Tentação Irresistível: sobre a criminalização da negligência

12/10/2015

 Por Maíra Marchi Gomes – 12/10/2015

Da vez primeira em que me assassinaram, Perdi um jeito de sorrir que eu tinha. Depois, a cada vez que me mataram, Foram levando qualquer coisa minha. Hoje, dos meus cadáveres eu sou O mais desnudo, o que não tem mais nada. Arde um toco de vela amarelada, Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada! Pois dessa mão avaramente adunca Não haverão de arrancar a luz sagrada! Aves da noite! Asas do horror! Voejai! Que a luz trêmula e triste como um ai, A luz de um morto não se apaga nunca! 

Mário Quintana

 

O presente escrito pretende discorrer sobre a negligência; especificamente, sobre a negligência familiar. Tal questão mostra-se fundamental não apenas para se refletir sobre ações em Varas de Família e da Infância e Juventude, mas sobre uma espécie de penalização do Direito. Refiro-me à necessidade que o Conselho Tutelar busca (e encontra) de registrar em delegacias de polícia as suspeitas de negligência com os quais se depara.

É assustador que a legitimidade do órgão que, por excelência, destina-se à proteção de crianças e adolescentes respalde-se na oficialização em um espaço destinado à apuração de crimes. Questiona-se se a notificação que o Conselho Tutelar obrigatoriamente deve fazer destes casos não deveria ser feita em outros espaços; melhor dizendo, naqueles que apuram violações de direitos contra crianças e adolescentes sem necessariamente criminalizá-las.

Ainda que o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Penal não tipifiquem a negligência familiar, o Conselho Tutelar muitas vezes alega que só pode aplicar determinadas medidas protetivas a partir do Boletim de Ocorrência. Como se a aplicação de medida protetiva só se justificasse com o indício de algum crime. Não é raro, aliás, que no discurso redigido em tais registros policiais encontre-se a menção à possibilidade de que a criança/adolescente esteja sofrendo violência de alguma modalidade, sem citar qualquer indício. Talvez uma maneira encontrada pelo conselheiro tutelar e/ou pelo policial de convencer (a si, em primeira instância) de que a situação deveria ser tratada numa delegacia. Ou, ainda, uma maneira de dizer que, na verdade, para eles negligência é crime.

Sabe-se que o fantasma do crime, para aqueles por ele assombrados, pode estar em qualquer lugar. Logo, está em todo lugar. Assim, fica-se a mercê do imaginário, conjecturando que em determinada situação sempre se encontra, caso com boa vontade se procure, algum crime. Ou que qualquer situação sempre é, no fundo e/ou por detrás, crime. Daí ser possível que aqueles que deveriam se preocupar inicialmente com a proteção de crianças e adolescentes (para que não sofram várias ações e omissões prejudiciais que não apenas crimes, é importante lembrar) fiquem mais preocupados em caçar autores de crimes. Ou, melhor dizendo, que creiam que a proteção destes sujeitos está na punição de outros.

O policial, na maioria das vezes, registra tais situações não por com isso concordar, mas por estar submetido a ingerências institucionais (político-econômicas, na verdade) que o obrigam a formalizar no espaço policial tudo o que a população deseje. Daí encontrarmos paradoxos, como o preenchimento do campo “tipificação do fato” com expressões como “alienação parental”, “bullying”, “negligência” e até “fato atípico”.

Não se pode deixar de mencionar que alguns advogados incentivam tais práticas, solicitando a seus clientes que tais situações sejam registradas na delegacia para que, com um “documento oficial”, dêem maior legitimidade as suas petições nas Varas de Família, da Infância e Juventude e até Cível.

Mesmo quando apurada por instituições/espaços que se considera de fato destinados a apurar casos de negligência, o tema é cercado de dúvidas, como nos explicam Pasian, Faleiros, Bazon & Lacharité (2013) ao comentarem que não há consenso entre os pesquisadores do assunto sobre questões como "qual é o cuidado mínimo adequado que uma criança necessita?", "que ações ou omissões dos pais constituem um comportamento negligente?”, "deve-se considerar a intencionalidade das ações ou omissões?", "a situação da criança é resultado da pobreza ou de negligência parental?" e "quais os efeitos das ações ou omissões no desenvolvimento das crianças?". Assim sendo, pode-se cogitar que, principalmente para quem confunde proteção de crianças e adolescentes com punição de autores, tais perguntas serão sempre respondidas do modo que melhor permita confundir negligência com crime. Mais precisamente, parece que tais sujeitos:

  • Estabelecem uma certa “infantilização” da criança/adolescente, de modo a acreditar e fazer acreditar que ela está carente de cuidados, independente do que ela tenha sido/esteja sendo provida;
  • Entendem que inúmeras ações e omissões caracterizam negligência, desconsiderando a possibilidade de que haja maus cuidadores (melhor dizendo, cuidadores que cuidam diferentes do que eles acreditam ser o melhor) que não sejam necessariamente cuidadores negligentes;
  • Desconsideram a intencionalidade das ações e omissões;
  • Pensam que pobreza explica nada, haja vista idolatrarem a meritocracia, e compreenderem (em seu raciocínio maniqueísta) que explicar é justificar;
  • Pensam que ações e omissões de negligência sempre são traumáticas e determinantes do futuro de quem as sofreu.

Nas delegacias, os piores efeitos disto são percebidos junto às crianças e adolescentes, que chamados a serem ouvidos/escutados como vítimas de uma negligência que é vista como maquiagem de crime, sofrem por explicar que não se sentem violentados pelos cuidadores. Ou que se sentiram negligenciados, mas aquilo não (mais ou ainda)lhes incomoda. Ou, ainda, que não desejam que isto seja discutido numa delegacia. Assim, esforçam-se por apresentar as qualidades dos cuidadores, o fato de que não tiveram intenção de fazerem o que lhes fizeram, e/ou que fizeram o melhor que puderam.

Encontra-se, assim, crianças/adolescentes que dizem na delegacia que de fato os cuidadores não cortavam suas unhas, que realmente não tinham horário fixo para as refeições e que quase nunca ingeriam frutas, legumes, proteínas e carboidratos, que é verdade que nem sempre estavam com roupas limpas e que os cuidadores não se importavam muito se freqüentavam a escola, tomavam banho ou escovavam os dentes, e que às vezes ficam desacompanhados em casa, mas que não estão mais felizes longe da família. Ou perguntando se os cuidadores seriam presos por isso, seguido das mais diversas explicações para que as coisas tivessem sido/fossem como foram/são.

Além de precisarem se haver com o receio de serem responsáveis por eventual criminalização da conduta negligente dos cuidadores, não raro estas crianças/adolescentes chegam à unidade policial depois de serem retiradas do lar pelo Conselho Tutelar que aplicou uma medida drástica como esta sem antes tentar outras alternativas (às vezes até sem contato com os supostos autores). Claro...a aplicação do encaminhamento à família extensa ou acolhimento foi feita como se a negligência fosse sinônimo de violência. Logo, como se o risco de manter a criança/adolescente na família fosse atual e eminente.

Para além disto, ainda existe a situação de crianças/adolescentes serem chamados a uma delegacia na condição de vítima de negligência, sendo que sofreram sequer negligência (muito menos algum crime). Em tempos de “Estatuto da família”, sempre é pertinente nos indagar sobre o que é uma família, uma boa família, bem como da importância (e não importância) em nosso desenvolvimento. Mais especialmente, nos questionarmos se o que achamos ser fundamental para que alguém se desenvolva saudavelmente é o melhor e possível em todos os casos, bem como se é possível um crescimento em condições ideais.

Sejamos honestos: a subjetividade de quem julga sempre está lá, em qualquer espaço onde se julgue. Assim, um obsessivo pode achar absurdo a criança estar com roupa suja. Um vegano pode considerar inaceitável uma alimentação rica em proteína animal. Um representante qualquer da classe média-alta pode achar que futuro profissional é sinônimo de escolarização formal. Um moralista/machista pode pensar que a adolescente não pode manter relações sexuais a não ser que esteja namorando, mesmo que maior de quatorze anos e mesmo que com também menores de idade. Um adepto da demonização de substâncias pode considerar negligência cuidadores usarem substâncias ilícitas na presença de crianças/adolescentes ou mesmo permitirem que elas ingiram alimentos ricos em gordura, açúcar e sala, ainda que não vejam problema em ingerir álcool, psicotrópicos ou usar nicotina na frente dos menores de idade com quem convivem. Um recalcado pode negar que crianças/adolescentes encontram formas variadas de sanar sua curiosidade sexual e que, portanto, podem presenciar relações sexuais de adultos ainda que os mesmos tenham tomado os possíveis cuidados para não serem vistos. Alguém pode achar que um casal não adepto da monogamia não pode ser bom cuidador. Outro alguém pode considerar prejudicial a conduta de um cuidador que não mantenha relações estáveis.

É fato que também crianças/adolescentes podem omitir uma negligência sofrida, ou pelo menos sua intensidade, por várias razões: temerem sofrer represálias por parte dos cuidadores, ambivalência de afetos para com os mesmos, ou desconhecimento (até pela fase de desenvolvimento) da importância de algumas ações de cuidado para com eles. Entretanto, também parece negligência, e talvez até violência, o Estado passar a mensagem a uma criança/adolescente de que seus cuidadores não cuidam suficientemente dela e, principalmente, de que isto é um crime. É isto o que diz a voz que intima (porque, equiparada a negligência a um crime, é ação incondicionada) crianças/adolescentes a comparecerem em delegacias para falarem a respeito destes B.O.s de negligência que se apresenta com cara e cheiro de violência.

A partir deste momento, pode-se questionar mais detalhadamente sobre os mecanismos envoltos nesta tomada da negligência como se fosse crime. Ou, em outros termos, neste entendimento de que os potenciais danos da negligência são tão graves quanto os de crimes. Uma possível via é considerar, numa missão de Direito Penal salvacionista, uma dificuldade em aceitar que autores de negligência não melhorarão se sua ação/omissão for criminalizada, bem como que crianças/adolescentes podem ser negligentes em relação à negligência. Em outras palavras, podem não responder da maneira como se espera, e podem considerar que os cuidadores fazem o que podem fazer, e que para eles ainda é melhor estar perto deles.

Mattos (2009) retoma a concepção lacaniana de que a depressão – a acídia - é o grande pecado da atualidade, à medida que supõe uma negligência do sujeito em relação à vida própria e alheia. Nesta direção, lembra que tratar de pecado remete-nos imediatamente à existência do Outro. E, mais importante, que se em termos teológicos a noção de “pecado” remete-nos à realidade teo(ex)cêntrica (a Deus), na qual o homem e a criação são o centro, psicanaliticamente remete-nos à depressão. A depressão seria uma versão da separação do Outro, na qual se dispensaria sua existência, identificando-se com o pequeno “a”, fazendo-se dejeto.

Deveríamos nos perguntar sobre o que o Direito Penal tem a fazer perante a negligência/depressão. Seja a que o adulto faz com criança/adolescente, seja aquela que a criança/adolescente faz com a negligência sofrida (que pode ser, sim, uma resignação). E isto, é importante retomar, considerando a hipótese de que aquilo que a criança/adolescente passa com seus cuidadores seja negligência não apenas nos olhos e ouvidos de atores do sistema de garantia de direitos que cada vez mais confundem ou reduzem sua atribuição com a do Direito Penal.

Mattos (2009) alerta-nos de que os pecados capitais da gula, luxúria, avareza, vaidade e ira não mais têm tanto prestígio na contemporaneidade. Teriam sido desbancados pela devoção ao gozo e ao consumo. O autor ainda diz que hoje a tentação pela soberba (o pecado original de pretender ser Deus) não é tão grande quanto aquela por não ser nada. Em seus termos, a tentação pela indiferença negligente.

Bem...o autor não mencionou o pecado da inveja. Talvez alguns atores do sistema de garantias invejem aqueles que, diferentemente deles, não são tentados a serem Deus. Ou, na mesma direção, a caírem em suas graças. Talvez não suportem que alguém não queira ser vítima, por não querer ser posicionado numa relação de competição com o autor. Crianças e adolescentes, sendo vítimas ou não de negligência por parte de seus cuidadores, podem não querer criminalizar a situação.

Talvez algumas crianças/adolescentes saibam que as subjetividades, uma vez aderidas às potentes etiquetas do Sistema Penal, têm dificuldade em serem chamadas por outro nome que não os de vítimas ou autores. Talvez duvidem dos benefícios das bênçãos do Direito Penal. Talvez questionem se o pecado de ser nada é pior que o de ser Deus.


Notas e Referências: Pasian, Mara Silvia, Faleiros, Juliana Martins, Bazon, Marina Rezende, & Lacharité, Carl. (2013). Negligência infantil: a modalidade mais recorrente de maus-tratos. Pensando familias17(2), 61-70. Recuperado em 10 de outubro de 2015, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-494X2013000200005&lng=pt&tlng=p Mattos, Sérgio Eduardo Cordeiro de. (2009). Pecar hoje e a clínica psicanalítica. aSEPHallus; 4(8): 36-42.


 

Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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