impossibilidade de a conduta ser enquadrada como ato     infracional, já que não seria crime nem contravenção penal, e a dificuldade na   definição de seu regime jurídico. Ademais, rejeitou-se o argumento de que o art.  do DL 3.914 /41 (Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei de Contravenções Penais) seria óbice a que a novel lei criasse crime sem a imposição de pena de reclusão ou de detenção, uma vez que esse dispositivo apenas estabelece critério para a distinção entre crime e contravenção, o que não impediria que lei ordinária  superveniente  adotasse outros requisitos gerais de diferenciação ou escolhesse para   determinado delito pena diversa da privação ou restrição da liberdade. Aduziu-se, ainda, que, embora os termos da Nova Lei de Tóxicos não sejam inequívocos, não se   poderia partir da premissa de mero equívoco na colocação das infrações relativas ao usuário em capítulo chamado "Dos Crimes e das Penas". Por outro lado, salientou-se a previsão, como regra geral, do rito processual estabelecido pela Lei 9.099 /95. Por fim, tendo em conta que o art. 30 da Lei 11.343 /2006 fixou em 2 anos o prazo de    prescrição da pretensão punitiva e que já transcorrera tempo superior a esse período,  sem qualquer causa interruptiva da prescrição, reconheceu-se a extinção da   punibilidade do fato e, em consequência, concluiu-se pela perda de objeto do recurso extraordinário. (Sem grifo no original)  

VUNESP/JUIZ-SP - Assinale a alternativa que apresenta o atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal com relação à posse de droga para consumo pessoal, prevista no art. 28 da Lei n.º 11.343/2006, no qual, para a Corte Suprema, tal conduta foi: a) descriminalizada. b) transformada em contravenção penal. c) transformada em ilícito administrativo. d) despenalizada e) atenuada.

- ANALÍTICO: Sob o enfoque analítico a infração penal é estudada juridicamente a partir dos elementos que a compõem. Por certo que o crime e a contravenção penal enquanto acontecimentos da vida são únicos e indivisíveis, mas a questão a ser tratada aqui leva em conta o seu fracionamento diante de teorias que justifiquem, expliquem e constatem a necessidade do Direito Penal frente a casos concretos.

Por isso é fundamental guardar que, majoritariamente, os elementos (também chamados de substratos) do crime são o FATO TÍPICO, a ILICITUDE (ou antijuridicidade) e a CULPABILIDADE, nessa ordem de análise.

UEPA/PC-PA - De acordo com doutrina majoritária no mundo, o conceito analítico de crime o define como um fato típico, antijurídico e culpável, sendo que, ao analisarmos um fato supostamente criminoso, devemos investigar seus requisitos nessa sequência.  Resposta: Correta

Ao longo da evolução do Direito Penal a construção dessa tríade passou de maneira fundamental pela definição do fato típico, entendido como a reunião de uma CONDUTA produtora de um RESULTADO (com NEXO DE CAUSALIDADE, portanto) que encontra TIPICIDADE.

CUIDADO, é muito importante guardar esses quatro elementos que compõem o primeiro substrato da teoria do crime. Vale enfatizar: FATO TÍPICO = conduta + resultado + nexo causal + tipicidade. Em especial, para que se entenda o processo de formação dessa evolução, é preciso focar esforços na conduta.

Para a TEORIA CAUSAL, também conhecida por naturalista ou clássica, idealizada por Franz von Liszt, a conduta é mero acontecimento causal, dentro do qual não deve ser estudada qualquer vontade do agente quanto à produção de resultados.

UERR/PM-RR - No que concerne a Teoria Naturalista, também denominada causal, mecanicista ou clássica, a conduta - segundo o postulado de Franz von Liszt - representaria tão só uma produção de resultado mediante o emprego de força física. Melhor explicando, a conduta seria o comportamento humano voluntário que produz um resultado modificativo do mundo exterior. Resposta: Correta

Logo, é possível notar que o DOLO e a CULPA não fazem parte do estudo da conduta para os causalistas e, por consequência, do fato típico. São vistos na CULPABILIDADE (terceiro substrato), mais precisamente dentro da IMPUTABILIDADE, primeiro elemento da culpabilidade, acompanhado pela POTENCIAL CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE e pela EXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA.

Com o aparecimento da TEORIA FINALISTA, de Hans Welzel, em meados do século passado, passou-se a entender fundamental conceber o DOLO e a CULPA como partes integrantes do conceito CONDUTA. Para Welzel conduta ficou definida como comportamento consciente e voluntário, comissivo ou omissivo, doloso ou culposo, destinado a um fim. É esse o conceito adotado majoritariamente.

UERR/PM-RR - A Teoria Finalista, cujo maior expoente foi Hanz Welzel, rechaçou a ideia de que a conduta era um mero acontecimento causal e trouxe para a ciência penal algo que era inatingível para os naturalistas, o fato de que a conduta é a ação humana, voluntária e consciente, dirigida a um fim. Resposta: Correta

MPE/MG - Sobre a teoria finalista da ação, é CORRETO afirmar que a partir do conceito ôntico de ação final, trata o injusto de maneira objetiva, quer dizer, o injusto é atribuído a uma pessoa em virtude do desvalor do resultado final. Resposta Correta

Para os finalistas a CULPABILIDADE continua sendo compreendida pelos três elementos também trabalhados pelo causalismo: IMPUTABILIDADE, POTENCIAL CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE e EXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. Não são mais estudados na imputabilidade, contudo, o dolo e culpa.

Essa transformação fez aparecer uma dissidência dentro do movimento finalista impulsionada pelos estudiosos que passaram a interpretar a culpabilidade (agora carente da análise do dolo e da culpa) como mero pressuposto de aplicação da pena e não mais como substrato integrante do conceito analítico de crime. Para eles crime passou a ser FATO TÍPICO e ILÍCITO, devendo a CULPABILIDADE ser trabalhada para que se estabeleça a necessidade de uma reprovação penal (pena), sua espécie e quantidade. Justificam alguns doutrinadores (dentre eles Damásio de Jesus, Fernando Capez, Celso Delmanto, Renê Ariel Dotti) que o próprio Código Penal teria feito essa opção quando ao trabalhar as causas excludentes de ilicitude deixou expresso que diante delas “não há crime” (art. 23 do CP), não repetindo tal redação diante das excludentes de culpabilidade, quando apenas menciona que haverá isenção de pena (arts. 26, caput; 28 §1º). O finalismo dissidente deu origem à expressão conhecida por CONCEITO BIPARTITE de crime, em contraposição ao CONCEITO TRIPARTITE até então adotado pelo causalismo e finalismo de Welzel. O conceito tripartite finalista, entretanto, é o mais adotado pelas bancas de concursos públicos.

CESPE/TJ-DF - Considera-se crime toda ação ou omissão típica, antijurídica e culpável. Resposta: Correta

Importante lembrar que por volta dos anos 80 e 90 começaram a aparecer outras teorias, sempre tendo por base o modelo finalista (com o dolo e a culpa no FATO TÍPICO), que passaram a levar em consideração a função do Direito Penal. Iniciou-se um movimento no sentido de incorporar no conceito analítico de crime a real missão do ramo diante da formação de Estados baseados no ideal democrático-libertário, por exemplo. Começaram a aparecer conceitos de política criminal atrelados à teoria do crime com Claux Roxin. Mas não apenas isso, também o funcionalismo deu origem a outras concepções baseadas no Direito Penal enquanto protetor do modelo político dos Estados, conforme Günter Jakobs. O primeiro ficou conhecido por FUNCIONALISMO TELEOLÓGICO/MODERADO, enquanto o segundo por FUNCIONALISMO SISTÊMICO/RADICAL.

No funcionalismo de Roxin crime passou a ser FATO TÍPICO, ILÍCITO e REPROVÁVEL (não mais culpável). O penalista propôs que na REPROVABILIDADE fosse averiguada, além da IMPUTABILIDADE, da POTENCIAL CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE e da EXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA, a real NECESSIDADE DA PENA. O Direito Penal deveria, diante da sua natural agressividade, preocupar-se apenas com ataques a bens jurídicos relevantes, o que traria proporção no tratamento estatal de condutas lesivas a interesses de terceiros.

UFMT/MPE-MT - O funcionalismo da Escola de Munique, liderada por Claus Roxin, apregoa que a teoria do delito não pode ficar alheia aos postulados político-criminais que norteiam o Direito Penal e descreve a necessidade da penetração da política criminal na dogmática. Resposta: Correta

O funcionalismo de Jakobs, por sua vez, deu origem ao DIREITO PENAL DO INIMIGO, tendente a proteger o Estado de condutas que evidenciem uma quebra de confiança no indivíduo diante de comportamentos antinormativos. O Estado, por meio do Direito Penal, passa a dar tratamento diverso aos agentes que comprometem o controle social, devendo esses ser vistos e identificados como inimigos.

MPE - PR - Das construções doutrinárias de Günther Jakobs acerca do “Direito Penal do inimigo” extrai-se que aquele que por princípio se conduz de modo desviado, não oferece garantia de um comportamento pessoal, por isso não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser combatido como inimigo; Resposta: Correta

MPE - MS - O Direito Penal do Inimigo, idealizado por Günther Jakobs, pode ser entendido como um Direito Penal de terceira geração. Na sua concepção inimigo é aquele que afasta de modo permanente da norma. Segundo esta teoria, não deve ser ao criminoso conferido o status de cidadão. Resposta: Correta

UFMT/MPE-MT - O funcionalismo da Escola de Bonn, encabeçada por Günther Jakobs, está orientado a garantir a identidade normativa. O crime será uma falta de lealdade ao direito e a pena será o recurso necessário para estabilizar o sistema. Resposta: Correta

Em síntese, muito importante frisar que a teoria majoritariamente adotada pela doutrina brasileira e pelas bancas de concursos públicos leva em consideração o conceito TRIPARTITE FINALISTA, no qual, entretanto, devem ser incorporados conceitos do funcionalismo teleológico de Roxin, partindo-se da premissa de que a proporcionalidade e a necessidade da reprovação penal devem ser necessariamente sopesadas diante do caso concreto. Prova disso é o aparecimento no Direito Penal brasileiro do princípio da insignificância (apto a tornar materialmente atípica uma conduta abstratamente prevista) e também da bagatela imprópria.

O reconhecimento do princípio da bagatela imprópria permite que o julgador, mesmo diante de um fato típico, deixe de aplicar a pena em razão desta ter se tornado desnecessária, diante da verificação de determinados requisitos. (STJ - HC 222093/MS, Rel. Min. Gilson Dipp, 5ª Turma).

TJ/SE – Dado o caráter funcional do princípio da insignificância, a bagatela imprópria não afasta a tipicidade material da conduta, mas exclui a culpabilidade. Resposta: Correta

Vale agora organizar as ideias para a sequência do nosso estudo:

CRIME é composto por: 1) FATO TÍPICO – conduta, resultado, nexo causal e tipicidade; 2) ILICITUDE – partindo-se da presunção de que os fatos típicos são ilícitos, estudam-se aqui as exceções capazes de excluí-la; 3) CULPABILIDADE – imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.

Para facilitar a compreensão, vale interpretar o esquema abaixo como uma espécie de mapa.

FATO TÍPICO ILICITUDE (causas excludentes – art. 23 do CP) CULPABILIDADE
1) Conduta
2) Resultado 3) Nexo de causalidade 4) Tipicidade 1) Estado de necessidade 2) Legítima defesa 3) Estrito cumprimento de dever legal 4) Exercício regular de direito1) Imputabilidade 2) Potencial consciência da ilicitude 3) Exigibilidade de conduta diversa

Na próxima lição veremos a classificação dos crimes e começaremos a dissecar cada um dos substratos e seus elementos, seguindo o caminho nesse mapa que se inicia com o estudo do fato típico. Até a próxima semana e bons estudos!


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Marcelo Pertille é Especialista em Direito Processual Penal e Direito Público pela Universidade do Vale do Itajaí, Advogado e Professor de Direito Penal de cursos de graduação em Direito e da Escola do Ministério Público de Santa Catarina.                                                                                                                                                                                          


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