Streck e Morais da Rosa na Fórmula Um Hermenêutica

06/12/2015

Por Claudio Melim - 06/12/2015

Há alguns meses percebi um murmúrio falacioso contra manifestações de Lenio Luiz Streck que, conforme se cogitava, seriam “críticas injustas” ao trabalho de Alexandre Morais da Rosa. Neste texto, pretendo demonstrar que isso é um grande equívoco. Há ressalvas recíprocas entre esses autores acerca da relevância de questões fáticas específicas, mas isso não significa que eles desprestigiem a consistência teórica e a pertinência temática um do outro.

As diferentes linhas argumentativas estão relacionadas ao lugar de fala de cada um dos Autores e deve ser percebida como algo saudável para o aprimoramento da Teoria Jurídica. Falácias rasas sobre uma suposta ofensividade entre Lenio e Alexandre devem ser combatidas duramente. A Crítica Hermenêutica do Direito de Streck e a Teoria dos Jogos aplicada ao Processo Penal de Morais da Rosa compartilham a mesma genealogia paradigmática. Há peculiaridades teóricas e funcionais específicas a cada uma das abordagens, mas a diferença entre ramos de uma árvore teórica não impede que compartilhem a mesma raiz para frutificar algo como a autenticidade do Direito. (há sugestões de leitura ao final deste texto).

Lenio Streck oferece uma abordagem inovadora do fenômeno jurídico. Apoiado pelos ensinamentos do Mestre Ernildo Stein, faz uma leitura conjunta de Heidegger, Gadamer e Dworkin para explicitar de forma própria os efeitos nocivos do paradigma sujeito-objeto no âmbito do Direito. Uma proposta pioneira que apontou os perigos da discricionariedade interpretativa e a impossibilidade de uma cisão asséptica entre Direito e Moral nos termos ingênuos de algumas falas positivistas. Ele defende a autonomia do Direito com base na autenticidade de uma tradição jurídica compartilhada intersubjetivamente na e pela linguagem. Propõe um horizonte jurídico democrático possível contra os perigos de um ativismo judicial pautado por casuísmos morais, políticos e econômicos. Sua sofisticada construção teórica modela a autenticidade hermenêutica do Direito para iluminar o que chamo de verdade jurídica possível [1]. Tudo detalhadamente descrito e densamente fundamentado num conjunto invejável de textos, onde se destacam os livros “Hermenêutica Jurídica e(m) Crise” [2], “Verdade e Consenso” [3] e “Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica” [4].

A leitura que Alexandre Morais da Rosa faz da prática processual brasileira através da metáfora dos jogos se apoia nos mesmos fundamentos hermenêuticos que estão na base do trabalho de Lenio Streck. A superação do mito da verdade real e da imparcialidade do juiz, da forma como Alexandre o faz, só é possível a partir dos teoremas da diferença ontológica e do círculo hermenêutico, que viabilizam a percepção da discricionariedade que se instala entre a compreensão e a interpretação, nos moldes da hermenêutica de Heidegger e Gadamer. Essa é exatamente a mesma estrutura teórica que funda a Crítica Hermenêutica do Direito de Lenio Streck. Eis o motivo pelo qual eu afirmo que eles compartilham a mesma genealogia paradigmática.

No livro “A Teoria dos Jogos aplicada ao Processo Penal” [5], Alexandre Morais da Rosa congrega o que há de melhor na teoria jurídica contemporânea e suas facetas multidisciplinares, a fim de propor uma modelagem compreensiva dos desafios reais enfrentados pelos profissionais do direito que atuam na prática do processo penal brasileiro. Ouso dizer que sua percepção do contexto processual é tão eficaz que pode ser aplicada a qualquer modelo de processo contencioso, seja na esfera judicial ou administrativa. Alexandre é juiz e conhece o jogo processual como ninguém. Filia-se à construção teórica de Lenio Streck, mas sabe que a prática exige um cuidado estratégico que transborda os fundamentos filosóficos da hermenêutica. Enquanto Lenio desenha um modelo compromissário de Direito autêntico, Alexandre desvela as origens da face predatória da inautenticidade jurídico processual. Lenio propõe a autenticidade e Alexandre combate a inautenticidade. Ao final, querem o mesmo. Não há discórdia teórica. Pelo contrário! A proposta de Alexandre busca o equilíbrio processual necessário para a defesa da integridade e da coerência da tradição autêntica do Direito. Minha leitura é que sua metáfora dos jogos é complementar à teoria de Lenio Streck.

Seria necessário um livro inteiro para que eu pudesse detalhar minuciosamente as razões que justificam minha convicção acerca da complementaridade havida entre Lenio Streck e Alexandre Morais da Rosa. Mas isso escaparia ao objetivo prático deste texto e tornar-se-ia uma empreitada demasiadamente pretensiosa, tendo em vista o brilhantismo das sofisticadas construções textuais contidas nas obras dos próprios autores. Em palavras simples, seria oferecer uma imitação tosca de uma bela obra de arte. Para contribuir de forma prática com a compreensão da relação entre os trabalhos de Lenio e Alexandre, proponho uma ilustração metafórica. Simplista, admito, mas possivelmente eficaz.

Imagine o contexto de um grande prêmio de fórmula um. Há uma equipe composta, dentre outras pessoas, por um engenheiro chefe e um piloto experiente. O engenheiro constrói o carro com o que há de melhor em termos tecnológicos. O piloto guia o carro da melhor forma possível, extraindo o máximo do seu potencial. Cada um possui uma função específica que se complementa na busca pela vitória. O engenheiro se preocupa com a eficiência do motor e a aerodinâmica do design. O piloto analisa o traçado da pista e as características de seus concorrentes diretos. O engenheiro projeta o carro no túnel de vento com base em condições ideais. O piloto enfrenta as adversidades da corrida, acelerando e freando quando necessário, enquanto se protege da malícia dos outros pilotos, da periculosidade da pista e das condições ambientais. Não há possibilidade de vitória sem a existência dos dois. Alguém precisa construir um carro sofisticado para que alguém habilidoso possa guiá-lo. Lenio é o engenheiro, Alexandre é o piloto. A autenticidade é a condição ideal, a inautenticidade é a realidade da pista. Formam uma equipe na corrida do processo, onde o grande prêmio é a conquista do Estado Democrático de Direito.

Sugestões de leitura:

Textos de Lenio Luiz Streck: aqui, aqui e aqui.

Textos de Alexandre Morais da Rosa: aqui, aqui e aqui.


Notas e Referências:

[1]    MELIM, Claudio. Ensaio sobre a cura do direito: indícios de uma verdade jurídica possível. 2. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.

[2]    STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.

[3]   STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

[4]   STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

[5]    MORAIS DA ROSA, Alexandre. A teoria dos jogos aplicada ao processo penal. 2. ed. Portugal: Rei dos Livros e Empório do Direito, 2015.


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Claudio Melim é mestre e doutorando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Possui graduação em Direito e Ciência da Computação pela mesma instituição. Exerce a profissão de advogado e atua como consultor empresarial na área de Direito Tributário. Autor do livro “Ensaio sobre a Cura do Direito”.

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Imagem Ilustrativa do Post: F1 2013 Testing // Foto de: Simon Williams // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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