Temas atuais sobre Processo Penal

04/06/2018

Falar sobre o direito necessariamente demanda construções teóricas. Não há direito sem teoria. Todavia, a construção de uma teoria do direito passa por um percurso que engloba uma série de elementos filosóficos, políticos, sociológicos e, evidentemente, jurídicos.[i]

A ciência jurídico-penal está cumprindo com a sua função primordial de encontrar solução para os problemas?

Não e quando a ciência não encontra solução para os problemas, a filosofia pode (deve) ajudar a pensar os problemas da solução. Fora daí, o jurista continuará a comportar-se como o homem que procura, embaixo do poste de luz, o objeto perdido na parte escura da rua, para utilizar a metáfora citada por Ernildo Stein.

É claro que esse déficit não apaga a importância da dogmática penal. Ao contrário, aumenta a importância do trabalho de criação de uma teoria do direito capaz de dar conta da garantia constitucional a uma resposta correta, sobretudo em direito penal, onde o erro judiciário (geralmente, fruto da abertura completa para a discricionariedade na interpretação) é quitado com a indevida condenação e privação da liberdade das pessoas.

Nesse dilema, entra em questão, o tema do método.

Sem dúvida, é na modernidade que esse aspecto passa a ser discutido com força no âmbito do conhecimento filosófico, quando, do ponto de vista histórico, os filósofos começam a se perguntar pelos procedimentos a serem utilizados na filosofia, entrando em cena a crise do fundamento.

Destaca-se toda a influência da revolução cartesiana para a reflexão em torno do método, a qual traz, conjuntamente, o problema da subjetividade, que vai servir de suporte para o desenvolvimento do debate. Para a filosofia, o método toma proporções verdadeiras em Kant, com a distinção entre as questões de fato e as questões de direito, introduzindo o problema fundamental.

A partir daí, com a inauguração do método transcendental, a filosofia parou de analisar objetos para examinar as condições de possibilidade do conhecimento e dos objetos do conhecimento. Com tal procedimento, é realizada a distinção necessária entre sujeito e objeto, ou seja, abre-se o horizonte para a problematização do dualismo na filosofia ocidental e as condições para a sua superação.

Antes da revolução moderna do método, a filosofia se apresentava como conhecimento metafísico, passando a ser, a partir de Kant, uma metafísica do conhecimento. O método, portanto, significa o modo para resolver o problema do conhecimento, desempenhando um papel na busca de solução para o dualismo da metafísica ocidental.

Por isso Ernildo Stein vai dizer que a filosofia não investiga mais ao modo dos outros procedimentos científicos, pois ela constrói hipóteses, dentro de um paradigma, de como estabelecer um standard de racionalidade que possua um caráter de método filosófico específico. O autor afasta a afirmação simplista de que o método constitui mero caminho, especialmente a partir da problemática transcendental, ou seja, não basta pensar no estabelecimento de procedimentos para fundamentar o conhecimento filosófico. Por isso, também afirma que método e filosofia passam a se aproximar de tal maneira que, com relativo cuidado, pode-se dizer que a filosofia é uma questão de método. O autor quer dizer, e diz, que método e ocupação filosófica com standard de racionalidade de seu paradigma passam a coincidir. Em palavras bem simples, pode-se dizer que o filósofo só sobrevive com o seu método, quando incorporado à sua Filosofia. Exatamente por isso que uma posição filosófica toma seu verdadeiro contorno no contexto do método.[ii]

Para o direito, há um dualismo que aparece na oposição entre physis e nómos, sendo a primeira, vista como a nature­za, que corresponde ao animal, ao corpóreo, ao sensível e a segunda, a lei-direito, que se situa no âmbito do racional, do espiritual, do suprassensível. A tradição metafísica toma esta distinção entre o animal e o racional para a constituição da clássica oposição entre natureza e direito. Esta tensão, mais do que interferir, vai condicionar o modo como o direito é conhecido.

Rafael Tomaz de Oliveira afirma que: “De algum modo, a descrição dos fundamentos do direito, sua justificação e correção, bem como os problemas relativos à justiça passaram a ser pensados de acordo com a physis, com a natureza, em detrimento do espírito e da ação humana livre que, embora influenciassem as investigações dos fundamentos, sempre esbarravam no discurso sobre certa ideia natureza.” Conforme o autor: “Temos aqui, portanto, outra importante cisão para o pensamento do direito: teoria e prática. A teoria, enquanto reflexão sobre a verdade ou falsidade de algo, sempre ancora seu fundamento numa ideia última e acabada de natureza; ao passo que a prática, enquanto pergunta e decisão pelo que é bom e pela correta ação, sempre levou a uma espécie de impossibilidade de justificação teórica, não obstante o pensamento jurídico preserve uma tendência de sempre se encaminhar a essa direção.”[iii]

A filosofia do direito surge exatamente na grande virada do direito natural para o positivismo jurídico, num momento em que o direito passa ser considerado apenas e tão somente o direito posto, positivado, ou seja, ele não constitui mais uma forma de especulação normativamente regulativa do jurídico (própria do direito natural), mas se propõe a uma reflexão crítica do direito historicamente real (posto). A partir desta transformação, com Kant e Hegel, especialmente, à filosofia do direito não incumbia mais tratar da questão de como o estado e o direito deveriam ser, mas, sim, mostrar como o estado e o direito, deveriam ser conhecidos.

Em outras palavras, a filosofia não deveria se ocupar com o direito da natureza, mas, agora sim, da natureza do direito (no plano da sua inteligibilidade). De superior ao estado, o direito passa a ser seu subordinado.[iv]

Pode-se até considerar que a filosofia do direito, entendida a partir dos grandes sistemas filosóficos, compreendia uma filosofia da ciência do direito e uma filosofia do direito penal, responsáveis pela discussão dos temas jurídicos ditos fundamentais, mas apenas no passado, pois, em algum momento, a preponderância do pensamento filosófico sobre o pensamento científico deu lugar a uma sobreposição do jurídico ao filosófico, com a verificação de uma autonomia e independência da ciência jurídica em relação à filosofia.[v]

A filosofia do direito não seria diferente de outros ramos da filosofia por ser mais especial, mas por fazer a reflexão sobre questões jurídicas essenciais, sobre problemas jurídicos fundamentais, discutindo-os e dando-lhes, tanto quanto possível, uma resposta. Entretanto, o surgimento da filosofia do direito ocorre exatamente quando a legitimação do direito deixa de passar pelas altas indagações ligadas ao direito natural para ser legitimado pela simples positivação (direito válido é o direito posto).

É certo que ela (a noção de filosofia do direito) surge quando não há mais necessidade e nem possibilidade de serem levantadas essas questões relativas aos grandes temas que sempre moveram a filosofia para o interior das discussões jurídicas. Neste contexto, passou a ser uma das questões obscuras da relação entre filosofia e direito: saber se o jurista formularia as perguntas e o filósofo daria as respostas ou se o jurista formularia as perguntas e ele mesmo responderia com a “ajuda” da filosofia. Em qualquer caso, ficou sempre a questão a respeito de qual das filosofias do direito seria a pior: a dos puros filósofos ou a dos puros juristas.

Na verdade, esta questão envolvendo os diversos modos como a filosofia e o direito estabeleceram suas relações no curso do século XIX, tem como pano de fundo o isolamento do objeto da ciência do direito no estudo da lei. Isso redunda na formação de uma dogmática própria e exclusiva do direito, como requisito para a existência de uma verdadeira ciência jurídica (o que foi extremamente reforçado pelo positivismo jurídico, em especial de corte kelseniano).

O positivismo jurídico que se desenvolve colado no movimento da codificação próprio do estado moderno oitocentista, provoca o agigantamento da ciência jurídica como estudo da lei, o que acontece exatamente no momento de apagamento (crise) da tarefa filosófica.[vi]

De forma quase concomitante, dá-se a manifestação de um positivismo criminológico (também no século XIX) e a posterior afirmação, no âmbito penal, do juspositivismo ou positivismo jurídico (já dominante no direito privado), que vem com o objetivo declarado de purificar o objeto da ciência penal, especialmente para excluir os fatores antropológicos e sociológicos dos domínios do jurídico. A dogmática surge, pois, como uma reação tecnicista contra a herança jusracionalista da Escola Clássica e contra a herança criminológica da Escola Positiva, ou seja, como uma forma de insurgência contra um sincretismo metodológico oscilante entre o jusracionalismo (Carrara) e o positivismo criminológico (Lombroso, Ferri), situação que era criticada por provocar uma forma de esvaziamento do conteúdo propriamente jurídico do direito e da ciência penal, pois continha antropologia, psicologia, estatística, sociologia, política e, especialmente, filosofa.[vii]

Esse movimento de purificação do discurso jurídico acaba provocando o isolamento do direito em relação aos demais ramos do saber (como a filosofia, por exemplo). Primeiro, o direito fecha-se em si mesmo, ou seja, em torno do seu objeto (a lei). Depois disso, demarcado o território da ciência do direito, o encontro com as demais áreas passa a ocorrer pela transposição do conhecimento dessas demais áreas para o âmbito jurídico. Essa correlação de forças desiguais, notadamente entre direito e filosofia, faz com que o primeiro, como grande monumento do estado moderno, tome a filosofia e as demais áreas do conhecimento como suas auxiliares, pensamento que permanece íntegro até os dias atuais.[viii]

A importância dessa questão reside no fato de o jurista em geral acreditar piamente na possibilidade de o direito aprisionar a filosofia (e outras ciências) no interior dos seus domínios, o que é facilmente detectável na questão da própria filosofia do direito, assim como nas conhecidas disciplinas jurídicas ditas auxiliares, como sociologia jurídica, psicologia jurídica, psiquiatria jurídica, antropologia jurídica, entre tantas outras.

Considerando tudo isso, não se pode deixar de referir que a filosofia do direito acabou repercutindo uma apropriação do discurso filosófico para o âmbito da fundamentação do direito.

De fato, importa ver que o surgimento da noção de filosofia do direito acontece num momento em que o direito, pensado filosoficamente, toma a filosofia como ciência da ciência jurídica, ou seja, a filosofia do direito não necessitaria mais ser exercida por filósofos, mas sim por juristas, o que efetivamente acontece e culmina por gerar uma abordagem peculiar, exatamente diante da apropriação do conhecimento filosófico pelo direito, sem o devido respeito à diferença de níveis que há entre os dois tipos de discurso - filosófico e científico.

Pois bem.

Apresentar o primeiro volume da obra Temas Atuais sobre Processo Penal significa antecipar ao leitor o que ele poderá comprovar nas páginas que virão, ou seja, que este livro traz o melhor esforço científico de reconhecidos autores, todos explorando de forma crítica os diversos temas relacionados ao processo na contemporaneidade.

Aceitar a crise do direito e do processo penal, respeitando os tipos de discursos, sem promover a apropriação da filosofia para o interior da ciência jurídica, mas fazendo as grandes indagações a respeito de cada um dos temas tratados, eis o que cada articulista conseguiu fazer em sua abordagem. Não se trata, obviamente, da pretensão de esgotamento dos pontos, o que sequer seria cabível com tão pouco espaço.

De qualquer sorte, o leitor poderá observar a maturidade dos ensaios, não só no rigor científico da escrita, mas, especialmente, na atualidade das incisivas atuações acadêmicas, voltadas para a produção de uma nova prática.

Nesse ponto, a partir da crítica aos conceitos e ao contexto no qual sua operacionalidade atinge a vida das pessoas, o direito apresentado nessa obra surge como proposta de superação da crise de solução de problemas vivida pela ciência jurídica.

Parabéns aos pesquisadores pela qualidade do material aqui reunido e que seja o primeiro de muitos.

Mais não digo.

Notas e Referências

[i] Texto de apresentação da obra Temas Atuais sobre de Processo Penal, organizada pelo Mestre em Ciências Criminais e Advogado Criminalista Mateus Marques, que estará disponível para acesso pela internet (e-book).

[ii] STEIN, Ernildo. Exercícios de Fenomenologia: limites de um paradigma. Ijuí: Editora Unijuí, 2004. p. 128-134.

[iii] OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão judicial e o conceito de princípio: a hermenêutica e a (in)determinação do direito. Porto alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. p. 34.

[iv] KAUFMANN, Arthur. Introdução à Filosofia do Direito e a Teoria do Direito Contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 25.

[v] HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editores, 2008. p. 24.

[vi] STEIN, Ernildo. Pensar e Errar: um ajuste com Heidegger. Ijuí: Ed. Unijuí, 2011. p. 202.

[vii] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: 2003. pp. 79-80.

[viii] Por todos: DIAS, Jorge Figueiredo. Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 22. 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Justice // Foto de: Captain Roger Fonten // Sem alterações

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