Tempero

25/01/2023

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

Levo quase vinte anos trabalhando para esta família. Antes era na casa da Véia. Quando me contrataram, ela ainda estava boa da cabeça. Aos poucos foi se esquecendo das coisas, perdendo a prosa. Às vezes ficava tesa olhando o nada. Depois começou a xingar, a bater. Lá não parava empregada.

Eu me encarreguei da Véia e da cozinha. Achava engraçada a quantidade de palavrões que ela desembestava a gritar todo santo dia, bem na hora da Ave-Maria. Quanto aos tapas, nem doíam. Pior eram a enxada e a fome na roça.

Quando pequena, espiava mãezinha mexendo a panela no fogo a lenha. Fecho os olhos e chego a sentir o perfume da comida. Cozinhava o que tivesse. No tempo da fartura, comíamos buchada de bode, sarapatel, andu... lambíamos os beiços. No tempo da seca, ela cozinhava aproveitando tudo o que encontrava; farofa de tanajura, cozido de mandacaru. O gosto amargo do cacto lembrava a seca.

Mãezinha ensinou que o segredo da comida era o tempero, não a frescura. Tomei gosto, aprendi rápido. Quando cresci, a falta de trabalho me fez subir na boleia do caminhão e desembestar na capital.

Lembro o dia em que conheci a filha da Véia, tinha minha idade. Entrou na cozinha porta a dentro. Loira, cabelo liso na cintura, brincos grandes, cheia de anéis e pulseiras de ouro. Vestia uma camisa marrom brilhante e uma calça tão apertada que não consegui entender como subiu pelas pernas. A sandália, de salto fino, mostrava as unhas pontudas pintadas de vermelho. Ah! Dona Luislinda, um luxo de mulher.

Ordenou que eu fosse rápida e preparasse uma moqueca caprichada. Pouco depois de servi-la, me chamou à mesa enquanto repetia o prato. Perguntou qual era o peixe, eu respondi “miolo”, a mulher engasgou, cuspiu na minha cara, atirou o prato no chão. Aos berros disse que ali ninguém comia porqueira. Avisou, da próxima vez que eu cozinhasse uma desgrama daquela, arrumasse minha trouxa e pegasse a estrada.

Voltei para o fogão e ri baixinho. Ninguém me tiraria dali. O povo da cidade não sabia de mim. Nem grito nem tapa me faria voltar um passo. Com o tempo aprenderiam a apreciar uma boa refeição.

Dona Luislinda resolveu se casar com um homem chique, carregado de ouro que nem ela. O rapaz aparecia para visitar a sogra sempre na hora do almoço e se deliciava com meus quitutes, gostava de pimenta. Terminava o prato suado e arrotava alto. A Véia ria. Quem não apreciava o comportamento dele era dona Luislinda, torcia o nariz, amarrava a cara. Para ela, comida boa era estrangeira. Trouxe um livro de receita com um sem fim de nomes esquisitos.

Escutei atrás da porta quando ela conversava com a Véia. Dizia que eu era burra, só cozinhava comida braba, que assim adoeceriam. Aconselhou a me despedir. A Véia gostava da minha comida e detestava intromissão. Respondeu, quem mandava na casa era ela e tinha certeza de que eu seria capaz de cozinhar qualquer coisa. Acho que se afeiçoara a mim. Nesse dia, dona Luislinda saiu enfezada, antes mesmo da sobremesa. No fundo, eu tinha certeza, ela também me queria bem, mas era invocada demais.

Pois bem, a Véia lia para mim as receitas, eu gravava tudo na cabeça, nunca fui besta. Aprendi a fazer espaguete, pizza, molho bolonhesa, à putanesca. No fim de cada prato acrescentava meus temperos. Davam o toque espec al. O molho à putanesca era o favorito de dona Luislinda, se fartava e ainda levava a quentinha. Falava que era para o porteiro. O marido a olhava de canto de olho e ria alto. Ela, fechava a cara.

Na casa de dona Luislinda tampouco parava empregada, não dava sorte... Passei a dar conta das duas casas, não pagavam extra, a crise não permitia, ela costumava a repetir que eu tinha tudo o que precisava.

Naquele bairro, vez por outra, aparecia infestação de baratas e ratos. Por mais que dedetizassem, os bichos voltavam. As patroas ficavam nervosas. Dona Luislinda comprou um gato incapaz de matar um camundongo. A Véia dizia que bichano fresco só servia para soltar pelo. Eu dei fim nas pragas que assustavam a família. Nem precisei que mandassem.

...

Me lembro bem daquele fim de ano. Resolvi festejar na praia. Queria ver os fogos ao vivo. Cedo fui à Barroquinha, comprei bijuteria, calça da moda, camisa dourada e batom carmim. Me arrumei toda. Ao sair do quartinho, topei com dona Luislinda e o marido.

— Feliz Ano Novo.

 Olhou pra mim de cima a baixo, se acabou de rir. 

— Vai pra onde assim? Cuidado pra polícia não achar que você é “mulher de vida fácil”.

— Linda, para com isso... — Respondeu o marido.

Não disse nada. Voltei pro quarto, me olhei no espelho, ela tinha razão, meu reflexo, uma quenga. Rasguei a roupa, deitei, chorei, solucei até ouvir o estalar dos fogos de artifício.

...

Quando Dona Luislinda engravidou, encasquetou que meu tempero dava enjoo. Fui proibida de cozinhar meus quitutes. Só pratos leves e muita canja. Essa, ela se empanturrava. A minha canja não era de galinha.

Ela pariu uma menina feia, magra e chorona. Não se alimentava, não dormia direito, deixava o povo aperreado.

O casal era chegado a festas, a nenê ficava comigo quando saíam. Além de cozinhar, arrumar a casa, virei babá. Reconheciam a minha importância. Eu fazia um mingau para a danadinha. Comigo, dormia feito anjo.

A menina cresceu rápido. Um dia me abraçou, gargalhando igual à mãe e cochichou na minha orelha.

— Mamãe falou que você fede.

Eu achei graça. Criança não conhece maldade...

...

No aniversário de noventa anos da Véia, dona Luislinda mandou que preparasse um bolo com cobertura de creme. Decorei com raspas de coco e confeito, coloquei na massa um ou dois dos meus ingredientes pra dar gosto. Nessa época a Véia já estava na cadeira de rodas, usava fraldão e não se lembrava mais de ninguém.

A neta, encarregada da vestimenta, comprou um vestido vermelho, caprichou no batom, colocou chapéu de aniversário e amarrou uma fita com balão dourado no braço seco da Véia. Na hora da festa a trouxe à sala, arrastando a cadeira. Parecia um espantalho. Me controlei para não dar risada. A menina botou a Véia na frente do bolo.

— Vovó nunca esteve tão bela!

Dona Luislinda beliscou a filha de tal jeito que chegou a arrancar sangue. Mandou-a para o quarto. Esfregou o guardanapo na boca da Véia. A matrona ficou com os olhos arregalados durante os parabéns e desabou com a cara no bolo. Partiu dessa pra melhor.

No enterro, dona Luislinda me consolou, não precisava me preocupar, eu continuaria trabalhando pra ela. Me encarregaria da limpeza, comida, roupas, lavar o carro e do que mais fosse preciso. Me explicou que nos dias de hoje uma funcionária é suficiente. Tem muita gente ruim por aí querendo tirar vantagem das patroas. Empregadas que quebram coisas caras, metem, são sujas, cheias de mau costume.

Avisou também que se eu não ficasse, não daria carta de recomendação. O salário, o mesmo, disse que eu sempre terminava cedo o trabalho e tinha tempo de sobra para descansar. Perguntei sobre as férias, ela nem respondeu. Não falei mais nada. Compreendi. Era o jeito dela dizer que queria que eu ficasse.

Pouco tempo depois, o bichano de Dona Luislinda sumiu. Ela ficou arrasada. Tive uma pena, era muito apegada. Nesse dia fiz um churrasquinho para espantar a tristeza da casa. Ela não quis comer os espetinhos, achou a carne dura. Estava tão chateada.

Agora quem tá véia sou eu. Dona Luislinda mudou muito. Ela não encasqueta mais comigo. O marido arranjou uma mulher nova e sumiu. Dona Luislinda, coitada, anda adoentada, está com inflamação no intestino.

A filha, hoje uma mulher, é a cara da mãe. Irá para faculdade, na cidade vizinha. No almoço de despedida farei o prato favorito dela, lasanha. Adora meu molho. Dona Luislinda às vezes pirraça, diz que um dia descobre o meu tempero. Pensa ela…

Meus temperos, meus tesouros. Escolho a dedo, escondo com zelo. Ninguém sabe, ninguém vê. Bem guardados embaixo da minha cama, duas caixas sempre abastecidas de ratos e baratas.

 

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Temperos // Foto de: Leo Gomes // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/leofg/5428379039/

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