Te perdôo, quando anseio pelo instante de sair: o assédio moral como um conceito aplicável às relações familiares

11/01/2016

Por Guilherme Wunsch - 11/01/2016

Em outras oportunidades, já se discutiu que a noção de família passou por uma profunda transformação paradigmática dentro do Direito Civil. A família codificada de 1916 estava totalmente centrada em valores heteropatriarcais, diminuindo o papel da condição feminina na direção familiar. Afirma Ana Carla Harmatiuk Matos que os papéis exercidos pelos membros da família já eram preestabelecidos, com funções já estipuladas para cada membro da família, onde “o homem e a mulher tinham suas atividades distintamente distribuídas em virtude do gênero”.[1]

Neste modelo codificado, percebia-se uma hierarquia entre as funções, a fim de distribuir-se aos homens o poder e às mulheres os deveres conjugais, isso porque o patriarcalismo vigente tutelava a união para os fins de produção, eis que compreendia a noção de família constituída em torno de um núcleo econômico. Destarte, onde outrora se via a mulher como algo pertencente ao marido, agora passa-se a enxergá-la como um sujeito de sua história, a qual modificou a sua própria vida com a sua libertação econômica, fruto do rumar do campo para a cidade. Antes, o trabalho da mulher era apenas possível se o marido autorizasse. Ao homem competia o labor fora de casa, enquanto que a mulher era vista como a provedora do lar, zelando o nome e a honra da família.

Desvelar esse processo histórico é buscar as raízes de um conservadorismo que acompanhou a legislação civil brasileira por nada menos que quarenta e seis anos. Ou seja, quase meio século reconhecendo que as pessoas e as relações sociais seriam imutáveis. De forma poética, essa passagem é traduzida por Luiz Edson Fachin da seguinte forma: Se o outono do Direito Civil tradicional vai cedendo espaço, superando o tempo embalado pelas décadas de estrito dogmatismo, talvez ao desenho jurídico da primavera se apresenta agora uma espécie de renascença que une, na crítica e na construção, as emissões da teoria e da prática no Direito Civil em movimento. Refletir “outros sentidos”, de forma e de fundo, a propósito do saber e da doutrina jurídica, arrostando o desafio de compreender limites e possibilidades no novo Código Civil brasileiro.[2]

Os três pilares fundamentais do Direito acabam por assumirem um novo contorno, passam a assumir novos papeis. Aquilo que antes denominava-se de contrato, família e propriedade, passa a ser visto como trânsito jurídico, projeto parental e titularidades. A família gradativamente surge como um fenômeno social, nesta tendência de remodelamento das relações sociais. No entanto, não são raras as situações ainda recorrentes de violência de gênero, dentro das relações familiares, o que motiva a se pensar na aplicação do conceito de assédio moral incorporado ao Direito de Família.

O assédio moral é um conceito muito caro ao Direito do Trabalho, mormente porque se desenvolve partindo-se da premissa de relações subordinadas e caracteriza-se quando estiverem presentes atos comissivos ou omissivos, sejam estes atitudes, gestos ou comportamentos do patrão, da direção da empresa, da gerência, de qualquer superior hierárquico ou, até mesmo, de colegas de trabalho. Para que reste configurada a conduta assediadora, far-se-á necessária uma atitude contínua de ostensiva perseguição que, consequentemente, acarretará dano às condições físicas, psíquicas, morais e existenciais do trabalhador[3].

Marie-France Hirigoyen[4], expoente do estudo da matéria aduz que: o assédio moral no trabalho é definido como qualquer conduta abusiva (gesto palavra, comportamento, atitude...) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho.

Thomé, de modo geral, colocará que “o assédio moral atinge os direitos fundamentais da pessoa humana, na medida em que o assediador atinge a própria identidade da vítima como ser humano[5]”. Hodiernamente, o assédio moral ultrapassa os limites da individualidade e acaba por gerar um sentimento de inquietação e temor, que atinge vários segmentos sociais, dentre os quais se pode destacar a família. Como referem Luís Leandro Gomes e Rodrigo Galia, é importante ressaltar que o assédio moral corresponde a um fenômeno típico da sociedade atual, não se restringindo a um lugar específico, mas, sobretudo, constituindo um problema de amplitude global. Apesar disso, a forma como ele se manifesta varia de local para local, o que acaba por dificultar sua definição e estabelecer uma só terminologia. Trata-se de uma psicologia do terror, ou, simplesmente psicoterror [...].[6]

Nas relações familiares, o assédio moral geralmente vem atrelado a xingamentos, humilhações, insultos, posturas de ridicularização diante de amigos e de membros da família.  Comumente, a agressão moral nas relações conjugais atingem mais a mulher, sendo silenciosa, ardilosa, de modo que a própria família não percebe as agressões ocorridas com a vítima.  Da mesma forma que nas relações de trabalho, o assédio moral na família é caracterizado por um conjunto de condutas agressivas e repetitivas, de forma a violar a integridade psíquica e moral da vítima, ainda que sejam efetuadas na desculpa de ser em tom de brincadeira. Situações como: “ Eu digo isso porque te amo”; “Sei melhor do que você o que é bom para você”; “Você é uma burra”; “Você é um frouxo”; “Você não faz nada direito”; “Se você passar pela porta”; “Você é uma desgraça”, quando ditas em repetição podem abalar a autoconfiança da vítima.

O agressor, assumindo comportamentos como choros e gritos, faz com que a atenção da vítima se concentre inteiramente nele, culpando-a por tudo que acontece. Ao mesmo tempo, o agressor tenta isolar a vítima de contato social e de pessoas íntimas, como familiares e amigos, para que ela não tenha com quem se abrir e se sinta sozinha. Já a vítima nem sempre se caracteriza por ser uma pessoa depressiva ou de baixa autoestima, mas a perversidade da situação de violência, a mantém dentro da teia construída pelo agressor. Por isso,  a vítima acredita ser culpada das agressões e sente vergonha, principalmente, vergonha de não se sentir amada. Insta observar que o assédio moral na família pode se dar em todas as dimensões, ou seja, não apenas nas relações conjugais, mas nas relações parentais, igualmente. Observa-se que o assédio moral na família muitas vezes é reconhecido somente a partir de seus efeitos e isso agrava o quadro da vítima, pois já se está diante de danos causados pela rotina de violência.

Como refere Kenza Borges Sengik, a existência do assédio moral na família não significa ausência de amor, mas sim do respeito mútuo, comunicação e afeto entre seus membros na busca de uma comunhão de vida.[7] Destarte, reconhecer a aplicação do conceito de assédio moral nas relações familiares significa respeitar a dignidade de todos os membros da família, de modo que sua prática deve ser combatida antes que gere danos dentro de uma formação social. O que a vítima deseja é a cessação do assédio moral para que tenha a tutela da sua personalidade salvaguardada.


Notas e Referências:

[1] MATOS, Ana Carla Harmatiuk. União entre pessoas do mesmo sexo: aspectos jurídicos e sociais. São Paulo: Del Rey, 2004. p.8.

[2] FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.41.

[3] GUEDES, Márcia Novaes. Terror psicológico no trabalho. 2.ed. São Paulo, SP: LTr, 2004. p. 33.

[4] HIRIGOYEN, Marie-France. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral. 8 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015. p. 17.

[5] THOME, Candy Florencio. O assédio moral nas relações de emprego. São Paulo: LTr, 2008. p. 62.

[6] RAMOS, Luís Leandro Gomes. GALIA, Rodrigo Wasem. Assédio moral no trabalho: o abuso do poder diretivo do empregador e a responsabilidade civil pelos danos causados ao empregado – atuação do Ministério Público do Trabalho. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p.41.

[7] SENGIK, Kenza Borges. Assédio moral na família: a tutela jurisdicional da personalidade e o acesso à justiça. São Paulo: Boreal editora, 2014. p.126.

FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

GUEDES, Márcia Novaes. Terror psicológico no trabalho. 2.ed. São Paulo, SP: LTr, 2004.

HIRIGOYEN, Marie-France. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral. 8 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015.

MATOS, Ana Carla Harmatiuk. União entre pessoas do mesmo sexo: aspectos jurídicos e sociais. São Paulo: Del Rey, 2004.

RAMOS, Luís Leandro Gomes. GALIA, Rodrigo Wasem. Assédio moral no trabalho: o abuso do poder diretivo do empregador e a responsabilidade civil pelos danos causados ao empregado – atuação do Ministério Público do Trabalho. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

SENGIK, Kenza Borges. Assédio moral na família: a tutela jurisdicional da personalidade e o acesso à justiça. São Paulo: Boreal editora, 2014.

THOME, Candy Florencio. O assédio moral nas relações de emprego. São Paulo: LTr, 2008.


Guilherme WunschGuilherme Wunsch é formado pelo Centro Universitário Metodista IPA, de Porto Alegre, Mestre em Direito pela Unisinos e Doutorando em Direito pela Unisinos. Durante 5 anos (2010-2015) fui assessor jurídico da Procuradoria-Geral do Município de Canoas. Atualmente, sou advogado do Programa de Práticas Sociojurídicas – PRASJUR, da Unisinos, em São Leopoldo/RS; professor da UNISINOS; professor da UNIRITTER e professor convidado dos cursos de especialização da FADERGS, FACOS, FACENSA E IDC.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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