Suspensão de processo penal sem provas?

10/07/2017

Há sérias controvérsias sobre a produção antecipada de provas a que se refere o art. 366 do CPP cuja condição legal é que sejam elas urgentes. Sobre essa urgência instalou-se a divergência, que pode ser, numa síntese arbitrária, expressa em duas vias: uns aplicando uma interpretação ampla para pensar a prova frente ao transcurso do tempo – e, assim, uma prova testemunhal que em razão de sua condição humana, temporal, perecível, poderia ser produzida –; e outra, de âmbito mais restrito, para se entender a urgência como o perecimento ou sua probabilidade de forma concreta e imediata. No caso de testemunhas, a urgência seria aquela do art. 225 do CPP, segundo precedentes do STF, por exemplo; ou, para o STJ, testemunhas policiais podem ser ouvidos para evitar a chamada falsa memória – o tempo e as inúmeras participações em operações podem gerar impressões falsas sobre fatos específicos em apuração. E por aí vão as posições variadas.

Contudo, apesar da importância desse debate, não nos voltamos a ele aqui. Há farto material sobre isso que pode ser consultado. Não queremos dar ênfase à discussão sobre a (i)legalidade na produção da prova, mas para algo que consideramos tão greve quanto uma prova produzida ilegalmente. A rotina forense tem nos colocado frente a frente com situações em que é decretada a suspensão do processo e do curso do prazo prescricional, na forma do art. 366 do CPP, e antes ou depois – não importa aqui para os fins almejados a tese a que aderiu o juiz – a prova testemunhal não é localizada, o que leva o ministério público a desistir de sua produção, ou é produzida, mas sem resultados que confirmem o teor da acusação posta. Em palavras mais claras, os autos possuem a prova da materialidade espelhada, em regra, em laudos periciais, autos de apreensão etc., porém, a autoria, que comumente depende de prova testemunhal, não é provada. São expedidos os mandados às testemunhas e elas não são localizadas ou, se localizadas, a oitiva não é capaz de viabilizar o êxito da denúncia. No caso de não localização, o órgão ministerial informa novos endereços, faz substituições, mas, ao fim, nenhuma testemunha é ouvida, o que leva à não instrução processual seja porque o ministério público desiste expressamente das oitivas ou porque outra alternativa não lhe resta senão a desistência.

Esse é o quadro. A prova material está nos autos. As testemunhais foram infrutíferas (não localizadas ou ouvidas sem que o conteúdo dos depoimentos viabilize qualquer condenação). O acusado está com paradeiro incerto. Nesse contexto, os autos estão suspensos (e o curso do prazo prescricional também). Não importa se a suspensão ocorreu antes ou depois dessa caracterização. Pois bem, a questão que lançamos é: faz sentido manter a suspensão de um processo que se não estivesse suspenso o resultado seria a improcedência da acusação pela falta ou insuficiência de provas? Pensamos que não. Vamos desdobrar essa ideia.

A prova da materialidade isolada é insuficiente para produzir uma sentença condenatória. Logo, sem elementos colhidos em juízo sob o contraditório a respeito da autoria não é possível alcançar o êxito da acusação. Por outro lado, nos casos em que a autoria está condicionada apenas a provas testemunhais (podem haver outros meios de provas como documentos) e sua produção torna-se impossível no curso do processo (testemunhas não encontradas ou se encontradas, os depoimentos não conduzem a uma decisão desfavorável ao acusado), fatalmente a pretensão acusatória não será acolhida na decisão final.

Ainda que elementos existam no inquérito policial – o que ocorre quase sempre –, sabemos que a decisão no processo penal não pode fundar-se nesses dados para acolher a acusação feita. Embora a reforma de 2008, tenha alterado a redação do art. 156 do CPP para possibilitar ao juiz a utilização de informações do inquérito policial, não poderá fazê-lo exclusivamente. Verdade é que essa regra é flagrantemente inconstitucional por expressa violação do princípio do contraditório e da necessidade consequente de produção das provas em juízo. A leitura que pode ser feita diante de um caso é que há provas para procedência da inicial acusatória ou não há provas suficientes para tal. Na primeira hipótese, o juiz não precisa valer-se do inquérito, pois a prova judicial basta; na segunda, caso a condenação decorra do inquérito (testemunhas, por exemplo), o processo penal não se prestaria a nada, salvo para ratificar a natureza inquisitiva do inquérito policial.

Mesmo nos casos de pronúncia, para os quais bastariam indícios de autoria (CPP, art. 413), que muitos os caracterizam sob o manto de princípio – in dubio pro societate – epistemologicamente de princípio não se trata, mas de indícios mesmos, entendidos como tais, na hipótese aqui trazida – autoria que dependa de testemunhas não ouvidas em juízo –, aqueles que são produzidos em juízo. Queremos dizer com isso que se não há testemunhas que apontem esses indícios em audiência regularmente designada e realizada em juízo, tais indícios não podem ser colhidos do inquérito policial. A consequência é que, mesmo nos crimes dolosos contra a vida, o dito antes para os casos em geral é também válido. Aliás, se essa prova não é produzida em juízo, não cabe o juízo de pronúncia sob o argumento de que em plenário as testemunhas serão arroladas novamente para serem ouvidas. Os processos do tribunal do júri como sabemos têm duas fases e em cada uma delas a prova necessária, seja para a pronúncia (indícios), seja para a condenação (suficiência), deve ser produzida. A inexistência de prova na primeira fase não pode justificar a ida ao júri sob o argumento de possibilidade de produção dessa mesma prova em plenário.

Voltemos à questão. Caberia manter a suspensão de um processo nessas condições? Suspenso o processo e o curso do prazo prescricional, não havendo provas de autoria, conforme o quadro exposto, os autos deveriam permanecer em secretaria e aguardar o transcurso do prazo (Súmula 415/STJ) a fim de que fosse retomado seu livre curso e declarada extinta a punibilidade. Contudo, a permanência da suspensão desse processo inviável de êxito leva a dois problemas: um de natureza administrativa – é mais um processo a ocupar os espaços da secretaria por longos anos quando poderia ir ao arquivo; outro de natureza jurídica – o acusado permanecerá com um processo aberto durante longos anos. Essa permanência lhe traz prejuízos de diversas naturezas – esse processo constará nos seus registros (viver sob a espada de um processo penal aberto já é um tipo de pena) e em muitas ocasiões a prisão preventiva é decretada (embora o art. 312 do CPP exija indícios de autoria para o decreto preventivo). Os constrangimentos serão muitos e sucessivos ao longo dos anos em razão de um processo inviável.

Talvez o único óbice que poderia ser suscitado seria a possibilidade de o acusado, quando localizado (e nem sempre o acusado quer fugir da acusação; às vezes, ele nem sabe da acusação – casos de inquérito por portaria, por exemplo) confesse a prática do crime. Pode fazer isso por uma questão de consciência. O seu defensor pode orientá-lo a negar, já que não há outas provas. Mas, ainda assim resolve confessar. Vamos aqui utilizar um raciocínio comum da jurisprudência, a saber, o acusado que nega, mas sua negativa não está em harmonia com as demais provas dos autos que comprova sua participação, deve ser condenado; agora, vamos inverter esse raciocínio, o acusado confessa (a hipótese suscitada aqui no final), mas sua confissão não está em sintonia com outras provas, pois, na verdade, nem há provas, sua confissão é incapaz de gerar uma condenação. É frágil demais só a confissão. Entender de forma diversa, é supervalorizar a confissão (regina probationum) – cremos que isso ficou no passado (ou não?) –, que pode ter outras pretensões diversas da revelação da autoria do crime.

Pensamos, ainda, em mais um argumento que poderia ser suscitado em sentido contrário: durante a suspensão poderá surgir alguma prova nova sobre a autoria capaz de tornar crível a acusação. A regular tramitação processual – o procedimento – é medida reguladora e garantidora às partes, incluindo, por evidente, o Estado. O direito de produzir prova não pode ficar aberto quase indefinidamente. Institutos como o da preclusão servem para isso mesmo para aqueles que sejam culpados, mas não foi possível produzir a prova necessária. Temos, então, que lidar com o que está em nossas mãos. Se há ou não prova no processo e naquele momento. Manter o processo suspenso sob o argumento da probabilidade de surgir alguma prova nos próximos anos chega a doer nos ouvidos. Seria o mesmo que não concluir o inquérito diante da possibilidade de surgirem novos elementos para a investigação. O desfecho de investigações e de processos, mormente os criminais, é dever do Estado, que não pode pairar sobre as pessoas todo o tempo com ares de suspeita. É daí que brota a exigência constitucional da duração razoável do processo (e da investigação).

O que sustentamos, enfim, é que nos processos enquadrados na discussão aqui lançada não se deve aguardar o transcurso do prazo de suspensão, nos termos do art. 366 do CPP, mas, ouvidas as partes (leia-se, quanto ao acusado, a defensoria pública), ser julgada improcedente a pretensão acusatória diante da inexistência ou insuficiência de prova quanto à autoria. É possível que o maior imbróglio surja a partir do instante em que o julgador perceba (aja) a situação descrita e o órgão ministerial não, sem requerer qualquer providência (inerte), numa verdadeira inversão – não muito estranha no nosso sistema processual. Contudo, pensamos, o juiz é garantidor do regular curso processual e dos direitos fundamentais para que não sejam violados; cabe, pois a ele, se não houver qualquer iniciativa das partes, fazer um juízo prévio e, constado o que aqui descrevemos, retomar o curso do processo, abrir às partes a oportunidade de manifestação e proferir decisão de natureza não condenatória. Se houver possibilidade de pronunciamento contrário, a suspensão deve ser mantida a fim de que o acusado seja localizado e ouvido; ou, reconhecida a incidência da prescrição diante do transcurso do prazo. Raciocínio que deve ser aplicado na hipótese de recurso e revisão da decisão. Essa medida que atende perfeitamente ao favor rei tem forte repercussão prática na rotina das secretarias, na vida do acusado e no trabalho policial com a redução de mandados de prisão não mais sustentáveis. É uma medida racionalizadora. Entender o contrário, parece-nos, é incidir em dupla ilegalidade: produzir provas ilegalmente (a maioria das antecipações praticadas não têm caráter urgente) e manter um processo suspenso sem provas apenas para cumprir a expressão do dispositivo legal sem levar em considerações razões outras como as aqui suscitadas.


Imagem Ilustrativa do Post: Columns // Foto de: Paul Haahr // Sem alterações

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