Por Cyro Marcos da Silva - 16/04/2015 

Apresento meu trabalho a partir de reflexões surgidas na esquina dos percursos da Psicanálise e do Direito. Trago aqui minha contribuição, mais em cima de perguntas que de respostas. Enfim, vamos lá.

Revista Veja, 3 de fevereiro de 1999.

ELES:

“Já meti porrada num professor que me expulsou de sala. Voei para cima, desci a mão. Eu não queria matar ele e por isso só dei uns tapas.” (Alberto, 19 anos).

“Depois que eu jogo no chão é show. Boto o joelho no peito e dou um monte de socão na cara. O objetivo não é machucar; é brigar. Mas é impossível conter a vontade de deixar minha marca.”(Rodrigo, 19 anos).

“Já perdi conta de quantos eu apaguei em brigas de rua. Meu cachorro, o Zé, é que nem eu, pode matar outro cachorro com uma só dentada. Olha só as cicatrizes dele.”(Alex, 21 anos).

“Eu sou explosivo desde garoto. Antes de entrar na briga eu me perguntava: será que eu apanho desse cara? Quando mexiam comigo, eu brigava. Eu gosto de ser respeitado. Também tem um pouco de auto-afirmação.”(Ryan, 24 anos).

ELAS:

‘Uma vez cheguei a paquerar um braço. De longe, no bar, só via o braço de um cara”. E Camila, 20 anos, ainda diz:

“Não troco eles por nenhum magrinho que manda flores.”

Agora, diz Viviane, 19 anos:

“Eu gosto dos fortes.”

O título desta reportagem foi: “A Cultura do Tapão.”

No texto ético “O mal estar na Cultura”, Freud já nos avisa que o sujeito não é bonzinho e que o preço a ser pago para gozarmos um gozo civilizado, para vivermos, enfim, em uma cultura, é a renúncia pulsional.

Aliás, não poderíamos contar com a ilusão, ao modo de uma bela alma, de que refugiar-se em pretensas delícias da natureza, com ausência de exigências culturais e renúncias pulsionais, seria uma bela e possível saída. Para isto já é tarde. Desde sempre tarde. Basta nos lembrarmos do que Freud nos disse: deve ter havido um primeiro aí que, topando com o fogo, renunciou ao prazer de apagá-lo com o jorro de sua urina, conservou-o e submeteu-o. E então o fogo arde, impondo o preço da renúncia.

Esta renúncia, chama sempre ardente, é não toda reconduzida a um ideal simbólico. Isto se agrava ainda mais diante de um quadro de “miséria psicológica”, expressão usada por Freud. Existe um grau de “jurisdição” outro, uma outra instância censora, moral, supermoral, (Überich), que impede o sujeito de cumprir os próprios mandamentos que lhe são ditados, ou melhor vociferados. É o supereu. Este serve à moral, ao preço de sacrificar a Lei. A renúncia é pois recapturada por essa instância — o supereu — avocando para si o poder de julgar, e ditar ordens com o máximo de esvaziamento de sentido, torturando o sujeito, arrastando-o a um especular que aterroriza pela aproximação brutal do objeto: “meu cachorro, o Zé, é que nem eu.”

Lacan nos adverte, no Seminário XX para vociferação insensata do Supereu: GOZE! Goze um gozo que sirva para nada. Porém, como o desejo, malgrado o gozar, é indestrutível, o sujeito ainda diz:

“Mas é impossível conter a vontade de deixar minha marca.”

Vamos então falar de marca, escutando o que o Direito tem a nos dizer. Num espaço de leis, direito e psicanálise se tocam. A psicanálise nos fala da Lei reguladora da diferenciação subjetiva e o jurídico, expressão do Outro, aí deve estar, em sua dimensão simbólica, também falando da regulação da subjetividade.

Marca vem do germânico marka: sinal, fronteira, limite. Marca ainda nos faz lembrar o Direito Comercial, onde podemos ler, em Rubens Requião:

“Marca é sinal distintivo de determinado produto, mercadoria ou serviço”. Mas diz respeito a uma filiação. A marca, porque distingue, serve a uma identificação. “Vem de outrora — lembra Requião — o hábito, também de identificar, com marca em fogo, o gado. Não constituíam propriamente marcas, mas um cunho de propriedade.

O significante, a pertença ao mundo da linguagem, imprime no sujeito a sua marca registrada, sendo a marca não só declarativa mas, mais que isto, constitutiva, já que a originalidade, novidade e licitude são pré-requisitos para sua efetividade. Aliás, o Direito Comercial ainda nos traz o seguinte ensinamento:

“A veracidade constitui um elemento imanente da licitude, condição da marca. Assim, evita-se indução de falsa procedência.”

Então, em que veracidade, em que origem podemos pensar, quando se trata da marca constitutiva do sujeito?

O sujeito extrai sua marca de uma filiação que se conecta ao legal de uma função: a paterna. Esta função é normativa e portadora da relação da família com o interdito. É inevitável,  no entanto, que a função paterna, em seu viés imaginário, instigue uma rivalidade:

“Antes de entrar na briga eu me perguntava: será que eu apanho desse cara?”

“A veracidade da licitude é a condição da marca, nos ensina o Direito. No que diz respeito ao sujeito, cabe à função paterna ser o portador da marca, apontando ao sujeito, para além do mesmo, o diferente, algo além do espelho. É a dissimetria que resistirá ao especular, pondo limites à rivalidade, designando um ponto de vazio onde emerja um sujeito que possa fazer valer sua palavra quando diz:

“Eu gosto de ser respeitado.”

Para que o sujeito sobreviva é preciso que se depare com o Outro como instituidor da novidade que funda a marca, portador da diferença. O sujeito será sempre intolerante com sua semelhança se o Outro não lhe advém como tertio, além da semelhança.

Em nossos dias, porém, com o declínio da paternidade e o enfraquecimento da palavra, os sujeitos confessam abertamente seu gozo. Há uma fantasia reinante de que dizer tudo é possível. Há, até mesmo, muitos operadores do jurídico que confiam piamente em que é possível legislar sobre tudo. O preço pago é a  desubjetivação, já que o sujeito não terá lugar na cena, onde está posto o objeto, em seu viés persecutório. Daí a cena se torna obscena. Como vimos, vai-se o sujeito, fica o braço:

“Uma vez cheguei a paquerar um braço.”

Parece-nos que o que há de mais privado hoje, adentra a galope em espaços públicos, corrida esta sempre atiçada por algumas esporas espúrias da mídia, sobretudo quando o apoio se dá em ideais de transparência, num esforço constante de esgarçar e rasgar, desbragadamente, até o último dos véus.

Aqui então, ao lançarmos a pergunta, — e a família, como vai? — poderíamos responder: — vai bem, obrigado? Nesta virada de século, não estaria a família, espaço de transmissão de significantes sempre reguladores de gozo e de litigiosidade contidos, abrindo mão de velar seu mal estar para que outras montagens o façam? Seriam estas montagens modernas as gangues de lutadores, as academias do “brazilian jiu jitsu, os campeonatos de vale tudo, a turma de cascas grossas, — gíria usada pelos lutadores raçudos e valentes para agrado das “cachorras”? Segundo tal gíria, trazida pela referida reportagem, “cachorras” são as garotas com muitos namorados, o melhor, as que dizem:

“Não troco eles por nenhum magrinho que manda flores.”

Diante desta oferta de miseráveis ideais, o que o jurídico tem oferecido?

Será que o jurídico tem apostado na mediação simbólica, ou está a oferecer, com maior pregnância, espaços imaginários onde se propugna que a marca da lei se faça a ferro e fogo? Será que o jurídico está a fazer crer em um onipotente imaginário, ainda que este onipotente seja o próprio texto jurídico, centrado em seus enunciados?

O que o direito, quando convocado, tem oferecido como espaço de escuta em audiências, de falas como estas que reproduzimos vindas desta moçada que faz um apelo à função paterna? Destes jovens, onde a agressividade se dá num nível o mais natural, onde o  espaço de mediação parece não ter hora nem vez, onde o ideal é o braço armado e amado, braço que se não quer matar, assim mesmo quer briga, apagar — (pagar?) — em brigas de rua?

Que políticas públicas têm acolhido o pulsional renunciado,  fundante da cultura? Que políticas públicas têm acolhido a necessária renúncia de fazer justiça com as próprias mãos?

Política pública nos leva a pensar na posição da pólis perante este gozo mais familiar, mais privado, mais íntimo, mas estranho, mais perverso, renunciado ao campo do Outro, do público, do instituído, para constituir a cultura. Com que manejo o Outro tem acolhido esta renúncia? E os transmissores, como se situam? E o pai como função, onde está? Por onde paira o pai? Onde pairava diante deste: “sou explosivo desde criança?”

O que não para de explodir? — “eu gosto de ser respeitado”. A questão é que para isto, diante de indigências referenciais, ele se divide entre apanhar ou bater: “antes de entrar na briga eu me perguntava: será que eu apanho desse cara?”

Algo nos faz crer que estamos reeditando, neste final de século, uma nova “belle époque”, um pouco às avessas. Esta não se acha mais, com aconteceu, maquiada pela nata de um pueril, perigosa e perversa euforia de tempos de luminosa metrópole, escondendo barbáries do interior. É o inverso que se anuncia: a metrópole agasalhando a barbárie e fazendo o sujeito ter que se iludir com uma casa no campo onde possa ficar do tamanho da paz.

Neste momento, que novas guerras estão aí nos espreitando, que outros campos de segregação nos aguardam, quais os novos totens a caminho, que novas hordas ressurgem nessas sementes de “cultura do tapão?”

Ao final do cap. V de “Mal Estar da Cultura” Freud escreve:

“Além das tarefas da limitação das pulsões para a qual estamos preparados, nos chama a atenção o perigo de um estado que poderíamos denominar “miséria psicológica da massa”. Esse perigo ameaça sobretudo onde a ligação social se estabelece principalmente por identificação recíproca entre os participantes, enquanto que individualidades condutoras não alcançariam a significação que lhes corresponderia na formação da massa.”

Penso que Freud denuncia aí, como perigo, a identificação dirigida sempre especularmente, a um eu ideal, estando em questão a falência da referência, como Pierre Legendre denomina o falo simbólico.

Há uma verdadeira feira de referências baratas, com ofertas de saber, saber promovido a regas de saber fazer, que levariam, pretensamente, a um saber-viver. Regras se colocam, bancando a referência.

Mas a referência, como nos ensina Kelsen, no mundo jurídico, esta expressa em uma Grundnorm, uma norma fundamental, da ordem do insondável. É fundamental, insondável, ponto de falta, silêncio de não saber.

Este ponto vazio, o Direito deve ser convocado a eticamente chancelar, apontando sua própria incompletude enquanto referência na civilização, convidando seus operadores a repensarem a enxurrada de enunciados e regras ávidos de tudo regular. Qualquer pretensão totalizadora, por via de regras, esbarrará fatalmente na condição  — não toda — do Direito. Temos que estar atentos para que o Direito, que na cultura tem lugar de referência, não  se deixe confundir com a regra.

Termino este trabalho, então, com esta observação trazida pela expressão de nossas raízes romanas jurídicas, contida na milenar sabedoria do Digesto, em seu livro 50, tít. L7, fragmento I:

“A essência da regra é enunciar brevemente uma coisa pré-existente. Não é preciso que o direito seja tirado da regra, mas, do direito que pré-existe, seja tirada a regra.”


Cyro Marcos da Silva é ex-Promotor de Justiça, ex-Professor de Processo Civil, Juiz de Direito aposentado do TJRJ e Psicanalista. Publica regularmente no Empório do Direito nas quintas-feira. No Facebook aqui                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         


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