Suprimir sinal identificador de veículo automotor é crime?

06/07/2017

Por Airto Chaves Junior e Roberta Werner Pinto - 06/07/2017

O art. 311, caput, do Código Penal prevê que é crime adulterar ou remarcar sinal identificador de veículo automotor:

CP, Art. 311 - Adulterar ou remarcar número de chassi ou qualquer sinal identificador de veículo automotor, de seu componente ou equipamento: Pena - reclusão, de três a seis anos, e multa.(...)

No que se refere ao alcance da tipicidade de referido dispositivo, recai extrema discussão no âmbito jurisprudencial e doutrinário se a conduta de SUPRIMIR número de chassi ou qualquer sinal identificador de veículo automotor, de seu componente ou equipamento também se amoldaria ao tipo penal em questão.

Os partidários da corrente doutrinária que considera típica a conduta de supressão argumentam que o comportamento de suprimir pode abranger a deformação da numeração, fato que compreenderia a adulteração.[1] De outra parte, os que integram a posição que considera atípico o comportamento, sustentam que o verbo “suprimir” não integra o tipo, logo, não poderia ser considerado para efeito de criminalização, sobretudo, em atenção ao princípio da legalidade estrita.[2] Ainda, defendendo a ideia da impossibilidade de incriminação da conduta de “suprimir”, há autores que argumentam que a supressão de sinal identificador de veículo automotor figura ato preparatório para prática dos verbos “adulterar” e “remarcar”, pelo que, não seria adequado juridicamente considera-lo crime,[3] pois a mera supressão não alcançaria a fase dos atos executórios da infração.

No Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, há julgados em ambas as direções. As três primeiras Câmaras Criminais argumentam que a supressão se amolda perfeitamente ao núcleo do tipo “adulterar”.[4] A Quarta Câmara, de outra parte, já entendeu de forma contrária. Em abril de 2013, por exemplo, decidiu absolver o acusado pela prática do crime previsto no artigo 311 do Código Penal. O argumento utilizado pela Câmara[5] foi o de que condenar o acusado pela prática de supressão de sinal de veículo automotor ofenderia a regra constitucional da Estrita Legalidade Penal, uma vez que esse comportamento não é previsto no tipo penal e entendê-lo como crime, implicaria em analogia in malam partem. No entanto, julgados mais recentes criminalizam a prática da supressão.[6]

Dos Tribunais Superiores, não há precedentes do Supremo Tribunal Federal a respeito da matéria. Toma-se em conta, por isso, a orientação do Superior Tribunal de Justiça. Deste Tribunal, extrai-se a orientação de que a supressão de chassi ou qualquer sinal identificador de veículo automotor, de seu componente ou equipamento, também se amolda ao tipo penal do art. 311 do Código Penal já que, conforme os precedentes verificados, o verbo “suprimir” se adequaria à “adulteração”.[7]

Propomos, neste breve texto, analisar a atipicidade penal da conduta de “suprimir” número de chassi ou qualquer outro sinal identificador de veículo automotor a partir desses dois campos: o primeiro, mais voltado ao aspecto formal, sob o prisma da legalidade estrita; o segundo, mais alinhado ao campo da tipicidade material, sob a ótica da ausência de ofensa ao bem jurídico penalmente tutelado, qual seja, a fé pública.

Com relação ao primeiro campo de avaliação, inicialmente, registra-se que o tipo penal previsto no art. 311 do Código Penal é classificado como norma penal incriminadora. Essa espécie normativa tem a função de definir as infrações penais, proibindo (crimes comissivos) ou impondo (crimes omissivos) à prática de condutas sob a ameaça expressa e específica de pena, pelo que, são consideradas normas penais em sentido estrito. [8]

O Princípio da Reserva Legal ou da Legalidade Estrita encontra previsão no art. 5º, XXXIX, da CRFB/88 e serve de dispositivo de abertura no Código Penal Brasileiro (art. 1°). O referido mandamento constitucional, muito embora tratado em sua nomenclatura na forma de “princípio”, fora incorporado aos Direitos Fundamentais como regra de Direito Constitucional, razão pela qual não permite qualquer ponderação do intérprete. A razão é simples: em caso de eventual colisão[9] entre essa regra (tida com um mandamento definitivo) e um princípio (posição a ser ponderada, prima facie)[10], prevalecerá a norma contida no art. 5º, inciso XXXIX, da CRFB/88, pois o limite da tarefa de interpretação será a de desvendar o sentido do texto sem ir para além, e muito menos contra, o teor literal do preceito[11]. É que as regras jurídicas, ainda que de natureza constitucional, são aplicáveis como todas as demais regras jurídicas: “São sempre aplicáveis sem o recurso a ponderações e, são, neste sentido, normas livres de sopesamento[12].

Portanto, caso o legislador quisesse tipificar a conduta de quem “suprime” sinal identificador de veículo automotor, de seu componente ou equipamento, teria ele inserido referido núcleo no tipo penal. Como não o fez, referida conduta deve ser considerada atípica, dando-se máxima efetividade aos Direitos e Garantias Fundamentais, sobretudo, à regra contida no inciso XXXIX, do art. 5º, da CRFB/88.

Como consequência disso, é certo dizer que a analogia é proibida no trato de normas penais incriminadoras. Aliás, conforme bem lembra Paulo Cesar Busato, “na maioria das Constituições políticas de nossa cultura jurídica, a proibição da analogia da lei penal é considerada como uma garantia da função jurisdicional”[13]. Em miúdos: sob a ótica da legalidade estrita, de fato, impossível encontrar tipicidade formal na conduta de suprimir sinal identificador de veículo automotor.

No que se refere ao segundo campo de análise, ou seja, com relação ao Bem Jurídico penalmente tutelado pela norma do art. 311 do Código Penal, igualmente, não pode ser considerada típica a supressão de sinal identificador de veículo automotor. Explicamos: o bem jurídico precipuamente protegido aqui é a Fé Pública. A Fé Pública, para este tipo, é representada pela confiança que se deve verificar do sinal de identificação do veículo automotor. Em outras palavras, a relevância desse bem jurídico resulta da credibilidade da procedência que esses sinais fornecem a partir de suas leituras para a identificação de determinado veículo automotor. Tanto o é, que Cezar Roberto Bitencourt diz que, com a incriminação das condutas “adulterar” e “remarcar”, busca-se “especialmente a proteção da propriedade e da segurança no registro de automóveis”[14].

A partir disso, reflita: seria possível afetar o bem jurídico “fé pública” com a mera supressão de sinal de identificação de veículo automotor? Imagine que determinada pessoa, dolosamente, fazendo-se uso de um poderoso ácido corrosivo, suprime completamente a numeração de chassi de algum veículo. Provocaria, este comportamento, lesão à fé pública? Seria possível ludibriar eventual futuro adquirente do automóvel com essa prática? As respostas transitam, todas, na esfera do negativo. Isso porque, o bem jurídico penalmente protegido pelo tipo penal do art. 311 do Código Penal só é atingido com a “adulteração” ou com a “remarcação” desse sinal. Só assim seria, também, possível iludir eventual pessoa que pretendesse identificar do veículo adulterado ou remarcado, sobretudo, no que se refere à procedência do bem.

Veja-se que o bem jurídico é o elemento primário da estrutura do tipo, ao qual se devem referir a ação típica e todos os seus demais componentes. Em obra referência sobre o tema, Juarez Tavares[15] anota que o bem jurídico condiciona a validade da norma e, ao mesmo tempo, subordina sua eficácia à demonstração de que tenha sido lesado ou posto em perigo. Neste passo, a existência de um bem jurídico e a demonstração de sua efetiva lesão ou colocação em perigo constituem pressupostos indeclináveis de injusto penal.

Ainda, conforme o autor[16], a criminalização (ainda que no âmbito secundário) de condutas não pode ser confundida com as finalidades políticas de segurança pública, porque se insere como uma condição do Estado Democrático, baseado no respeito dos Direitos Fundamentais e na proteção da pessoa humana. Isso quer dizer que, em um Estado Democrático, o bem jurídico deve constituir um limite ao exercício da política de segurança pública.

Resumidamente, a supressão não comporta potencialidade para lesionar o bem jurídico, pois não modifica a sua regular identificação, tampouco engana eventuais adquirentes do veículo no que se refere a credibilidade de sua origem.

Na verdade, ao criminalizar a mera “supressão”, o que os tribunais fazem é antecipar a punição à fase de atos preparatórios para a prática do crime previsto no art. 311 do Código Penal, incorporando uma política criminal cada vez mais repressiva e sem qualquer amparo dogmático. E isso é facilmente perceptível quando da análise do iter criminis (fases percorridas pelo agente na ação delitiva).

Esse itinerário é dividido em duas etapas, uma interna (cogitação) e outra externa (atos preparatórios, atos de execução e consumação). Conforme o Direito Penal Brasileiro, a ação humana só passa a ser penalmente relevante quando adentra na fase de execução (3ª fase da etapa externa), pois o inciso II do artigo 14 do Código Penal asseverou que o crime é tentado quando, “iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente”, deixando de lado as fases de cogitação e de atos preparatórios.

É claro que o legislador tipifica, independentemente, certos atos preparatórios, o que dá lugar a uma tipicidade própria (CP, art. 288, por exemplo). Não é, porém, o que se tem aqui. Conforme se verifica, o verbo “suprimir” sinal de identificação de veículo automotor não figura nem comportamento integrante do tipo do art. 311 do Código Penal e nem tem tipicidade própria em outro dispositivo da nossa legislação.

A distinção entre as fases de preparação e execução pode ser diagnosticada quando o agente perpetra a conduta descrita em qualquer dos núcleos do tipo[17], dando início a execução da ação delitiva do art. 311, no caso, “adulterando” ou “remarcando” o sinal identificador do veículo. Diante disso, a mera “supressão” só tem lugar na fase de atos preparatórios para a prática desses núcleos, tendo em vista que a remarcação só pode ser realizada após a devida supressão total do sinal identificador original e, ao seu turno, a adulteração é realizada, em regra, após a supressão parcial desse mesmo referencial.


Notas e Referências:

[1] A exemplo de: ISHIDA, Válter Kenji. Curso de Direito Penal. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 649; TELES, Ney Moura. Direito Penal: parte especial. v. 3. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 307; MIRABETE, J. F.; FABBRINI, R. N. Manual de direito penal: parte especial. v. 3. 28ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 262; FRANCO, Alberto Sival. et al. Código Penal e sua interpretação: doutrina e jurisprudência. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 1429.

[2] São partidários dessa orientação doutrinária: GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, v. III. 13. ed. Niterói, Rio de Janeiro: Impetus, 2016. p. 681; NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 1152; QUEIROZ, Paulo. Curso de Direito Penal: parte especial. Salvador: JusPODIVM, 2013, p. 807.

[3] DELMANTO, Celso. et al. Código Penal Comentado. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 776.

[4] A exemplo de: TJSC, Apelação Criminal n. 2015.030975-3, de Coronel Freitas, rel. Des. Carlos Alberto Civinski, j. 10-11-2015; TJSC, Apelação Criminal (Réu Preso) n. 2012.006304-7, de Imbituba, rel. Des. Sérgio Izidoro Heil, j. 11-09-2012; TJSC, Apelação n. 0006392-23.2011.8.24.0067, de São Miguel do Oeste, rel. Des. Leopoldo Augusto Brüggemann, j. 13-09-2016.

[5] TJ-SC - APR: 20120530311 SC 2012.053031-1 (Acórdão), Relator: Rodrigo Collaço, Data de Julgamento: 04/09/2013, Quarta Câmara Criminal Julgado, Data de Publicação: 16/09/2013 às 07:26. Publicado Edital de Assinatura de Acórdãos Inteiro teor   Nº Edital: 7376/13 Nº DJe: Disponibilizado no Diário de Justiça Eletrônico Edição n. 1716 - www.tjsc.jus.br

[6] Neste sentido: TJSC, Apelação Criminal n. 0003744-87.2015.8.24.0113, de Camboriú, rel. Des. Roberto Lucas Pacheco, j. 27-04-2017; TJSC, Apelação Criminal n. 2014.027983-5, de Tubarão, rel. Des. Newton Varella Júnior, j. 16-07-2015; TJSC, Apelação Criminal n. 2011.049544-7, de Chapecó, rel. Des. Newton Varella Júnior, j. 03-07-2014.

[7] STJ, 5ª Turma: REsp 1035710/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 21/06/2011, DJe 28/06/2011; AgRg no REsp 1509382/SC, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 14/02/2017, DJe 17/02/2017; Da 6ª Turma: AgInt no AREsp 373.458/RS, Rel.  Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 05/05/2016,  DJe 17/05/2016.

[8] Em contrapartida, as normas penais não incriminadoras são “aquelas que estabelecem regras gerais de interpretação e aplicação das normas penais em sentido estrito, repercutindo tanto na delimitação da infração penal como na determinação da sanção penal correspondente. Representam autênticas garantias dentro do procedimento de atribuição de responsabilidade penal, na medida em que pautam a atividade jurisdicional no exercício do jus puniendi estatal.” Ver: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. 17. Ed. São Paulo: Saraiva, p. 214.

[9] Cabe anotar que, conforme Robert Alexy, não há conflito normativo entre regras e princípios. Isso porque quando a interpretação leva a crer que existe contradição normativa entre eles, deve sempre prevalecer norma manifestada por meio de uma regra (Ver: ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais, Balanceamento e Racionalidade. Ratio Juris. Vol. 16, n. 2, junho de 2003, p. 132);

[10] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. 1 ed. Brasileira. 2. ed. portuguesa. Coimbra/São Paulo: Coimbra/Revista dos Tribunais, 2008, p. 159.

[11] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra/Portugal: Almedina, 1993, p. 136.

[12] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Vergílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 123.

[13] BUSATO, Paulo Cesar. Direito Penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 52.

[14] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. Vol. 4. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

[15] TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 2. Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 198-199.

[16] TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 2. Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 201.

[17] Trata-se da corrente objetivo-formal defendida por parte da doutrina. Ver: PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 92-93.


airto-chaves-juniorAirto Chaves Junior é Doutor em Ciência Jurídica; Doctor em Derecho de la Universidad de Alicante, Espanha; Professor titular do Curso de Graduação em Direito da Univali nas disciplinas de Direito Penal e Direito Processual Penal; Professor de Direito Penal da Escola do Ministério Público do Estado de Santa Catarina (EMPSC); Professor de Direito Penal da Escola da Magistratura do Estado de Santa Catarina (ESMESC); Professor de Direito Penal da Escola da Magistratura do Trabalho de Santa Catarina (AMATRA 12); Advogado Criminalista e Sócio do Escritório “Chaves Jr. Advocacia Criminal”, com sede em Itajaí/SC. E-mail: airto@chavesjrcriminal.com.br


Roberta Werner Pinto. . Roberta Werner Pinto é Estudante de Direito da Universidade do Vale do Itajaí; estagiária do Escritório “Chaves Jr. Advocacia Criminal”, com sede em Itajaí/SC. E-mail: roberta@chavesjrcriminal.com.br .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito. 


 

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