STJ define que empresas em recuperação judicial podem participar de licitação

28/02/2019

Em que pese a Lei 11.101/05, que rege o processo de recuperação judicial, ter sido promulgada em 09 de fevereiro de 2005, foi apenas nos últimos anos que ela obteve destaque nacional no cenário jurídico e econômico, essencialmente devido à crise que aflige o mercado interno. Em razão disso, os Tribunais Superiores têm enfrentado ordinariamente matérias que envolvem recuperações judiciais e falências.

Um dos últimos impasses foi julgado pela Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça em meados do segundo semestre de 2018[i], oportunidade em que foi declarada a possibilidade de empresas em processo de recuperação judicial participarem de certame licitatório, independentemente da apresentação de certidão negativa de falência e recuperação judicial.

O Agravo em Recurso Especial sob nº 309.867/ES, de relatoria do Ministro Gurgel de Faria, foi provido com unanimidade a fim de ratificar que a Lei 8.666/93 não prevê a necessidade da apresentação de certidão negativa para casos de recuperação judicial. Do mesmo modo, em sonora aplicação dos art. 47 e 52, II, ambos da LRF, a empresa em recuperação judicial poderá comprovar sua aptidão econômico-financeira de outras formas, independentemente da respectiva certidão.

Em suma, a controvérsia jurisprudencial e doutrinária vagueava na disposição do inciso II, do art. 31, da Lei 8.666/93, que impõe como condicionante da capacidade econômico-financeira a apresentação de certidão negativa de falência ou concordata. Em analogia, parte dos julgados entendia que a recuperação judicial substituiu a concordata; logo, permaneceria a obrigação da certidão.

Inteligentemente, a nosso modo de ver, definiu o STJ que é vedado à Administração Pública interpretar de forma extensiva o referido artigo, em consonância ao princípio da legalidade, que lastreia o direito público. Foram mencionados, inclusive, outros julgados do Tribunal nessa linha de entendimento.

Em verdade, caberia ao legislador, quando da construção do procedimento recuperacional, editar o inciso II, do art. 31, da Lei 8.666/93, a fim de substituir, ou estender, a imposição dada às concordatas para as recuperações judiciais.

Deste modo, a ausência dessa previsão legislativa nos parece acertada. O processo de soerguimento judicial veio incutido na ideia de preservar as empresas e os benefícios sociais e econômicos oriundos de sua atividade, pois define o art. 47 da LRF que:

A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Como bem definiu o Relator do AREsp, diferentemente da concordata, a recuperação judicial busca auxiliar o soerguimento das empresas, a fim de que elas possam retomar a saúde de sua atividade empresarial. Portanto obstar a participação em certames licitatórios não seria de plena aplicação da LRF.

Acrescente-se a isso que a própria Lei 11.101/05 previu que, com o deferimento do processamento da recuperação judicial, dispensa-se a apresentação de certidões negativas para que o devedor exerça suas atividades; supõe-se a sua abrangência a processos licitatórios.

Em linhas gerais, um dos parágrafos do julgado define bem a concepção da Primeira Turma do STJ sobre o tema:

A interpretação sistemática dos dispositivos das Leis n. 8.666/93 e n. 11.101/05 leva à conclusão de que é possível uma ponderação equilibrada entre os princípios nelas imbuídos, pois a preservação da empresa, a sua função social e o estímulo à atividade econômica atendem também, em última análise, ao interesse da coletividade uma vez que se busca a manutenção da fonte produtora, dos postos de trabalho e dos interesses dos credores.

Importante destacar que o STJ não afasta a obrigação de a empresa comprovar sua qualificação econômico-financeira, imposição do art. 27, II, da Lei 8.666/93. A decisão é no sentido de não reconhecer a presunção de insolvência de empresas em recuperação judicial.

Se vencedora do certame, caberá à licitante, portanto, comprovar, por outros meios, sua aptidão econômico-financeira, a fim de que demonstre possuir condições de suportar os custos da execução do contrato, como definiu a decisão analisada.

Em suma, a decisão da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça busca a interação interpretativa das Leis de Licitações e de Recuperação Judicial e Falência à luz do princípio da preservação da atividade empresarial e dos benefícios sociais e econômicos provenientes desta, dentre elas a manutenção de postos de trabalho, da fonte produtora e força do mercado brasileiro.

Os Tribunais Superiores vêm ratificando em seus julgados a importância dada pelo legislador à preservação das empresas em recuperação judicial, obviamente sem extrapolar ou ferir o direito dos demais interessados, em especial dos credores.

Conceder — dentro das previsões legais — reais condições de soerguimento para empresas em reestruturação é uma das bases elementares para uma economia de mercado sustentável e produtiva. Como é destacado de forma uníssona na doutrina:

É, felizmente, o que tem por escopo a nova Lei n° 11.101, de 2005, ao instituir o novo instituto da recuperação judicial, que, nos precisos termos do art. 47, tem por fim: I – viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do empresário ou sociedade empresária quando devedores; II – promover a preservação da empresa e sua função social; III – manter consequentemente: a) a fonte produtora; b) o emprego dos trabalhadores; c) o interesse dos credores; d) o estímulo à atividade econômica”[ii].

Alinhado a isso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça traz, nesse julgado, mais uma “força” para que empresas em recuperação judicial busquem o soerguimento saudável de suas atividades; pois se, nem o Estado contratar com empresas em dificuldade, tampouco o setor privado o fará.

Ademais, não faz sentido eliminar-se a empresa viável, impedindo sua participação em certames licitatórios, apenas porque não detém e não deteria, diante da crise instalada, a certidão negativa de ajuizamento do pedido de recuperação judicial. Aliás, muitas empresas têm como seu principal ativo o Poder Público como cliente, portanto, para elas, caso persistisse o impedimento, não haveria solução pela via recuperacional, culminando o encerramento de suas atividades e, por conseguinte, do ciclo de suas relações e da riqueza que geram.

Campinho[iii], no contexto acima, bem elucida a questão ao tratar das certidões negativas de débito fiscal para efeito de levar adiante o pedido de recuperação, esclarecendo que é lamentável o superprivilégio do Estado, sendo recomendável que a ele também caiba uma dose de sacrifício. Sustenta que a empresa viável deveria interessar ao próprio Estado, na visão arrecadatória, pois arrecadará novos tributos gerados a partir das atividades da empresa recuperanda, como diz: “é dinheiro novo em seu caixa. Novo e imediato”.      

Conclui-se, portanto, que a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça posicionou-se pela possibilidade de empresas em recuperação judicial participarem de certame licitatório e, se forem vencedoras, dispensadas estarão de apresentar certidão negativa de recuperação judicial; não obstante, deverão comprovar sua qualificação econômico-financeira de outras formas[iv].

 

 

Notas e Referências

[i]Informativo de jurisprudência nº 0631 de 14 de setembro de 2018.

“Sociedade empresária em recuperação judicial. Participação em licitação. Possibilidade. Certidão de concordata. Previsão na Lei n. 8.666/1993. Interpretação extensiva. Descabimento. Aptidão econômico-financeira. Comprovação. Necessidade. De início, salienta-se que, conquanto a Lei n. 11.101/2005 tenha substituído a figura da concordata pelos institutos da recuperação judicial e extrajudicial, o art. 31 da Lei n. 8.666/1993 não teve o texto alterado para se amoldar à nova sistemática, tampouco foi derrogado. Nesse sentido, parte da doutrina entende que, se a Lei de Licitações não foi alterada para substituir certidão negativa de concordata por certidão negativa de recuperação judicial, não poderia a Administração passar a exigir tal documento como condição de habilitação, haja vista a ausência de autorização legislativa. Assim, as empresas submetidas à recuperação judicial estariam dispensadas da apresentação da referida certidão. Importa ressaltar que a licitação pública se norteia, entre outros princípios, pelo da indisponibilidade do interesse público e que o escopo primordial da Lei n. 11.101/2005, nos termos do art. 47, é viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, prevendo em seu art. 52, I, a possibilidade de contratação com o poder público, o que, em regra geral, pressupõe a participação prévia em licitação. Todavia, não se deve olvidar a exigência contida no art. 27, III, da Lei n. 8.666/1993 de demonstração da qualificação econômico-financeira como condicionante para a participação no certame. Dessa forma, a interpretação sistemática dos dispositivos das Leis n. 8.666/1993 e n. 11.101/2005 leva à conclusão de que é possível uma ponderação equilibrada entre os princípios nelas imbuídos, pois a preservação da empresa, a sua função social e o estímulo à atividade econômica atendem também, em última análise, ao interesse da coletividade, uma vez que se busca a manutenção da fonte produtora, dos postos de trabalho e dos interesses dos credores. Assim, a apresentação de certidão positiva de recuperação não implica a imediata inabilitação, cabendo ao pregoeiro ou à comissão de licitação diligenciar a fim de avaliar a real situação de capacidade econômico-financeira da empresa licitante” (AREsp 309.867-ES, Rel. Min. Gurgel de Faria, por unanimidade, julgado em 26/06/2018, DJe 08/08/2018).

[ii] PACHECO, José da Silva. Processo de recuperação judicial, extrajudicial e falência. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009, p. 141.

[iii] CAMPINHO, Sergio. Curso de Direito Comercial: falência e recuperação de empresa. 8ª ed. São Paulo, Saraiva, 2017. p. 179. 

[iv]AREsp 309.867/ES, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em  08.08.2018.

 

 

 

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