Por Nelson Cerqueira - 09/07/2015
O objetivo deste trabalho introdutório acerca da teoria do texto é se perguntar o que é um texto e explorar uma borda de resposta (sentido Jacques Derrida) que consiga nos situar na teoria do texto como expressão de significado, a fim de após examinar alguns aspectos históricos chegar até ao leitor/texto e à satisfação e prazer da leitura como um novo texto a ser explorado, à lógica do sentido interno e externo (Gilles Deleuze) e à estrutura de recepção (Robert Jauss).
Em teoria literária, um texto é qualquer objeto que possa ser lido, uma obra literária, uma obra científica, uma obra de ciências humana, uma obra jurídica. Não importa se se trata de um produto construído por palavras, um sinal de trânsito, um arranjo arquitetônico de casas, uma quadra de uma determinada rua, ou estilos de vestimentas, ou ainda algum arranjo pictórico, poético ou cinematográfico, com seus palcos e cenários.
Marcus Fabius Quintillianus, em Insitutio Oratoria, (Instituiciones oratorias, trad. Ignacio Sandier. Perlado Paes e Cia: Madrid, 1916, p. 14), seu tratado basilar sobre retórica, explicitou a definição de texto da seguinte forma: “depois de se escolher as palavras, elas devem ser organizadas de forma orgânica e transformadas em um delicado tecido (textus, textum), sem esquecer a linguagem figurativa e as figuras de tropos, Esses elementos exercem grande influência na história do discurso, passando por Longinus, Curtius, Giddens, chegando a Jacques Derrida em sua homenagem à teoria do texto de Quintiliano, quando discutindo a viabilidade e executabilidade da linguagem em transmitir a verdade dos objetos (L’écriture et la différence. Paris: Seuil, 1967).
O vocábulo texto, assim, vem do Latim, textus, que significa tecido. Para o formalista russo Boris Eichenbaum (Aufsätze zur Theorie und Geschichte der Literatur, Frankfurt am Main: Shurkamp, 1965, p. 11-13), assim como para o teórico em semiótica da cultura, Iuri Lotman Theory of Text, Bloomington, Indiana UP, 1978, p. 37-58), a década de 20 tornara-se voz corrente, nas diversas culturas, de um movimento para considerar o próprio mundo como um texto a ser interpretado, compreendido e lido a fim de se aproximar de seu significado real. Essa metáfora do mundo ou da cultura, adaptada pelo método formal, foi-se tornando cada vez mais utilizada e incorporada ao universo da teoria da interpretação pós-Dilthey para re-significar o texto jurídico (Jack Balkin), literário (Jacques Derrida), sociológico (Zygmunt Balman), literário (Wolfgand Iser e Robert Jauss), no intuito de se concluir que todo texto é: um discurso fixado pela escrita e assim pluri-semiótico, pluri-semântico, líquido, constituído em forma de palavras – orais e escritas – imagens, sons, gestos (texto gestual), que em seu conjunto formam o texto de uma determinada sociedade.
Diante da questão do significado do texto e para responder a pergunta o que é o texto, Paul Ricoeur propõe chamar de texto todo discurso fixado pela escrita. Assim, a determinação em si mesmo, Ricoeur prossegue, voltando-se para Ferdinand de Saussure (aliás, ninguém que pretenda falar de texto e discurso pode omitir Saussure), para quem a concretização da língua em evento discursivo, a produção do discurso por um locutor, implica que cada texto se constitua em uma relação entre dois polos de significado – escrita e fala --, e a escrita seja, enquanto instituição, posterior à palavra, expressa ou mental. A escrita está destinada a fixar por intermédio de um grafismo linear articulações da oralidade (Paul Ricoeur. Du texte a l’action. Esprit/Seuil: Paris, 1968, pp. 137-142)
Vale recordar com Northop Frye, em Anatomy of Criticism, que o texto e significado, assim como seus aspectos, se originam do vocábulo grego logos, que nos deu também a lógica e na tradução de São João de textos bíblicos no Novo Testamento, a palavra Verbo: no começo era o logos, no começo era o verbo, em busca do verbo encantado, ampliando o significado do vocábulo grego. O vocábulo grego logos possui muitas acepções: um chão firme, opinião, expectativa, discurso, narrativa, razão. Heráclito usava o termo para significar ordem e conhecimento. Os sofistas foram os primeiros a usar o termo logos como discurso e Aristóteles ampliou-o para argumento e texto retórico. A etimologia do termo logos deriva-se do verbo lego, narrar, fazer apontamento do texto oral.
O que poderia anteceder ao texto? Em Gênesis, encontramos que no começo existia o Nada, e aqui surge o texto bíblico para estabelecer o primeiro significado. Assim, anterior ao texto existia apenas o Nada, como uma página em banco, à espera do espírito criador. O texto faz a existência das coisas, do céu, da terra e de tudo que sobre ou sob eles existe. O texto como significado original e os textos como significados do significado primeiro, derivados do criador de todas as coisas: D’us.
O texto bíblico diz: E Deus disse (texto oral): e haja luz (significado) e houve luz (significante). E Deus chamou a luz de “dia” (significado e significante).
No texto de São João, Novo Testamento, no original grego, o autor diz que no começo havia o logos – texto, significado, lógica--, que nas traduções lemos: no começo havia a Palavra (inglês) ou o Verbo (português), e o verbo estava com Deus e o verbo era Deus.
Entende-se que o verbo, palavra, logos, consequentemente texto, é Deus, e Deus é um texto. De onde conclui-se que o texto é divino, é dogmático, espraiando-se do livro sagrado para o texto jurídico inspirado no poder maior do criador. E o significado de texto cultural ou o mundo como texto é perfeitamente aceitável, como criação da narrativa divina. O texto detém as nunaces da moral na medida em que atos morais estão sujeitos a serem lidos ou interpretados em suas inter-relações, intertextualidades com outros textos. Lógico, a textualidade dos atos morais, ou legais, possuem dimensões sintática, pragmática e semântica; possuem ainda gramaticalidade, instrumentalidade e significação que em seu conjunto forma a teoria do texto, como tal, composto de subtextos, contextos e, hoje, hipertextos.
Nessa acepção, Julia Kristeva define texto de um ângulo epistemológico, como um aparelho translinguístico que redistribui a ordem da linguagem colocando-a em uma relação direta com a palavra comunicativa e com o objetivo de gerar informação direta com diferentes enunciados anteriores ou sincrônicos: significantes práticos produtividade textual, significado, feno-texto, geno-texto, para-texto e intertextualidade.
A relação que une os componentes de um texto, os elementos do signo, não pode ser tomada como sendo o próprio signo, mas sim uma essência de resultante da associação derivada do signo e do texto. Robert Scholes (Textual Power. (Yale University Press, N.H, 1985) propõe que, a partir de Ferdinand de Saussure com o significado e significante, o laço entre significado e texto não é arbitrário ; pelo contrário, é necessário.
E haja luz, disse Deus; e houve luz. Aliás, essa relação endógena está explicita no texto de Saussure (La linguistique générale. Seuil, Paris, 1978, p. 80) quando diz que esses dois elementos, significado e significante, estão intimamente unidos e uma reclama o outro. Só houve luz a partir do comando “e haja luz”.
Frye (Anatomy of Criticism, Princeton University Press, 1957) defende que nosso entendimento acerca do significado contido em um determinado texto está diretamente relacionado com nossa expectativa e que esse fenômeno ajuda ao leitor/ouvinte a perceber as nuances do texto, seus arquétipos e modos. Frye vê o texto como constituído de grupos de formalae e regras, sendo estas reflexos de uma mitologia deslocada; a fim de criar outros mitos, arquétipos e significados; verdades, procedimentos obedientes e derivados de estruturas formais (Anatomy of Criticism, p.138). Fórmulas tão rígidas conduzem a concepções que buscam negar a individualidade e sentido intrínseco do texto, negar sua localização na história. Compete ao método crítico e à teoria da desconstrução buscar vencer essa barreira e rever o texto em seu contexto e metatexto mais apropriados dentro do corpus da produção teórica; quer jurídica, sociológica ou literária (p.171). Frye busca mostrar que qualquer texto possui um significado associado ao arquétipo de imagens e situações recorrentes que liga esse texto de jurisprudência ao texto do qual ele é uma cria, e a partir desse ponto, tornam-se interdependentes, um é imagem do outro, podendo até ser esquecido qual surgiu primeiro; basta um ato de breve reescrita de premissas.
Como bem coloca Umberto Eco (The Role of the Reader, Bloomington: Indiana University Press, 1979) o autor deveria morrer após terminar um determinado texto a fim de não atrapalhar a recepção do texto em si. Eco fez esse comentário ao elaborar outro texto explicativo acerca do romance O nome da rosa, e ao largo de tal procedimento, Eco segue e confirma Jacques Derrida que alega Il n’y a pas de hors-texte. Poder-se-ia assumir que “não há nada ‘fora do texto’” como um passo para afirmar que as palavras de um texto geram significado e que o texto recebe significado, de um autor transcendental , mas da relação entre as palavras entre si dentro do texto e seu ato dialógico (Bahktin) com outros textos. Assim, significado emana do texto em si, em corpo, e não de evento jurisprudencial externo. Cada texto, original ou secundário, norma legislativa ou sua interpretação é um corpo textual em si mesmo e, assim, sagrado. “E haja texto”
A legislação do estado de Indiana, nos Estados Unidos, ainda mantém a proibição de alguém usar um transporte púlico até as 8 horas da manhã, se houver consumido alho cru ou cuzido. Em Gary, Indiana, ainda é proibido frequentar o teatro se o espectador comeu alho nas 4 horas anteriores ao espetáculo. Lógico, que na contextualidade do século XXI é quase impossível obediência a essa norma e, se algum juiz buscasse implementá-la, surgiriam liminares e tentativas de defesas que poderiam culminar em alguma alternativa de jurisprudência legal. Uma vez que não há nada fora do texto, se esse ficou obsoleto, ficou também obsoleta sua significação e aplicabilidade. No entanto, ao trazer essa alusão ao texto legal em questão, desperto no leitor o ato da curiosidade em buscar aquele texto e talvez discuti-lo sob novo ângulo ou usá-lo como ilustração, trazendo com isso nova vida a um texto que estaria fossilizado. O texto continua emitindo significado.
O texto é um conjunto de signos (Robert Scholes), assim como cada signo é um texto original que virá a compor a complexidade do texto mais amplo. O signo, o signal, a imaginação, a inspiração, o complexo cultural pré-dado, o conjunto religioso e ideológico, o conjunto de imagens, o silêncio do autor, a família e a sociedade constituem-se em bases para pré- definições, pré-conceitos, pré-julgamentos, pré-missas que levarão alguém, em determinado momento, a se propor a construir um significado acerca de alguma coisa que o in-quieta. E essa in-quietude, associada ao desejo de domínio, conduz ao esforço de transformar seu signo/imaginação/idelogia/religião em algo sagrado: escritura sagrada, texto imaculado, texto dogmático, texto referência, todos pretendendo significado singular, único significado válido. Scholes identifica estruturas hierárquicas de poder dentro do texto, em suas minimalidades frasais, até mesmo em um artigo ou adjetivo usado de uma determinada forma, em um determinado contexto. Assim, Scholes propõe deixarmos de estudar literatura, direito, ciência e passarmos a avaliar com cuidado o texto, pois esse vai aportar elementos que irão afetar a legalidade, recepção e validade daquele. Derrida em sua ampla avaliação destes fenômenos vai desconstruir o texto para reconstruir o significado mais amplo, utilizando-se de uma densa teoria retórica do texto e suas bordas.
É nessa relação que nasce o sentido de texto ut pictura poesis, a relação pintura e poesia, texto e imagem, levantada por Horácio [Quintus Horacius Flaccus] que defendeu a aproximação narrativa entre pintura e poesia, chegando a igualá-las em sua função textual de significado. Lessing inicia seu Laocoön, 17 séculos depois propondo rever a identidade ao afirmar que a pintura é um texto sincrônico por ser um fenômeno visual disponibilizado em um determinado espaço, equanto a poesia ou a filosofia é um texto diacrônico que se vai desnudando aos poucos para a interpretação do leitor. Dessa forma, até Lucien Goldman, o texto foi-se transformando de aliado da pintura, da imagem, para uma posição, às vezes, antagonista: texto como escrita apenas, chegando ao ponto de o legislador afirmar que o texto é razão e não imaginação. O texto assume sua ontologia e os intérpretes o transformam em um deus, transformando-o em regras e normas fixas e sagradas (W. J. T. Mitchel. Iconography: Image, Text, Ideology. Chicago: Chicago UP, 1986).
Derrida avança, em muito, uma retomada do significado do texto, buscando livrá-lo das amarras do significado único e pede que o texto signifique as palavras de um livro, de um poema, quer seja em sua forma original, quer seja em qualquer meio de transmissão: televisão, rádio, teatro, pintura, música. Mas, alerta que uma fronteira retórica pode ser criada entre a verdade das coisas e o texto. O texto é a externalidade: a verdade das coisas está velada na interioridade, no implícito, no silencio ou nas bordas de significado, e essas bordas possuem um caráter fractal de significado, exigindo do leitor paciência no processo de desconstruir para reconstruir, evitando apressadas generalizações. O texto pede ao leitor que o entenda a partir das convenções históricas e retóricas da área de estudo, com suas dimensões de entendimento e de conteúdos ideológicos que o grupo produtor solicita como padrão (Jacques Derrida. Du droit a la philosophie. Paris: Seuil, 1968, pp 344-352).
Em qualquer circunstância, do ponto de vista teórico, qualquer texto implica na referência à primeira palavra escolhida, primeira frase composta de substantivo e verbo, primeira imagem para gerar o movimento do significado: “no começo, Deus criou o céu e a terra”. Na ampliação da narrativa textual, surgem os primeiros adjetivos e advérbios, para gerarem nuances de qualidade, cor, gosto, preferência, intensidade, temporalidade, escolha ideológica: “E Deus viu que era bom” (adjetivo qualificado, com significado divino).
Primeira frase, primeiro parágrafo de significado --signos e atos-- inicio de um texto e início de composição e construção de autoria sócio-religioso-ideológica.
Nos universos múltiplos da sociedade, aonde o autor é o criador, em paráfrase divina, o parágrafo poderia ter sido escrito por qualquer membro de um grupo que defenda mesmos ideais, diante de um possível significado. É uma autoria coletiva pré-existente no imaginário do grupo dominante ou dominado, hegemônico ou oprimido.
Porém, representando a ansiedade do grupo, um determinado sujeito verbaliza para si próprio, e depois para o outro, esse parágrafo que será levado a representá-lo em forma de signos estruturadores que se materializem sobre um papel, um palco vazio, ou uma tela em branco; enfim, sobre um Nada.
Esse texto, agora sacralizado, ou quase, estará sujeito a analise, revisão, discussão, desconstrução, interpretação de outros grupos com pré-ceitos e pré-definições ideológicas distintas e, por essa via fractal estilo Benoît Mandelbrot (The Fractal Geometry of Nature, Yale University Press, N.H., 1977) estará sujeito a interpretação e seu significado entrará em choque com o significado do grupo que o analisará. Dessa leitura outra, surge o questionamento, a análise, a crítica, a interpretação com foco direcionado para a refutação, rejeição e/ou tentativa de mostrar a ausência de validade da lógica, logos—palavra, significado --, dos verbos e substantivos, dos adjetivos e advérbios, refutação de todo o grupo que este texto simboliza e cujo interesse representa.
Após organizada a negação de validade deste texto, os diferentes grupos com suas pré-significações -- signos próprios-- começam a refletir outro conjunto de signos e imagens, superficiais ou densas, em forma de novo texto que represente, este sim, seu imaginário de gosto, preferência, ideais, intensidade, complexo cultural e ideológico, uma nova visão de sistema social, jurídico, artístico, pictórico, cenográfico.
Diante desta ansiedade, surgem novos verbos, substantivos e ornamentos com o fito de mostrar essa outra forma de ver o mundo-- poderá negar a anterior, ou simplesmente ignorar seu conjunto de signos. Por isso, Freud e Marx podem trabalhar bases de superestrutura, superego, infraestrutura, instintos, sem jamais citar ou ao outro e seus seguidores podem fazer o mesmo, ou podem, estes sim, discutir a co-relação, como no caso de Lacan, Aragon, Deleuze em seus ensaios a partir de Freud e Marx.
Surge a dimensão do leitor, do hermeneuta, do intérprete hegemônico e/ou antagônico. Surgem as interpretações e com essas as possibilidades de jurisprudências que poderão chegar a se constituírem em um novo complexo, ampliando a fractalidade que peça a revisão e esfacelamento do código cujo texto até então era considerado sagrado.
O texto que abrigou um determinado significado, composto por um determinado autor, individual ou coletivo, deixa de ser viatura exclusiva de seu autor original e passa a receber e conduzir outros leitores, de forma aberta; alheio à intencionalidade original, pois esta não mais o representa. A intencionalidade será agora aportada ao texto de acordo com os pré-supostos e pré-julgamento do novo intérprete, que lhe dará novo significado, a favor ou contra aquele que poderia ter sido o significado primeiro, carregado com uma determinada intenção social, política, ideológica e/ou idealista.
Do ponto de vista teórico, trabalhar o texto, pensar a semiologia requer de nós reconsiderar todo o campo conceitual e re-pensar o texto; re-dimensionar o que significa uma abertura para participar de um verdadeiro jogo gramatical (Ludwig Wittgenstein. Philosophical Grammar, Boston: Cambridge UP, 1982) que substitui a rigidez da narrativa, seja ficcional, religiosa ou jurídica, lançando-a sobre um tabuleiro de xadrez, de forma lúdica. Esse jogo nos leva a uma situação meta (além do ponto em que estamos), e por isso ao metatexto: toda interpretação -- religiosa, literária, jurídica -- é metatextual e é sempre uma re-escrita lúdica, com pretensão de precisão na definição de conceitos. Há um enorme prazer em produzir um texto, mesmo que seja uma sentença bem urdida. Peça de arte, romance, conto, poesia, ornamentalismo retórico.
A re-escrita, por sua vez, se apóia em uma situação complexa como texto. Imagine-se que o texto já é em si mesmo um objeto complexo, descrito de forma gramatical. Além disso, o texto é um sistema aberto, por mais sagrado que seja, aberto a interpretações, aonde palavras, substantivos, verbos e adjetivos podem ser abraçados ou queimados, a depender da relação de aproximação e distancia entre os sujeitos de leitura. O texto em si, como ser próprio, já conduz uma abertura natural, polissêmica, como aponta Umberto Eco, já em 1962 e de forma explicita.
É nessa dimensão que o texto é um objeto cultural, que não possui significado ou função, a não ser no olhar de uma comunidade discursiva particular. O texto sagrado das bíblias judeo-cristãs só possui significado relevante dentro deste universo de seguidores que professam a fé compatível com outros membros de seu grupo, dentro do qual o significado dos signos faz sentido e é apreendido.
Quando Roland Barthes pergunta em Théories du texte, (Paris: Seuil, 1975) o que significaria o texto em sentido corrente, ele mesmo responde que se trata de uma superfície fenomenológica composta por um tecido de palavras empregadas em uma obra, de forma a prover um sentido, um significado, estável e se possível único. Mas Barthes conclui que o texto sòmente apresenta esse significado único se interpretado pelos membros do mesmo grupo ideológico, da mesma igreja, de compartilhada teoria jurídica, pois o texto aporta significado para a alma social, através de um objeto moral que represente para esse grupo um contrato social. E neste contexto, se todos aceitarem, terá regras que se lhes exigem respeito e obediência, para ter o significado, sentido de segurança e estabilidade desejados.
O texto incorpora dialogismo interno e externo, como professa Michail Bakhtin. Possui diálogo consigo próprio, assim como com outros textos que lhe precedem ou lhe pos-cedem. A relação entre uma determinada área de conhecimento e a teoria do texto pode ser melhor compreendida quando nos deparamos com a análise das relações entre ética e discurso. Assim como há uma linguagem sobre ética, há uma ética sobre a linguagem; desta forma a teoria do texto pode iluminar a filosofia da moral e a justiça.
Barthes, e depois dele, Wolfgang Iser e Robert Jauss, entende que quando estamos diante de um texto que sofre novos tipos de interpretação, plausíveis para cada grupo, encontrando-nos diante do que o próprio Barthes denominou “morte do autor”, supremacia do texto e nascimento do leitor: novo ditador do texto com suas variadas interpretações do significado implícito, explicito, até mesmo o significado do silencio do texto.
A hermenêutica contemporânea, aliás desde Dilthey, mas sobretudo após a metade do século XX institucionalizou a dessacralização do autor, do histor grego, nos traz a história, o responsável por sua origem e criação, autor também mais diretamente vinculado à autor-idade latina, levando a dessacralização do texto sagrado e/ou jurídico que hoje pode ser lido apenas como texto – até mesmo ficcional; passando a questionar quem é a voz do texto, a voz social, ideológica, religiosa, jurídica e quais os in-teresses, pré-conceitos, ídolos, im-butidos no arcabouço do autor do texto.
Dessa forma, para uma conclusão temporária, o escritor nasce com o texto – Deus nasce com o texto que diz: “e o espírito de Deus movia-se sobre a face das águas. E Deus disse”. E o mesmo escritor morre quando o texto entra em circulação, garantindo espaço de existência para o significado ser in-terpretado, re-visto, re- analisado, aceito ou posto em cheque-mate.
Desta forma se pergunta: quem dá significado ao texto? Resposta simples, sem adjetivação: o leitor, o intérprete do texto sagrado. O leitor dá ao texto suas múltiplas significações; por isso mesmo, o hermeneuta se tornou tão popular no mundo contemporâneo. As lacunas, gosto, ideologia, contexto, argumentação irão buscar preencher os espaços de re-significação do texto, entrando em cena um novo personagem: a leitura.
Passamos dos significados sagrados, dogmáticos, da intencionalidade do autor, para uma nova dimensão de objeto de desejo: o prazer da leitura, onde o leitor está livre para obter satisfação com o texto. Se o texto não deixa espaço interno ou externo para experimentar esse desejo de prazer, o leitor o abandona no meio da leitura, ou sai da sala de cinema no meio do filme, abandona o concerto no intervalo e a peça de teatro a qualquer momento.
O prazer do texto que se está a re-interpretar, a re-escrever quando da leitura de um texto dogmático ou sagrado qualquer nos permite germinar um novo significado dentro do texto, aportando nossa interpretação como extensão do texto. E minha interpretação pode ser maior, mais densa, mais ampla, mais profunda do que o texto original, cujo autor não mais interessa para meu objetivo. O autor implícito, muitas vezes não reconhecido, muitas vezes não visitado, muito embora, ocasionalmente, busque-se resgatar o significado implícito aportado por aquele que possa vir a reconhecer na categoria de autor implícito-- caso venha a me ajudar nos processos comunicativos (Jürgen Habermas). O que interessa, enfim, é meu desejo de significado existente nas bordas do texto original em debate e a audiência que desejo influenciar, converter, ter como aliada no ato de julgamento dos significados.
Nelson Cerqueira é Graduado em Letras: Língua e Literatura Alemã pela Universidade Federal da Bahia (1975), mestrado em Literatura Comparada - Indiana University (1978) e doutorado em Literatura Comparada - Indiana University (1986). Atualmente é presidente - Companheiro das Américas Comitê Bahia, Presidente da Faculdade Zacarias de Goes-FAZAG, professor adjunto da Faculdade Helio Rocha e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFBA, atuando principalmente nos seguintes temas: hermenêutica, processo de decisão, teoria do discurso, teoria da linguagem e crítica literária.
Imagem Ilustrativa do Post: Magnetic Fridge Poetry // Foto de: Steve Johnson // Sem alterações
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