TAXA E LIMITE LEGAL DOS JUROS MORATÓRIOS NO DIREITO BRASILEIRO: Breve contribuição para uma discussão que já atingiu a maioridade

09/09/2020

Coluna Direito Civil em Pauta / Coordenadores Daniel Andrade, David Hosni, Henry Colombi e Lucas Oliveira

O código civil brasileiro de 2002, como é de amplo conhecimento, atingiu no ano de 2020 a sua maioridade quanto a publicação, e se aproxima, no próximo ano, da maioridade da vigência. São 18 anos desde a publicação, em 10 de janeiro de 2002, da lei 10.406 que instituiu o novo Código Civil Brasileiro, revogando o anterior, que datava de 1916. São 18 anos de muita evolução e desenvolvimento do Direito Civil no nosso país, mas sobretudo, de muita controvérsia sobre alguns temas que conforme se verificou ao longo deste período poderiam ter sido melhor tratados pelo nosso diploma civil.

Dentre esses temas que geram controvérsias, sem dúvidas um dos principais é o que envolve a discussão sobre a taxa e o limite legal dos juros moratórios, que incomoda a doutrina, a jurisprudência, os operadores do direito e a população em geral1. O Código Civil de 2002, rompendo com a sistemática do seu antecessor, cuja taxa legal era fixa, por força do seu art. 1.062, e limitada segundo o disposto na Lei da Usura (Decreto 22.626/1933)2, trouxe uma noção nova de juros, de certa forma mutável. A intenção do legislador, personificado no autor do CC/02, o Professor Miguel Reale, parece ter sido a de trazer uma taxa legal que variasse de acordo com certas condições econômicas do país3. Contudo, tal opção acabou gerando uma série de dúvidas que persistem mesmo após o atingimento da maioridade do código civil e que aguarda por uma definição jurisprudencial, que poderá emergir do julgamento de um recurso repetitivo pelo STJ4.

 

1. O QUE SÃO OS JUROS MORATÓRIOS?

Antes de adentrarmos no cerne da discussão ora colocada, é fundamental apresentarmos breves notas sobre o objeto da celeuma. Os juros legais ou moratórios são parcelas que se acrescem à obrigação principal quando for verificado o inadimplemento parcial da obrigação, ou seja, a mora do devedor, sendo sua função principal tutelar a manutenção doo interesse do credor na prestação. Eles estão disciplinados no Código Civil nos artigos 406 e 407, no Capítulo que disciplina as consequências do inadimplemento das obrigações e constituem-se numa figura que é aplicada por fruto da lei, mas que também pode ser convencionada pelas partes, conforme estabelece o primeiro artigo acima mencionado.

Por ter uma função sancionatória5, os juros são devidos tão logo se verifique a mora do devedor, e aplicáveis ainda que o credor não sofra qualquer prejuízo6, possuindo inegável função punitiva7 e natureza de pena privada. Eles são diversos dos chamados juros compensatórios ou remuneratórios, que servem para remunerar os bens do credor que foram livremente entregues para o devedor, como no caso do mútuo feneratício.

Verificada a mora do credor os efeitos sancionatórios dos juros moratórios serão verificados. Neste sentido é fundamental apontar a dicção dos artigos 389, 394 e 395 do CC/02, que estabelecem que quando verificado o inadimplemento pontual da obrigação, ou seja, a mora do devedor, ele deve responder pelos prejuízos, acrescido de juros, atualização monetária e honorários advocatícios. Sempre fundamental destacar que o conceito de mora no Direito brasileiro, não se prende necessariamente ao atraso no cumprimento, mas também às hipóteses de inadimplemento quanto ao tempo, lugar e forma estabelecida8.

Mas não basta que o inadimplemento pontual da obrigação seja verificado para que os juros moratórios produzam seus efeitos. O inadimplemento deve necessariamente se dar por fato imputável ao devedor, ou seja, com culpa, nos termos dos artigos 396 e 408 do Código Civil. Assim, preenchidos os requisitos para aplicação dos juros de mora, eles poderão produzir seus efeitos sancionatórios. Mas nesse caso se indaga: a qual taxa legal? E qual o limite a ser observado quando as partes os pactuam expressamente?

 

2. QUAL A TAXA LEGAL DOS JUROS MORATÓRIOS?

O art. 406 do CC/02 é o nosso principal norte legal quando tratamos da taxa de juros moratórios no Brasil, ao estabelecer, a princípio, que ela pode ser convencionada “livremente” pelas partes. Até aí sem maiores problemas, que vão surgir, contudo, quando não há convenção sobre a taxa por opção das partes, ou quando há impossibilidade de que haja essa convenção, como nos casos de responsabilidade civil extracontratual (seria impossível, por exemplo, que duas pessoas que se envolvem em um acidente automobilístico pactuassem uma taxa de juros antes de sua ocorrência). Nestes casos, o mencionado artigo estabelece que os juros “serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”. É a partir disso surge o grande embate: há de ser aplicada a Taxa SELIC ou a taxa de 1% ao mês, nos termos o art. 161, §1º do Código Tributário Nacional.

Desde já entendemos ser necessário fixar posição, e defender como taxa de juros legais a de 1% ao mês, já que o dispositivo do CTN supra citado é aquele que melhor integra o art. 406 do Código Civil. Esse é, inclusive, o entendimento doutrinário expressado no enunciado 20 da I Jornada de Direito Civil do CJF9, ao qual nos filiamos integralmente. Por outro lado, a SELIC, ao nosso ver, não pode ser considerada como a taxa de juros a ser aplicada nos termos do artigo do CC supracitado, por diversos motivos, sendo o principal e mais decisivo de todos relacionado com a sua natureza, que não é de taxa de juros, conforme discorreremos a seguir

Ao comentar o art. 406 do nosso codex, o Professor José Fernando Simão de forma absolutamente precisa delineia as principais características da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (SELIC), apontando em primeiro lugar que se trata de uma taxa de custodia, voltada para a guarda e remuneração dos títulos da União Federal, incluindo em seu bojo um mix de juros e correção monetária. Ressalta que ela foi criada pela lei 9.065/95 como forma de padronizar a taxa paga aos investidores de títulos do Governo Federal, sendo fixada a cada 45 dias pelo Comitê de Política Monetária (COPOM), sendo em última análise um instrumento de controle da política macroeconômica do Brasil. Em razão dessas considerações a taxa SELIC seria um instituto de natureza híbrido, incompatível com o regime previsto no art. 406 do CC/02, não sendo meramente uma taxa de juros, mas trazendo também a atualização monetária na sua composição10.

Esse é sem dúvidas o raciocínio jurídico mais correto e harmonioso com o sistema, pois não se pode defender a aplicação de um parâmetro cuja natureza não se relacione com o instituto analisado. Dessa forma, não sendo genuinamente uma taxa de juros, a SELIC não pode funcionar como instrumento de integração da norma que disciplina os juros moratórios. Ainda que se argumente que a intenção do legislador era permitir a adoção de uma taxa móvel, pesa ainda contra a aplicação da SELIC a sua excessiva volatilidade, sendo que suas oscilações recentes se assemelham a uma “montanha russa”11. Assim, se num passado recente sua aplicação era defendida por alguns em razão da taxa ser um incentivo superior ao cumprimento das obrigações, neste momento este argumento caiu por terra12, já que a SELIC se encontra em seu patamar histórico mínimo13.

Mas o fato é que argumentos sobre o patamar da taxa, seja ele muito alto ou muito baixo, não devem influenciar a análise jurídica do tema. Pelos argumentos ora colocados, e especialmente pela natureza sui generis da taxa SELIC, inegável dizer que a taxa prevista no art. 161, §1º do CTN é aquela que deve ser levada em consideração para integrar o art. 406 do Código Civil. Registre-se, ainda, que a taxa de juros de 1% ao mês, é, inclusive, utilizada pelo legislador em situações especiais de mora, como no caso do condômino inadimplente (art. 1.336) e da coleta de elementos para o inventário de uma sociedade (art. 1.187, parágrafo único, II)14. Esse é o parâmetro que deve, portanto, ser utilizado como taxa legal para fins do art. 406 do CC/02.

 

3. QUAL O LIMITE LEGAL DOS JUROS MORATÓRIOS?

A discussão sobre a taxa legal a ser aplicada nas relações jurídicas, contudo, não é a única celeuma que o Código de 2002 trouxe quanto aos juros moratórios. O rompimento com a dinâmica trazida pelo diploma civil anterior, que nesse ponto específico era integrado pela Lei da Usura, trouxe mais uma pergunta: qual é o limite legal dos juros moratórios?

Como já vimos, as partes, segundo dicção expressa do art. 406, são livres para pactuar os juros moratórios, que, quanto à sua origem, podem ser legais ou convencionais15. Mas quando forem convencionados, em um contrato por exemplo, a taxa utilizada não pode ser de total alvedrio dos contratantes, pois existem parâmetros a ser observados, sendo certo que o sistema jurídico brasileiro nunca aceitou com bons olhos a utilização indiscriminada de taxas de juros moratórios.

Ao analisar a questão Daniel Bucar e Caio Ribeiro Pires, de forma bastante minuciosa, apontam que, a partir da análise doutrinária e jurisprudencial sobre o assunto, podemos encontrar argumentos para defender 5 limites legais diversos, quais sejam: (i) a própria SELIC; (ii) o dobro da SELIC; (iii) a SELIC acrescida de 12% ao ano; (iv) a taxa1% ao mês, ou seja 12% ao ano; e (v) o dobro de 1% ao mês, ou seja 24% ao ano16.

Considerando nossa posição apontada acima, as três primeiras possibilidades que se referenciam à SELIC ficam afastadas, cabendo analisar se o limite será de 12% ou 24% ao ano. Para nós, em total concordância com os autores citados acima, a segunda opção é aquela que mais se adequa ao ordenamento jurídico brasileiro. Mesmo que na prática negocial o patamar de 1% seja o mais usado17, entendemos que as partes são livres para pactuar juros moratórios de até 2% ao mês.

Esse é o limite encontrado ao fazer o cotejo dos artigos 406 do CC/02 e 161, §1º do CTN com

o artigo 1º da Lei da Usura. Isto porque o último artigo citado determina ser possível pactuar juros moratórios até o máximo do dobro legal. Trata-se, ao nosso ver, da orientação mais consentânea com a natureza sancionatória/punitiva dos juros moratórios e que valoriza os princípios da autonomia privada e liberdade contratual, que, registre-se, vêm sendo novamente valorizados com a publicação da Lei da Liberdade Econômica. Além disso, é o entendimento que leva em conta uma interpretação mais atual e contemporânea da Lei da Usura18, utilizando as regras trazidas pelo nosso atual código civil em paralelo ao diploma da década de 1930.

 

4. CONCLUSÃO

Como visto a maioridade do Código Civil de 2002 é inegavelmente um marco importante no desenvolvimento do nosso Direito Civil, mas ao mesmo tempo faz com que algumas celeumas jurídicas também alcancem essa efeméride. Nesse artigo procuramos contribuir para esclarecimentos de uma delas: a discussão sobre a taxa e o limite legal dos juros moratórios. Em nossa opinião, a taxa SELIC não tem vez nessa discussão, especialmente porque não é uma verdadeira taxa de juros. Nosso entendimento, portanto, é pela aplicação do patamar de 1% ao mês como taxa de juros legais, emanado da interpretação conjunta dos artigos 406 do Código Civil de 2002 e 161, §1º do Código Tributário Nacional. Além disso, também defendemos que em relação ao limite legal deve-se utilizar as normas acima mencionadas em conjunto com o art. 1º da Lei de Usura (Decreto 22.626/1933), sendo permitida a convenção de juros moratórios sob a taxa máxima de 2% ao mês, o que equivale a 24% ao ano.

 

Notas e Referências

1 Como destacado por André Albuquerque Cavalcanti Abbud em artigo de opinião publicado no Valor Econômico (disponível em https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2020/05/20/o-atraso-na-definicao-dos-juros-por-atraso.ghtml).

2 BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, vol. IV. Rio de Janeiro: Editora Paulo de Azevedo, 1958, p. 176-177.

3 BUCAR, Daniel; PIRES, Caio Ribeiro. Juros moratórios na teoria do inadimplemento: em busca da sua função e disciplina no direito civil. In: Inexecução das Obrigações: pressupostos, evolução e remédios. Aline de Miranda Valverde Terra e Gisela Sampaio da Cruz Guedes (coord.). Rio de Janeiro: Processo, 2020, p. 471.

4 O RESp 1.081.149/RS destacado por TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Fundamentos de Direito Civil: Contratos, v. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 356.

5 TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Fundamentos de Direito Civil: Contratos, p. 345-346.

6 ALVIM, Agostinho. Da Inexecução das Obrigações e suas Consequências, p. 182.

7 Como bem aponta TARTUCE, Flávio. Manual de Responsabilidade Civil. São Paulo: Método, 2018, p. 175.

8 Sobre a evolução e o desenvolvimento do conceito de mora no Direito brasileiro, ver ALVIM, Agostinho. Da Inexecução das Obrigações e suas Consequências. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 11-12; e MARTINS-COSTA, Judith. Do adimplemento das obrigações, p. 324-325.

9 BRASIL. CJF. I Jornada de Direito Civil. Enunciado 20: A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, um por cento ao mês.

10 SIMÃO, José Fernando. Comentário ao art. 406 do CC. In: SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 228-230.

11 BUCAR, Daniel; PIRES, Caio Ribeiro. Juros moratórios na teoria do inadimplemento: em busca da sua função e disciplina no direito civil, p. 471.

12 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie, v. 2. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 249.

13 Como é possível verificar na reportagem sobre a última reunião do COPOM ocorrida antes da publicação do presente texto. Disponível em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/08/05/bc-copom-juros-selic-5-agosto.htm.

14 TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Fundamentos de Direito Civil: Contratos, v. 2, p. 354.

15 SIMÃO, José Fernando. Comentário ao art. 406 do CC, p. 228-230.

16 BUCAR, Daniel; PIRES, Caio Ribeiro. Juros moratórios na teoria do inadimplemento: em busca da sua função e disciplina no direito civil, p. 474.

17 TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Fundamentos de Direito Civil: Contratos, v. 2, p. 354.

18 BUCAR, Daniel; PIRES, Caio Ribeiro. Juros moratórios na teoria do inadimplemento: em busca da sua função e disciplina no direito civil, p. 475.

 

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