Temos vagas… Mas só se você for homem! – Por Patrícia Cordeiro e Guilherme Moreira Pires

31/12/2015

“Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem”

Rosa Luxemburgo

“Contrata-se: Auxiliar jurídico para cobranças, cursando a partir do 3º ano de Direito, sexo: Masculino.” Assim dizia o anúncio colado em um dos murais na faculdade. Li, reli, li outra vez. Por que a vaga exigia alguém do sexo masculino? As mulheres estavam todas excluídas, reprovadas, só por serem mulheres? Olhei para o lado e comentei com uma colega que aquilo era um absurdo. Mas ela me disse que isso era normal em vagas destinadas a cobranças, afinal, homens, transcrevo: "têm pulso firme". Logo, seriam mais adequados. Como é? Pulso firme? Sério? Embora me soasse nítido que aquele anúncio era uma afronta desrespeitosa e grosseira, absolutamente questionável, várias pessoas, inclusive mulheres, leram e não vislumbraram nada de errado ou estranho. Talvez, naturalizaram que vagas jurídicas no setor de cobranças não eram para elas e pronto. Isso dito, meu questionamento sobre um conteúdo já naturalizado e sedimentado sequer nutria grande sentido para as pessoas. A questionadora é quem estaria errada, "tumultuando as coisas".

Esse infundado "diferencial positivo", tido como imprescindível para preencher a referida vaga jurídica, meramente construído no "ser homem", por óbvio que não opera somente nesse primeiro relato, senão que em uma infinidade de concretudes do dia-a-dia, situações rotineiras em que essas imagens fantasiosas moldam perfis desejáveis e indesejáveis para funções, posições, trabalhos, movimentos.

Desafortunadamente, a lógica seguramente opera em torno de inúmeras outras posições, de modo que os exemplos e relatos aqui apresentados não se esvaem neles próprios, estão no mundo e se relacionam com esse mesmo mundo; são recortes de mundo demasiado atuais e comuns, percebamos ou não. Ademais, essas artificialidades construídas e aplicadas universalmente não perpetram deformações tão ingênuas e inocentes como usualmente nos fazem crer, especialmente quando questionamos.

Homens são mais profissionais, mais focados, mais racionais, objetivos, não fofocam em trabalho, fazem menos "corpo mole", apresentam uma qualidade maior, tem mais "pulso firme", a lista de aberrações reproduzidas é longa e desagradável, porém com enorme poder de persuasão e disseminação; mesmo hoje, mulheres acreditam nessas coisas, e repetem essas coisas, com frequência assustadora. Ventos ancestrais (de)formando (n)esses sentidos decerto deixaram suas marcas, caracterizando e sedimentando esses mundos descaracterizados, de modo que, mesmo hoje, mover-se de forma contrária a esses ventos não constitui tarefa fácil; a resistência-movimento é libertadora, porém pesada, eis que expande a compreensão e sensibilidade mesmo das amarras e grilhões que sentimos. Felizmente, com o tempo, também passamos a ver fissuras nessas estruturas, e a nos alegrarmos com as experimentações e movimentações contrárias, vívidas e concretas, com cada questionamento e movimento desestabilizador dos fluxos instituídos. Resistências e dissidências libertárias também podem ser fissuras, energizando potencialidades e complexidades maiores que os limítrofes fluxos pré-estabelecidos.

Lembro-me de em outra oportunidade ter visto uma vaga de estágio em um escritório que trabalhava com processos relacionados a Direito de Família, logo me interessei, compareci até a Central de Estágios para buscar o encaminhamento e fazer a entrevista. Trabalhar com Direito de Família parecia fantástico, aprender com os dilemas era o que esperava. Mas, a pessoa que me atendeu nessa Central de Estágios, me disse discretamente: “Me desculpe, mas você não é o perfil”. Questionei, claro! Que perfil? Qual é o perfil? As respostas eram evasivas, nada tinha ficado claro. Eu insisti, pedi desculpas, mas afirmei que não sairia dali até que ela me dissesse qual era o “perfil”. Totalmente sem graça, a atendente me disse que só estava autorizada a encaminhar para a entrevista homens, com idade acima de 35 anos e casados, com filhos. Eu ri. Como não rir? Mas ao mesmo tempo me senti impotente. Excluída por ser mulher, não ser casada e não ter filhos. Inacreditável.

Como puderam perceber, em nenhum dos dois relatos, ser homem faria alguma diferença para a execução dos trabalhos em questões. As mulheres foram excluídas somente por serem mulheres e nada mais.

Vale relembrar que o Código Civil de 1916, inclusive, proibia a mulher de exercer profissão sem a autorização do marido: “Art. 242. A mulher não pode, sem autorização do marido: VII. Exercer profissão” e, ainda este artigo remete a um outro, o art. 233, que afirmava que o marido era o chefe da sociedade conjugal. “Chefe”, esta foi a palavra escolhida pelo Código Civil de 1916, para colocar a mulher ainda mais em uma relação de submissão. E como sabemos, não há palavras inocentes:

“Não existem palavras inocentes. O espaço social onde elas são produzidas é condição da instauração das relações simbólicas de poder. A dimensão política da sociedade é também um jogo de significações. Isso supõe que a linguagem seja simultaneamente um suporte e um instrumento de relações moleculares de poder. Mas também um espaço nela mesma. A sociedade como realidade simbólica é indivisível das funções políticas e dos efeitos de poder das significações” (Warat, 1985, p.100).

 No próximo texto, optamos por sacudir um pouco questões atreladas ao filtro estético, esse violento corte poderosíssimo na configuração dos perfis de mulheres bem-vindas a atuar e se movimentar em determinados espaços, com especial enfoque no âmbito jurídico, em que a aparência, bem sabemos, conta bastante. Sobre essa primeira parte, frise-se nossa não complacência quanto a destinação de vagas (e interações universalizantes baseadas) nesses moldes, pautada(s) e justificada(s) mediante um encaixe de imagens forjadas (a exemplo de "homens têm pulso firme, mulheres não"); artificialidades supressoras da complexidade da vida, que, aos poucos, vão substituindo a mesma, cristalizando-se na imaginação de cada indivíduo, cada vez mais.

Interessante seria entendermos desde cedo: "Existem poucos trabalhos que exigem possuir um pênis ou uma vagina. Todos os outros deveriam ser acessíveis a todos" (Florynce Kennedy).


Notas e Referências:

PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Anarquismos: potências, dissidências e resistências. Complexidades para além das leis e da Prisão-Prédio. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/abolicionismos-e-anarquismos-potencias-dissidencias-e-resistencias-complexidades-para-alem-das-leis-e-da-prisao-predio-por-guilherme-moreira-pires/ ISSN 2446-7405. Acesso em: 26/12/2015.

WARAT, Luís Alberto. A ciência jurídica e seus dois marido, 1985.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Four Business Men // Foto de: Anthony Easton // Sem alterações

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