Superlotação do cárcere: um problema para o Estado?

27/02/2015

Por Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo - 27/02/2015

Discutindo sobre as causas do problema e refletindo sobre as variantes que o caracteriza

Muito se tem discutido, nos últimos tempos, em sede doutrinária ou não, sobre a questão da superlotação das penitenciárias. Sempre que tal tema vem à tona, tem-se a falsa impressão de que esta circunstância representa, de fato, um problema para o Estado. Em verdade, tal circunstância consiste no máximo em um flagrante e reiterado descompasso entre os Poderes do Estado. Isto porque, enquanto o Poder Legislativo produz, de forma compulsiva, cada vez mais novos tipos penais e o Poder Judiciário, por seu turno, é pressionado a produzir em escala industrial, mais e mais, sentenças condenatórias, com penas cada vez mais exasperadas, o Poder Executivo é cercado por um conjunto de fatores que desestimulam a construção de novos estabelecimento penais.

Tais fatores é que precisam ser avaliados de forma clara quando se reflete sobre a superlotação. Mas tal análise é sonegada pela maior parte da doutrina que se debruça a estudar a execução penal. O motivo que enseja tal sonegação parece ser a circunstância de que uma análise para além dos limites dogmáticos da Lei nº7.210/84, traz dificuldades aos setores mais conservadores da doutrina e da jurisprudência. Dificuldades que não se limitam a um problema de falta de atualização de determinados profissionais do Direito, a exemplo dos juízes que militam na execução penal, mas que derivam de outros fatores como, por exemplo, a acomodação de determinados segmentos da doutrina, ou, ainda, a difusão de uma dada ideologia de índole predominantemente repressora.

Entre os fatores que ensejam a inércia do Poder Executivo no que toca à superlotação, merecem destaque, dentre outros, os elevados custos, político e econômico, que a construção de novos estabelecimentos penais pode propiciar. Custos políticos que vão desde o desinteresse eleitoral da classe política na edificação de novos estabelecimentos, vez que condenados não votam, até o eventual comprometimento político que medidas paliativas ao problema da superlotação podem ensejar, como, por exemplo, a prestação de contas à sociedade civil por força da elevação dos custos com segurança pública em prejuízo de novos investimentos em educação. Investir em novos estabelecimentos penais não é matéria de capa no mais ordinário e sensacionalista dos folhetins.

Logo, não é interesse dos órgãos do Poder Executivo investir alguns milhões de reais em novos estabelecimentos penais. Convém lembrar que, como órgãos políticos que o são, os órgãos do Poder Executivo encontram-se sempre sujeitos às interferências políticas e às pressões advindas dos organismos de mídia (televisão, internet, dentre outros), e a essa circunstância não se encontram excluídos nem o Governador do Estado, nem o Diretor dos estabelecimentos penais, nem muito menos a estrutura policial como um todo. Não é por outra razão que a polícia sempre integrou os quadros do Poder Executivo, afinal tornar a polícia completamente independente do Poder Executivo, é, no mínimo, reduzir, em muito, a mobilidade de tal Poder.

Como se vê, então, quando o tema é superlotação, não se pode continuar a acreditar na fábula da harmonia da tripartição de poderes, até porque, como toda história de ninar, tal fábula encobre a moral da história: a interferência nociva de um quarto poder em meio à conturbada relação mantida entre os demais, qual seja, a influência dos meios de comunicação de massa. Enquanto a mídia coloca em cheque a credibilidade do Poder Judiciário e põe em dúvida a necessidade de manter e expandir o Poder Legislativo, esta dissemina, em regra, a idéia de que investir na população carcerária e em novos estabelecimentos é dilapidar o patrimônio público. E é neste cenário tendencioso que germinam idéias liberais, como a privatização de estabelecimentos penais, tudo de sorte a reduzir a participação do Estado em custos que parecem ser, cada vez mais, “desnecessários”. Eis o maravilhoso mundo novo que o neoliberalismo a todos reserva.

Mas se o Poder Executivo tem a sua quota-parte de responsabilidade, o Poder Judiciário e o Ministério Público, dentre outros setores estatais, também as possui. Isto porque, se em um dado estabelecimento penal encontram-se amontoados o dobro do número máximo de condenados que este deveria hospedar, forçoso é admitir que tal situação conta, no mínimo, com a omissão conveniente e cúmplice do membro do Ministério Público que deixou de adotar medidas no sentido de pleitear a interdição do estabelecimento e com a parcimônia oportunista do magistrado que fechou os olhos para tal realidade.

Talvez no dia em que condutas como essas venham a ser punidas severamente e acarretem a responsabilidade civil objetiva do Estado e a responsabilidade criminal das autoridades públicas envolvidas pela prática de crime de tortura (Lei nº9.455/97), elas deixem de acontecer com tanta freqüência como ocorrem nos dias atuais, mas, até lá, não se deve cultivar falsas esperanças quanto a uma possível mudança de comportamento por parte do sistema penal[2], pois, do contrário, corre-se o risco de se passar uma vida inteira em busca do mundo encantado de Oz.

O certo é que não há uma só causa para o problema da superlotação. Afinal problemas, quando são problemas, não possuem uma única razão, original e fundadora, que os justificam e explicam. Somente nas histórias em quadrinhos é que existem soluções mágicas para problemas espetaculares. Contudo, convém lembrar que o Direito Penal não possui uma “varinha de condão” capaz de resolver, de uma hora para outra, o problema da superlotação. Até porque nada leva crer que a superlotação seja de fato um problema para o sistema penal, pelo contrário, antes se mostra uma excelente ferramenta a serviço da docilização do corpo do condenado, principalmente quando um lugar no chão da cela se torna um luxo para poucos hóspedes. Nesse sentido, então, a superlotação faz parte da história de sucesso do cárcere[3], tanto porque torna mais fértil o solo no qual são cultivadas as sementes da microfísica do poder[4] quanto porque se mostra útil a aprofundar as raízes do sistema penal.

É em meio a este cenário, que os agentes do Estado (agentes carcerários) criam dificuldades (o contato entre visitantes e condenados) para vender facilidades (compra de gêneros alimentícios, dentre outros itens) e, com o passar dos anos, vai se constituindo uma sociedade paralela com regras e valores próprios[5]. Uma sociedade que seleciona seus líderes e os condecora. E enquanto esta sociedade se edifica pela reincidência, os habitantes do mundo de Alice continuam a acreditar na fábula da ressocialização. Mas, como é possível ressocializar alguém, o retirando da sociedade[6]? Como se vê, não é apenas nos sonhos de Freud que os absurdos acontecem. Eles, os absurdos, são mais freqüentes do que se imagina. Bem vindo ao mundo real!

Quando a pena se tornou uma tortura, o Estado perdeu a legitimidade para continuar a aplicá-la. O que distingue a violência da pena da violência do delito é o esforço de racionalidade do Estado para que esta não se confunda com vingança (Figueiredo Dias). Mas quando o Estado se torna o carrasco que impõe ao corpo do condenado o flagelo da penitência em nome de uma suposta indulgência, o Estado acaba sepultando qualquer discurso de justificação do castigo. Mas a pergunta é: a superlotação compromete qualquer discurso de justificação da pena ou a pena não tem qualquer justificação? A pena não passa de um ato de irracionalidade, por meio do qual o homem deixa aflorar a sua agressividade. Isto porque, se pena é retribuição, nos moldes da lei de talião, então, a sua melhor denominação é vingança.

Por outro lado, se pena é prevenção, a sua melhor designação é exemplificação ou, talvez, coisificação. Mas se pena não é nem uma coisa nem outra, mas, sim, ressocialização, então, o seu melhor nome é privação, não apenas da liberdade, mas, principalmente, da livre manifestação. Quem deu ao Estado o poder de privar o indivíduo da possibilidade de escolha por uma vida delinqüente? Se há livre-arbítrio, e esta é outra discussão[7], para onde ele foi, quando se impõe a todo indivíduo um programa de ressocialização? Como se vê, a pena não é algo racional, ou que tenha alguma justificativa racional, pois se o fosse, a guerra também o seria. Tanto na guerra quanto na pena o homem manifesta a sua autenticidade animal. Hobbes estava certo quando afirmou que o “homem é o lobo do homem”[8].

Mas, por favor, não entendam mal estas palavras. Não é a pena que é irracional, mas o homem que é animal. Não é a pena que não tem justificativa, mas é o homem que cria, por meio da linguagem, a sua própria armadilha. Desde Nietzsche[9], já se sabe que a linguagem é um catálogo de metáforas extintas. Eis, então, o que é a razão: uma criança levada que joga dados com a linguagem e incita a imaginação. O que poderia ser, então, a pena? Uma ferramenta em nome da segurança jurídica? E a superlotação, o que seria? Uma distorção do sistema, uma anomalia? As aparências enganam! Afinal, para toda culpa é preciso uma desculpa. E como se sabe, a culpa sempre é do outro (Freud). Com a pena e a superlotação, não seria diferente. Não é do Estado a culpa, mas, sim, do delinqüente. E o cárcere, o que seria? Um depósito de gente[10]. E, neste contexto, a superlotação não é um problema, mas, sim, estratégia inteligente. Mas de quem? Do Estado? Da sociedade excludente? Não, do sistema de poder que age silenciosamente. Novos estabelecimentos seriam, então, a solução para a superlotação?

Novos Estabelecimentos é a Solução?

Novos estabelecimentos penais não representam a solução para o problema da superlotação, mas apenas uma medida paliativa, uma estratégia de administração. Uma estratégia que se vale de outros artifícios, como, por exemplo, a pena restritiva de direito, o regime aberto quanto ao cumprimento da pena privativa de liberdade, o livramento condicional, a suspensão condicional da pena, a pena de multa e a transação penal. Todas elas medidas de um Estado pressionado pela paranóia da segurança absoluta. Paranóia que se dissemina pela sociedade ocidental capitalista como um vírus que infecta o mais protegido dos sistemas de informação. Paranóia que parece ignorar que a segurança não é um dado passível de comprovação, mas apenas, e nada mais, que uma sensação[11].

Eis, então, a grande questão: não seria a superlotação parte de um audacioso plano de vigia, controle e dominação? Difunde-se o terror, incrementa-se a marginalização, deixa-se agravar o “problema” da superlotação e abandona-se, à própria sorte, o cidadão. E tudo é por acaso e sem a menor intenção. Será mesmo? Será que não interessa alguém, ou alguns, esse “clima” de insegurança e de apreensão? Não haveria setores da sociedade que se beneficiariam com essa ideologia do terror e de culto à vitimização[12]? Toda boa história tem uma final surpreendente, e com a história do cárcere não é diferente. Quase sempre o melhor esconderijo é aquele que está mais aparente, pois o inimigo não mora ao lado, mas bem de frente. Nem sempre é possível distinguir a polícia do ladrão, o mocinho do vilão. O homem, e como tudo que dele deriva, é complexo demais, para uma simples solução.

Mas, a título de proposta, o que se propõe é descriminalização de muitos delitos, redução do tempo de pena quanto a outros, alteração da iniciativa da ação penal de outros tantos, tudo de sorte a diminuir o rol de candidatos ao cárcere. Todavia, como há uma imensa diferença entre a lei penal e o sistema penal[13], tais medidas não se mostram suficientes, até porque as estatísticas criminais atuais já revelam que a imensa maioria da população carcerária decorre de determinados tipos penais preferenciais[14]. Ou seja, mais leis penais não implicam necessariamente em uma maior diversidade quanto às condenações criminais[15]. Assim como, mais estabelecimentos penais não implicam em mais segurança (Jeferry).

Ademais, o conflito no qual consiste o crime, não é resolvido por meio do processo nem através da pena, estes antes se mostram como estratégias estatais de administração do conflito real e de solução do conflito artificial selecionado pelo sistema[16]. Isto porque a sociedade não é um ente superior aos indivíduos que a constitui, na qual o conflito é visto como uma célula cancerosa. Se o homem é um ser em conflito consigo mesmo, forçoso é, então, reconhecer que a sociedade não é um nirvana, mas, sim, uma arena de disputas. Mudam-se os animais, mantém-se a selva.

Aliás, tudo leva a crer que, mesmo com a adoção de tais medidas legais, não haveria uma redução da população carcerária, vez que os agentes do Estado são os maiores responsáveis pela proliferação do crime[17]. Seja porque isso valoriza determinadas carreiras públicas, seja porque são eles que selecionam a clientela penal a partir de um estereotipo bem demarcado[18]. É preciso ter sempre um grande “marginal” a prender, afinal para um dia chegar a um cargo de destaque na Administração Pública é preciso ter feito o “dever de casa”, isto é, é preciso um bom troféu para exibir diante das câmeras. Em suma, as penitenciárias são como supermercados da autopromoção, engaiolam-se alguns indigentes em troca de alguns minutos na televisão.

Conclusão

Vê-se, assim, que enquanto o sistema penal operar não é possível eliminar o problema da superpopulação carcerária, mas, no máximo, contê-lo. Se nas fábricas de produzir sentença as máquinas nunca param, no cárcere sempre haverá espaço para mais hóspedes[19]. Afinal, o que seria de todos nós se não existisse o Estado, não é mesmo? Eis o milagre da multiplicação! Não temas irmão, pois os homens de boa vontade, os homens do Estado manterão todos à salvo dos pecadores que trazem péssimos exemplos. Há um lugar no reino dos céus para ti. Mas para que ele seja assegurado é preciso que tu ajudes, com sua omissão, o Estado na tarefa de amontoar e torturar os hereges. Não se deve ascender a fogueira para queimá-los. É preciso fazer com que eles experimentem a dor, de forma lenta e constante, pois a morte é para os heróis e os mártires, e a tortura é para os cães. Os cães que ladram e de vez enquanto mordem, mas que não passam de cães. Deus tenha piedade de nós!

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[2] ZAFFARONI, Eugênio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro & SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Teoria Geral do Direito Penal. 2ª edição. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 131.

[3] FOUCAULT, Michel: Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1993.

[4] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

[5]MELLOSSI, Dario & PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica - As origens do sistema penitenciário (séculos XVI – XIX). Rio de Janeiro: Revan, 2006.

[6] SANTOS, Juarez Cirino dos. Criminologia Radical. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

[7] ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica. Para uma teoria da dogmática jurídica. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006. FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito. Reflexões sobre o Poder, a Liberdade e a Justiça. São Paulo: Atlas, 2002.

[8] HOBBES, Thomas. O Leviatã. Tradução: Alex Martins. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 83.

[9] NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a verdade e a mentira. São Paulo: Hedra, 2008.

[10] ANIYAR DE CASTRO, Lola. Los muertos de la democracia: projecto autoritario de la democracia y sus efectos generadores de represividad en las representaciones sociales. In. Democracia y Justicia Penal, s. l., 1992, p. 239 – 254.

[11] HASSEMER, Winfried. Três temas de direito penal. Porto Alegre: ESMP, 1993.

[12] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal - Introdução à Sociologia do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos, Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1999.

[13] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan,2007.

[14] CARVALHO, Salo. Teoria Agnóstica da Pena: O Modelo Garantista de limitação do Poder Punitivo in Crítica à Execução Penal –Doutrina, Jurisprudência e Projetos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p.23.

[15] DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

[16] COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda. O papel do novo juiz no processo penal in Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 03-55.

[17] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

[18] DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006.

[19] MELLOSSI, Dario & PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica - As origens do sistema penitenciário (séculos XVI – XIX). Rio de Janeiro: Revan, 2006.

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bernardoMestre em Direito Público pela UFBA – Universidade Federal da Bahia na Linha de Limites do Discurso com a dissertação: O ato de decisão judicial – uma irracionalidade disfarçada. Pós-Graduado em Ciências Criminais pela Fundação Faculdade de Direito vinculada ao Programa de Pós-Graduação da UFBA. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL. Professor de Direito Penal da Universidade Salvador – UNIFACS; Professor de Processo Penal da Universidade Católica do Salvador – UCSAL.

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Imagem ilustrativa do post: Storm Crowd // Foto de: JD Hancock // Sem Alterações

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