TEM UM FUTURO A DOGMÁTICA JURÍDICO-PENAL? A NEUROCIÊNCIA E SEUS INFLUXOS NO CONCEITO DE CRIME

29/08/2020

Em 1971, o Prof. Gimbernat Ordeig, Catedrático da Universidade Complutense de Madrid, publicou um artigo com o mesmo título dessa exposição (“¿Tiene um futuro la dogmática juridicopenal?”), que teve o objetivo de criticar – antes dos modernos estudos neurocientíficos – a afirmação, vastamente difundida, de que o Direito Penal só encontraria justificação sobre a base empírica do livre arbítrio.[1]

Naquela obra, em face da já percebida indemonstrabilidade ou inexistência da ideia posta de livre arbítrio, afirmando um imperioso “futuro” ao Direito Penal, o Prof. Gimbernat Ordeig defendeu uma tese de negação do princípio da culpabilidade, de modo a substituir a sua condição de pressuposto indispensável da pena pela ideia de necessidade preventiva[2].

O motivo era plausível: impedir que as dificuldades empíricas do famigerado livre arbítrio e a consequente crise do Direito Penal culminassem na perda da sua legitimidade. Mas, por certo, o problema não era tão simples, porque as questões relativas à liberdade não podem ser simplesmente abandonadas e não é possível conferir legitimidade a uma responsabilização que não decorra da prática ilícita de uma conduta livre.

Ocorre que, se, em 1971, o debate relacionado ao futuro da dogmática penal foi fervoroso na Europa, colocando à prova o edifício jurídico-penal e exortando a necessidade de novas molduras dogmáticas para o estudo do fato punível; na década de 80, com as pesquisas neurocientíficas, e nos anos posteriores, com a associação dos seus resultados com o Direito Penal, esse edifício científico pouco se abalou (ou, ao menos, deveria se abalar).

Isso significa, então, que não é necessário falar sobre Direito Penal e Neurociência? Não. O debate é válido e extremamente importante para confirmar e reforçar críticas contundentes, apresentadas ao longo de décadas por diversos juristas respeitados internacionalmente. No Brasil, o debate é essencial e imperativo, especialmente porque ainda adotamos um sistema penal normativo defasado e amparado em dogmas que ruíram por completo com a divulgação dos resultados obtidos pelos estudos neurocientíficos e suas consequentes associações.

 

1 O ESTADO DA ARTE, O LIVRE ARBÍTRIO E O ISOLACIONISMO CIENTÍFICO BRASILEIRO

Não é surpresa para ninguém a afirmação de que o Código Penal brasileiro vigente foi editado em 1940 e, apesar de algumas alterações ao longo desses sessenta anos, utiliza um modelo jurídico fundado quase integralmente na Teoria Finalista da Ação, desenvolvida na Alemanha, em 1930, por Hans Welzel.

Afinal, é desse sistema jurídico que advém célebres afirmações, que compõem tantos manuais de Direito Penal: “a ação é um movimento humano dirigido a uma finalidade”, “crime é um fato típico, antijurídico e culpável” e “a culpabilidade é um exercício inadequado do livre arbítrio”. Certamente, essas são frases que todos os estudantes e profissionais do Direito já ouviram e, muitas vezes, até mesmo repetiram.

Ocorre que, fazer tais afirmações, significa, mais profundamente, conceber que, na linha do eterno e atemporal sistema finalista – que tanto contribuiu para a história do Direito Penal –, o estudo do crime precisa ser pautado em duas estruturas lógico-objetivas, de caráter ontológico: a ação final e o livre arbítrio.

Noutras palavras, implica em compreender que a conduta com relevância penal é um comportamento humano, dotado de voluntariedade, que é sempre direcionado a um determinado fim. Assim como, em asseverar que essa conduta será caracterizada como crime quando estiverem presentes tipicidade (representada pela valoração fática dos elementos abstratos do tipo objetivo e subjetivo, ou seja, por uma integração da proibição que demandaria uma atividade de subsunção), antijuridicidade (traduzida pela simples ausência de permissões legais) e culpabilidade (um juízo de reprovação pessoal estruturado através da ideia de livre arbítrio).

O livre arbítrio, enquanto pressuposto indeclinável da culpabilidade e fundamento da responsabilidade penal materializada na pena, é identificado como a liberdade de vontade; é dizer, como a verificação empírica da possibilidade de, na situação concreta, o sujeito ter agido de outro modo, conforme o Direito.

No entanto, entre diversos outros questionamentos, a adoção desse modelo normativo possui dois problemas fundamentais, que coincidem, exata e curiosamente, com as suas estruturas ontológicas (ação final e livre arbítrio), as quais, como tais, deveriam apenas ser reconhecidas pelo Direito, jamais questionadas. A questão é simples: como poderíamos justificar a relevância penal de ações culposas se essas não são dirigidas a um fim ilícito? Como seria possível afirmar empiricamente o livre arbítrio se sequer é possível reproduzir as circunstâncias fáticas de uma conduta criminosa para provar que o sujeito podia ter agido de outro modo?

Essas discussões fazem parte dos conhecidos “grundlegenden Probleme des Strafrechts” e foram enfrentadas de forma insatisfatória por Welzel, que optou, mesmo após duras e contundentes críticas, por manter o seu sistema ancorado nesses pressupostos incompatíveis e indemonstráveis. Exatamente por esse motivo, desde a década de 70, o finalismo perdeu o seu espaço na Europa e foi substituído por concepções mais modernas, que desvincularam o estudo do crime das ideias de “ação final” e da noção empírica de “livre arbítrio”.

No entanto, na contramão da tendência internacional, parece que o Brasil optou por um isolacionismo científico; é dizer, por não acompanhar as reformas normativas no Direito Penal estrangeiro e por manter, mesmo que de forma incoerente, um Código Penal fincado em fundamentos já reconhecidamente superados.

Com efeito, esse é o nosso estado da arte: utilizamos a um Código Penal de estrutura quase integralmente finalista e ignoramos as “falhas” ao utilizar esse mesmo sistema para justificar a responsabilidade penal decorrente de crimes dolosos e culposos.

 

2 AS PESQUISAS NEUROCIENTÍFICAS E A QUEBRA DE UM PARADIGMA DETERMINISTA

Na década de 80, Benjamin Libet deu início a uma série de estudos sobre o cérebro humano nos Estados Unidos com utilização de técnicas de ressonância magnética funcional. Nesses experimentos, era solicitado a uma pessoa que flexionasse os dedos de uma das mãos e que, antes de realizar esse ato, informasse que o faria.

Observou-se, então, que os neurônios do córtex motor suplementar associados aos movimentos das mãos disparavam alguns segundos antes do indivíduo ter consciência da sua vontade de realizar o movimento, indicando não apenas que o movimento seria realizado, mas também qual das mãos viria a ser flexionada.

De acordo com experimentos realizados por Benjamin Libet – e também por Patrik Haggard, Martin Eimer e John-Dylan Haynes –, durante um ato “voluntário”, o cérebro ativa antes que o sujeito tenha a impressão subjetiva da vontade. É dizer, a ativação cerebral começa seis ou dez segundos antes do sujeito se conscientizar do seu movimento, de modo que o experimentador pode predizer a decisão que será adotada pelo sujeito, segundos antes do próprio sujeito se conscientizar da sua decisão[3].

Com essa constatação, alguns neurocientistas – como Wolfgang Prinz, Wolf Singer e Gerhard Roth – passaram a se ocupar do problema do livre arbítrio, concluindo que a consciência da ação não poderia ser a causa da mesma, já que, dentro do complexo processo de tomada de decisão e execução do movimento corporal voluntário, seria evidenciada a existência de uma atividade cerebral não consciente precedente à atuação consciente.

Logo, passou a valer a afirmação de que o ato consciente de vontade de nenhum modo poderia ser o causador do movimento, porque o movimento estaria fixado previamente por processos neurais[4]. Aquele limite temporal entre atividades conscientes e inconscientes foi considerado, portanto, como uma prova empírica da inexistência de liberdade de vontade (do livre arbítrio).

O psicólogo alemão Wolfgang Prinz passou a indicar que as percepções que temos das nossas ações seriam um fenômeno provocado pelo inconsciente e a sustentar uma ideia que ficou vastamente conhecida: „Wir nicht tun, was wir wollen, sondern wollen, was wir tun”, ou seja, nós não fazemos o que queremos, mas queremos o que fazemos. Nesse sentido, apontando que o livre arbítrio não tem uma realidade psicológica, reforçou que esse dado deveria ser admitido numa dimensão cultural, como um instituição social[5].

O neurofisiologista alemão Wolf Singer afirmou que a sensação que experimentamos de atuar não representa nada mais do que um produto de operações cognitivas desenvolvidas pelo cérebro. Deste modo, como em termos biológicos não haveria espaço para o livre arbítrio, chegou a propor o abandono da categoria da culpabilidade e a substituição da pena pela medida de segurança, considerada – equivocadamente – como uma solução mais humana para alguém que teve a infelicidade de nascer com uma indisposição física que não lhe permitiria cumprir com as normas[6].

O professor de fisiologia da Universidade de Bremen, Gerhard Roth, por sua vez, asseverou que as nossas ações não são causadas por vontades conscientes, mas por processos neurológicos inconscientes. Isso significaria que a sensação humana de controle das ações seria uma mera experiencia subjetiva, sem qualquer relevância causal, que só surge depois que áreas do cérebro inacessíveis à consciência começam a funcionar. Com isso, Roth passou a sustentar uma ideia que também ficou conhecida: „wir als bewusste Wesen haben nur wenig Einsicht und Einfluss auf unser Handeln”, ou seja, “nós, como seres conscientes, temos apenas um pouco de visão e influência sobre nossas ações”[7].

No âmbito da relação entre Neurociências e Direito Penal, Roth inicialmente extraiu consequências radicais desses experimentos para a responsabilidade penal, sustentando, inclusive, que significaria o abandono de um Direito Penal pautado na ideia de culpabilidade e funções preventivas da pena. Depois, passou a adotar uma visão compatibilista, chegando a afirmar que os resultados das pesquisas não afetariam em nada o conceito de liberdade necessário para afirmar a culpabilidade de um sujeito.

Nesse diapasão – aproximando-se, assim como Singer e o próprio Welzel, de uma visão que nos remete às antigas afirmações lombrosianas –, Roth esclareceu que o sujeito deveria ser considerado livre quando suas ações refletem o resultado de motivos arraigados na sua personalidade[8].

Sem enfrentar a questão da validade ou invalidade dos experimentos – e, até mesmo, as absurdas afirmações no sentido de uma culpabilidade pela caráter ou personalidade –, é possível notar que o resultado dessas pesquisas, em tese, pode representar uma verdadeira revolução na imagem que o homem tem de si mesmo, na medida em que afronta a crença de que o homem decide a sua livre vontade dirigido pelo consciente.

De fato, se, segundo os experimentos, seriam os impulsos e os desejos inconscientes do sistema cerebral os responsáveis pela decisão de ação ou omissão, antes mesmo da percepção humana consciente, a ideia de livre arbítrio é posta “em xeque”. No âmbito do Direito Penal, a comprovação de que a liberdade de vontade é uma ilusão criada pela arquitetura cognitiva humana tem o aparente condão de revolucionar toda a Teoria do Delito, desde a concepção de ação – ante a provável incoerência na distinção entre atos voluntários e involuntários, culposos e dolosos –, até a culpabilidade – em face da impossibilidade de se falar no livre arbítrio como seu fundamento material.

Como o ponto de partida das pesquisas neurocientíficas é a imagem do homem como ser livre e o sistema jurídico é pautado na ideia de liberdade, o Direito Penal realmente não pode fechar os olhos para tais experimentos. Por outro lado, é necessário estabelecer uma essencial reflexão, à luz de disciplinas científicas igualmente relevantes, a fim de verificar os reais influxos no âmbito da sua dogmática.

 

3 CRIME SEM LIBERDADE X CRIME SEM LIVRE ARBÍTRIO: TEM FUTURO A DOGMÁTICA JURÍDICO-PENAL?

De fato, num viés determinista, que ancora o sistema finalista, o resultado das pesquisas neurocientíficas é inquestionável: um descrédito da culpabilidade, que traz como consequência a crise da pena, do Direito Penal e, naturalmente, da defendida “ciência do Direito Penal”, que concede à culpabilidade a condição de pressuposto indispensável da pena.

Afinal, se antes o problema era a impossibilidade de comprovação empírica da estrutura ontológica do livre arbítrio, agora a questão é muito mais grave: foi provado que o livre arbítrio empiricamente não existe. Então, como um dado inexistente poderia fundamentar o juízo de culpabilidade penal? Como essa culpabilidade poderia ser um pressuposto indeclinável para a aplicação de uma pena? Como essa responsabilidade penal poderia ser considerada legítima num Estado de Direito? Nessa ótica, é notório que, se o argumento “livre arbítrio” cai, cai com ele todo o sistema penal.

Mas, uma coisa precisa ser aqui questionada: não é curioso que cada novo argumento publicado se torna uma nova verdade e que ao Direito Penal não seja estranha uma argumentação no sentido da “teoria do dominó”? Ou seja, que seja possível apresentar um desmoronamento em cadeia que leva, ao final, à derrubada do próprio sistema[9]?

Isso acontece porque insistimos em trabalhar as estruturas dogmáticas – os pressupostos por meio dos quais será possível sistematizar os elementos do delito –, através de um sistema fechado (ontologizado) e não enxergamos que, no universo do Direito Penal, só poderiam ser utilizadas premissas filosóficas abertas (desontologizadas), que reconhecam o caráter linguístico do Direito, especialmente para a percepção analítica do fato punível.

A realidade é que, em sede de culpabilidade, o fato do “poder atuar de maneira diversa” (livre arbítrio) não ser capaz de constituir o conteúdo material da culpabilidade, na forma defendida pelo finalismo, não é novidade e não deriva do resultado das pesquisas neurocientíficas, sendo apenas ratificado e reforçado por esses experimentos.

Então, realmente a liberdade seria uma ilusão e estaríamos diante de uma “revolução neurocientífica” com a capacidade de mudar a visão que o ser humano tem dele mesmo?

Nesse diapasão, é importante observar que o Direito Penal “não se funda em dados (puramente) biológicos, mas em sistemas construídos de responsabilidade” e determinar se o homem é ou não livre, para a realização de uma prática criminosa, depende do conceito de liberdade a ser adotado[10].

Winfried Hassemer, importante professor alemão, bem observou que existe um erro categorial no translado dos resultados dos experimentos neurocientíficos para o âmbito da responsabilidade penal, pois, quando uma ciência atua fora do campo que lhe é acessível, confunde categorias e cria caos[11].

Aponta Hassemer, que as ciências empíricas do ser humano não são as únicas chamadas a falar sobre a liberdade, e muito menos, a dizer a última palavra[12] e, acrescenta Eduardo Demetrio Crespo, professor espanhol, que é duvidoso que tais investigações possam provocar uma mudança de paradigma que coloque em xeque a atual cultura jurídica[13].

Isso significa que a comprovação empírica – biológica – da inexistência de livre arbítrio não afeta a análise social. Como esclarece Klaus Günther, a responsabilidade penal é uma construção que depende de fatores sociais, jurídicos, históricos e culturais. Desse modo, deve-se perceber que o conhecimento médico incide sobre uma política criminal orientada normativamente, que decide, segundo os seus próprios critérios, quais conceitos médicos deverão ser incluídos no âmbito da culpabilidade[14].

Portanto, apesar do livre arbítrio ser biologicamente inexistente, isso não afasta qualquer compreensão de liberdade humana, especialmente porque “ação voluntária” e “liberdade” constituem características essenciais da nossa realidade social e cultural. Por esse motivo, Günther chega a afirmar que o livre arbítrio é uma “ilusão absolutamente real”, com base na qual organizamos a vida em sociedade, exatamente porque abdicar do livre arbítrio seria renunciar de parte fundamental da realidade social.

A liberdade segue, então, sendo regra, não apenas para a concepção social da realidade, como também para a construção do sistema jurídico-penal de imputação de responsabilidade.

 

4 “NOVAS” PERSPECTIVAS: JÁ PODEMOS ACEITAR A MUDANÇA DO DISCURSO OU DEVEMOS RECONHECER O FIM DO SISTEMA JURÍDICO-PENAL?

A crise da ideia biológica de livre arbítrio, em definitivo, não indica o fim da ciência penal, mas apenas um imperativo de reconhecer a necessidade de mudança de discurso, o que já foi vastamente efetuado internacionalmente desde a década de 70, portanto, frise-se, antes mesmo dos experimentos neurocientíficos.

Atualmente, denomina-se de culpabilidade ao conjunto de critérios normativos que permitem justificar a imposição de uma pena concreta por parte de um órgão de justiça a uma pessoa a qual se foi imputado previamente um injusto de relevância jurídico-penal[15]. Tal conceito não guarda uma relação necessária com a ideia de “poder atuar de outro modo”, de modo que a negativa da liberdade de vontade não pode implicar na renúncia à categoria da culpabilidade.

 

  • CRIME NUMA ABORDAGEM FUNCIONALISTA

É importante notar, por exemplo, que as construções dogmáticas de viés funcionalista – defendidas por Roxin, Jakobs, Frisch e Puppe –, amplamente difundidas no mundo e, inclusive, adotadas jurisprudencialmente no Brasil, estabelecem um estudo do fato punível completamente dissociado da ideia empírica de livre arbítrio.

Considerando que a função do Direito Penal é de prevenção geral positiva (integração social) e negativa (intimidação), os funcionalistas optaram por construir conceitos jurídicos de maneira a satisfazer determinadas funções.

No âmbito da culpabilidade, por exemplo, Claus Roxin estabeleceu a substituição da culpabilidade pela categoria da responsabilidade penal, de modo a analisar a existência de uma dirigibilidade normativa associada à necessidade preventiva da pena, sem se valer de qualquer argumentação empírica de livre arbítrio.

No funcionalismo radical de Günther Jakobs, pautado na necessidade de manutenção de um sistema autopoiético, a culpabilidade é caracterizada como um mero juízo de reprovação pessoal pela infidelidade normativa. Jakobs chega a afirmar, inclusive, que a liberdade não é um pressuposto da responsabilidade, mas exatamente o contrário, pois só seria livre aquele que é responsável.

O que se percebe aqui, a partir do mero apontamento de concepções dogmáticas conhecidas e difundidas – nas quais não nos filiamos –, é que o discurso relativo à liberdade biológica há muito tempo não interessa ao Direito Penal e, portanto, não pode ser utilizado como forma de questionar o próprio sistema.

 

  • CRIME E FILOSOFIA DA LINGUAGEM

Ademais, numa perspectiva mais moderna, é possível verificar um novo modelo de compreensão do significado dos institutos jurídico-penais, amparado na filosofia da linguagem e dissociado de qualquer perspectiva biológica do livre arbítrio.

O professor espanhol Tomás Salvador Vives Antón, defensor da concepção significativa da ação e responsável pela reestruturação linguística do estudo do fato punível, afirma que a determinação acerca de quando uma decisão foi tomada ocorre numa sequência temporal reflexiva, não na sequência empírica na qual têm lugar os fatos neurofísicos observáveis. Por isso, não resta legítimo colocá-los numa espécie de linha temporal absoluta, ordenando-os nela segundo um antes e um depois[16].

Aponta Vives que é evidente que, no cérebro, se monta um “potencial de disposição” específico para cada classe de ação, antes que a própria pessoa se “decida” a realizar o ato. Essa constatação da sequência temporal entre o processo neuronal e a vivência subjetiva parece provar que os processos cerebrais determinam as ações conscientes, sem que desempenhe um papel causal o ato de vontade que o próprio autor se atribui. Isso porque, estudos psicológicos confirmam a experiência de que atores, por determinadas circunstâncias, executam ações as quais somente posteriormente realizam suas próprias intenções[17].

Todavia, isso apenas indica que os experimentos neurocientíficos não podem ter todo o peso probatório das teses deterministas que alguns lhes atribuem, pois não é possível conferir o valor de algo experimentalmente comprovado a uma sequência temporal estabelecida entre um fato material, certificado pela experiência externa, e um fato mental, inacessível a tal experiência[18].

A liberdade que serve ao Direito Penal não é um fato bruto, mas uma construção, um princípio organizativo de um Estado de Direito, que tem sua origem na interação humana. As concepções da neurociência não provocam qualquer alteração na nossa percepção de responsabilidade penal, pois os movimentos neurais não representam uma manifestação linguística e os experimentos apenas confirmam que os processos mentais possuem uma base biológica. Aliás, não se pode pretender afastar um constructo social a partir de sensações internas.

 

  • CONCLUSÃO

Para concluir, voltamos então à pergunta do título: tem um futuro à dogmática jurídico-penal? Se permanecermos aceitando a nossa defasagem normativa e adotando o modelo finalista, não tem futuro, pois, se a dogmática penal pressupõe o Direito Penal, se o Direito Penal pressupõe a pena, se a pena pressupõe a culpabilidade, se a culpabilidade pressupõe comprovação empírica do livre arbítrio e esse noção de livre arbítrio comprovadamente não existe, nada existe e nada se sustenta!

Todavia, numa visão mais moderna e realista sobre a relação entre Neurociência, Direito Penal e livre arbítrio, a conclusão é distinta: “a investigação que procede da neurociência, embora necessária e importante, não é suficiente para a implosão do edifício jurídico-penal”[19], nem mesmo da ideia de culpabilidade.

Como o livre arbítrio, como um dado empírico que fundamenta materialmente a culpabilidade, é algo já superado, a divulgação das pesquisas neurocientíficas não pode representar o desaparecimento da culpabilidade, do Direito Penal e, tampouco, do sistema jurídico como um todo. A chamada “revolução neurocientífica” denota, tão somente, a crise do determinismo como baliza do ordenamento jurídico, exortando uma imperativa reforma no sistema normativo brasileiro, há muito tempo tão defasado.

Nos vemos como seres racionais e livres, que podem ser responsabilizados por nossas ações e isso basta ao Direito Penal. Afinal, se liberdade é um conceito essencial da existência humana (não um mero componente aprisionado na culpabilidade), abdicar dessa ideia seria renunciar a nossa própria visão de mundo.

 

Notas e Referências

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[1] Esse texto representa exposição feita em Aula Inaugural ministrada na pós-graduação em Ciências Criminais da Escola de Governo do Ministério Público do Rio de Janeiro (ago/2020).

[2] GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. ¿Tiene un futuro la dogmatica juridicopenal?. In: Problemas actuales de las ciencias penales y la filosofía del derecho. Buenos Aires: Pannedilla, 1971, p.495-523.

[3] RUBIA, Francisco J. Neurociencia y libertad. In: DEMÉTRIO CRESPO, Eduardo (coord.). Neurociencias y Derecho Penal: nuevas perspectivas en el ámbito de la culpabilidad y tratamiento jurídico-penal de la peligrosidad. Buenos Aires: B de F, 2013, p. 185.

[4] HASSEMER, Winfried. Neurociencias y culpabilidad en Derecho Penal. Tradução de Manuel Cancio Meliá. Disponível em: < http://www.indret.com/pdf/821.pdf>. Acesso em 20 maio 2020, p. 06.

[5] DEMETRIO CRESPO, Eduardo. “Compatibilismo humanista”: una propuesta de conciliación entre neurociencias y Derecho Penal. In: DEMETRIO CRESPO, Eduardo (coord.). Neurociencias y Derecho Penal: nuevas perspectivas en el ámbito de la culpabilidad y tratamiento jurídico-penal de la peligrosidad. Buenos Aires: B de F, 2013, p. 17-42.

[6] Ibidem.

[7] ROTH, Gerhard. Delincuentes violentos: ¿Seres malvados o enfermos mentales?. Tradução de Manoel Cancio Meliá. In: DEMÉTRIO CRESPO, Eduardo (coord.). Neurociencias y Derecho Penal: nuevas perspectivas en el ámbito de la culpabilidad y tratamiento jurídico-penal de la peligrosidad. Buenos Aires: B de F, 2013, p. 669-690.

[8] Ibidem.

[9] GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. ¿Tiene un futuro la dogmatica juridicopenal?. In: Problemas actuales de las ciencias penales y la filosofía del derecho. Buenos Aires: Pannedilla, 1971, p.495-523.

[10] QUEIROZ, Paulo. Revolução neurocientífica e direito penal. Disponível em: <http://pauloqueiroz.net/revolucao-neurocientifica-e-direito-penal/>. Acesso em: 04 ago. 2020.

[11] HASSEMER, Winfried. Neurociencias y culpabilidad en Derecho Penal. Tradução de Manuel Cancio Meliá. Disponível em: < http://www.indret.com/pdf/821.pdf>. Acesso em 04 ago. 2020.

[12] Ibidem.

[13] DEMÉTRIO CRESPO, Eduardo. Libertad de voluntad, investigación sobre el cerebro y responsabilidad penal: aproximación a los fundamentos del moderno debate sobre Neurociencias y Derecho penal. Disponível em: <http://dpenal.to.uclm.es/wp-content/uploads/2011/12/eduardodemetriocrespolibertad devoluntadinvestigaci% C3%B3nsobreelcerebro.pdf>. Acesso em: 04 ago. 2020.

[14] GÜNTHER, Klaus. Neurociências e o conceito de culpabilidade no direito penal. Disponível em: <https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/1760/637>. Acesso em: 05 ago. 2020.

[15] FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo José. Derecho Penal y neurociencias: ¿una relación tormentosa?. In: FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo José (ed.). Derecho Penal de la culpabilidad y neurociencias. Navarra: Civitas, 2012, p.97-98.

[16] VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Neurociencia y determinismo reduccionista:una aproximación crítica. In: DEMÉTRIO CRESPO, Eduardo (coord.). Neurociencias y Derecho Penal: nuevas perspectivas en el ámbito de la culpabilidad y tratamiento jurídico-penal de la peligrosidad. Buenos Aires: B de F, 2013, p.225.

[17] Ibidem.

[18] Ibidem, p.224-225. Em sentido similar: FRISCH, Wolfgang. Sobre el futuro del Derecho penal de la culpabilidad. Tradução de Bernardo Feijoo Sánchz. In: FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo José (ed.). Derecho Penal de la culpabilidad y neurociencias. Navarra: Civitas, 2012, p.19-70.

[19] QUEIROZ, Paulo. Revolução neurocientífica e direito penal. Disponível em: <http://pauloqueiroz.net/revolucao-neurocientifica-e-direito-penal/>. Acesso em: 04 ago. 2020.

 

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