Subversão normativa?

25/05/2016

Por Aluísio Celso Affonso Caldas - 25/05/2016

Contextualização

A Constituição brasileira apresenta a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos existenciais do Estado (art. 1º, III), e estabelece que os direitos e garantias presentes no Texto não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte (art. 5º, § 2º). O § 3º, do referido art. 5º, determina que os tratados internacionais de direitos humanos incorporados à ordem jurídica mediante aprovação em dois turnos, em cada casa legislativa, com observância do quorum qualificado que especifica, equivalem-se às emendas constitucionais. Não obstante os tratados internacionais de direitos humanos ocuparem posição hierárquica diferenciada no ordenamento jurídico em decorrência do processo de internalização adotado, parece evidente a adoção do princípio da máxima efetividade a essas normas.

As normas jurídicas são analisadas segundo sua validade, além de sua vigência e eficácia. A validade evidencia a compatibilidade da norma com o sistema em que ela se encontra inserida, notadamente observando o conteúdo das normas que lhe são hierarquicamente superiores, quer quanto ao aspecto formal da visão kelseniana, quer quanto aos fins propostos no campo moral, consoante Tércio Sampaio Ferraz Junior, a partir do que se observa a genuína compatibilidade vertical entre a norma e a ordem jurídica. E isto se afirma, inclusive, em relação à internalização de tratados internacionais de direitos humanos recebidos no patamar de normas infraconstitucionais, bem como em relação às alterações impostas ao direito interno em decorrência dessas incorporações do direito internacional. Nesse cenário surgem muitas questões que reclamam um olhar jurídico mais atento, mormente o novel direito sugere um esvaziamento substancial de comandos constitucionais, ou a estes se opõem, despertando a comunidade para o debate acerca da questão da subversão normativa.

A prisão do depositário infiel

A partir de 2008, relevantes discussões foram travadas no âmbito do Supremo Tribunal Federal acerca da natureza jurídica e da posição hierárquica dos tratados internacionais sobre direitos humanos, no contexto do ordenamento jurídico nacional, com destaque para as decisões proferidas no julgamento do RE n° 466.343/SP e do HC 87.585/TO, relacionados à controvérsia da possibilidade constitucional de prisão do depositário infiel e a vedação a essa espécie de prisão civil na Convenção Americana de Direitos Humanos. No primeiro julgado, na sessão plenária de 22.11.2006, o Ministro Gilmar Mendes compreendeu que os tratados internacionais de direitos humanos recepcionados sem as formalidades estabelecidas no § 3º, do art. 5º, encontram-se em um nível hierárquico intermediário, supralegal e infraconstitucional, eis que apresentam substância constitucional de direitos fundamentais, conquanto não se revistam da forma estabelecida no Texto para a alteração da Constituição. O status de norma constitucional resta reservado, assim, para os tratados de direitos humanos aprovados na forma do §3º, do mesmo artigo 5º, do texto constitucional.

Não obstante os avanços verificados com a nova postura do Supremo Tribunal Federal quanto ao grau hierárquico normativo atribuído aos tratados internacionais de direitos humanos aprovados sem as formalidades descritas no § 3º, do artigo 5º da Constituição, vale dizer, supralegal e infraconstitucional, é notória a contradição verificada entre a vedação da prisão civil do depositário infiel, estabelecida na Convenção Americana de Direitos Humanos, e o permissivo dessa prisão civil, estabelecido no art. 5º, LXVII, da Constituição brasileira. É dizer, enquanto o processo de internalização do tratado internacional determina o patamar hierárquico a ser atribuído à norma, privilegiando a forma em relação à substância, a norma de hierarquia inferior nega efetividade àquela de superior patamar hierárquico, privilegiando a substância em relação à forma.

Havendo sido recepcionada como norma infraconstitucional, a norma hierarquicamente inferior não poderia negar efetividade ao que afirma a norma de hierarquia constitucional e, portanto, superior. E mesmo que busque afirmar a máxima efetividade de um direito materialmente fundamental, conquanto infraconstitucional, essa situação parece caracterizar flagrante subversão normativa não contemplada na ortodoxia jurídica adotada.

A questão da incapacidade civil

Noutro cenário, a Lei Nº 13.146, de 06 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), editada com fundamento na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, produziu alterações diversas na ordem jurídica infraconstitucional, inclusive na Lei nHYPERLINK "http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm"oHYPERLINK "http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm" 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). O art. 3º do Código Civil apresentava a seguinte redação: "São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I – os menores de dezesseis anos; II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade."

Com o advento da Lei Nº 13.146/2015, as hipóteses legais de reconhecimento da incapacidade civil absoluta foram reduzidas à situação do menor de 16 anos de idade (art. 114), sob o argumento da plena inclusão social e em prol da dignidade de todas as pessoas com deficiência alcançadas pela norma anterior, as quais passaram a ser plenamente capazes para o Direito Civil. Não obstante os avanços observados com a incorporação da aludida Convenção, bem como os propósitos humanitários que revestem a Lei Nº 13.146/2015, o art. 15, II do texto constitucional já dispunha sobre a incapacidade civil absoluta como forma de perda ou suspensão de direitos políticos. Por evidente, não cabe à Constituição dispor sobre as características da capacidade civil e de sua restrição, mas à norma infraconstitucional, mormente por se tratar de norma de eficácia limitada. Contudo, a restrição ao exercício de determinados deveres em decorrência do reconhecimento da incapacidade civil, relativa ou absoluta, ao contrário do que possa eventualmente parecer, constitui-se em instrumento de tutela, de proteção da pessoa em razão da vulnerabilidade, transitória ou definitiva, de sua saúde física e/ou psíquica, o que se afirma como garantia fundamental com expressa vedação constitucional à sua abolição, total ou parcial, ex vi do disposto no art. 60, § 4º, IV, do Texto Maior.

Portanto, ao reduzir as hipóteses de reconhecimento da incapacidade civil absoluta, no afã de normatizar os comandos constitucionais relativos à tutela da pessoa com deficiência, a Lei Nº 13.146/2015, em seu art. 114, esvaziou o conteúdo da proteção instituída pela norma do art. 15, II, da Constituição brasileira, na medida em que reduziu a hipótese de incapacidade civil absoluta ao menor de 16 anos de idade. Ora, ao afirmar que a incapacidade civil absoluta é hipótese de perda ou suspensão de direitos políticos, a norma constitucional está preservando eventuais prejuízos que possam advir ao ali considerado absolutamente incapaz, inclusive, o que se afirma como verdadeira garantia constitucional. Mas, ao contrário, quando a norma infraconstitucional reduz as hipóteses de reconhecimento da incapacidade civil absoluta apenas ao menor de 16 anos de idade, esvazia o conteúdo da norma constitucional protetiva, negando-lhe eficácia, na medida em que o menor de 16 anos de idade jamais foi detentor de capacidade civil para que se lhe incida a perda ou suspensão. E não se trata aqui de mera incompatibilidade formal kelseniana, mas essa contradição afronta a substância moral da ordem jurídica afirmada a partir da Constituição, conclusão essa verificada na gritante restrição às garantias fundamentais da pessoa humana que a norma infraconstitucional veicula, nesse particular do seu art. 114, negando o fundamento da dignidade da pessoa humana do Estado brasileiro e, ao mesmo tempo, contrariando cláusula pétrea afirmada no art. 60, § 4º, IV, do texto constitucional.

Em conclusão

Esta breve reflexão é apresentada com o propósito de fomentar o debate sobre aparente contradição identificada nos desdobramentos jurídicos advindos da incorporação de tratados internacionais de direitos humanos à ordem jurídica interna.

A priori, portanto, verifica-se consubstanciada a hipótese de subversão normativa diante da submissão da norma constitucional, de hierarquia superior, à norma infraconstitucional, ordinariamente de patamar hierárquico inferior. Essa inversão de valores nega a estrutura de validade das normas que integram a ordem jurídica, a qual reclama que as normas de hierarquia inferior guardem compatibilidade com as normas de hierarquia superior.


Notas e Referências:

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. (trad. de Virgílio Afonso da Silva). 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. (trad de João Baptista Machado). 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2011.

https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15875/14364 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A Validade das Normas Jurídicas. Universidade Federal de Santa Catarina: Revista Seqüência, Nº 28. Acesso realizado em 01.04.2016.


Aluísio Celso Affonso CaldasAluísio Celso Affonso Caldas é formado em Direito pela Universidade Federal do Amazonas (1987), pós-graduado em Direito Processual pela Fundação Getúlio Vargas (1999) e Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas (2004). Atua como docente no Curso de Direito da Faculdade Martha Falcão, desde 2007, e da Universidade Nilton Lins, desde 2000, ambas em Manaus-AM. É Delegado de Polícia Civil no Amazonas, desde o ano de 1989, já havendo atuado como Secretário Adjunto de Segurança Pública e Secretário Adjunto da Região Metropolitana de Manaus. Atuou como professor convidado do Departamento Penitenciário Nacional e Estadual, da Universidade do Estado do Amazonas, bem como em cursos da pós-graduação de diversas Instituições de Ensino. Hoje exerce o cargo em comissão, sem simbologia, de Diretor Adjunto do Instituto Integrado de Ensino de Segurança Pública – IESP/Am.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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