STF: O Fim do sigilo bancário para o fisco

25/02/2016

Por Charles M. Machado - 25/02/2016

No dia de ontem o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu  o julgamento conjunto de cinco processos que questionavam dispositivos da Lei Complementar (LC) 105/2001, que permitem à Receita Federal receber dados bancários de contribuintes fornecidos diretamente pelos bancos, sem prévia autorização judicial. Com o placar de 9 a 2, o STF entendeu que a norma não resulta em quebra de sigilo bancário, mas sim em transferência de sigilo da órbita bancária para a fiscal, ambas protegidas contra o acesso de terceiros. A transferência de informações é feita dos bancos ao Fisco, que tem o dever de preservar o sigilo dos dados, portanto não há ofensa à Constituição Federal, sopesando dessa forma outras garantias Constitucionais.

A decisão, também destacou que Estados e Municípios devem estabelecer em regulamento, assim como fez a União no Decreto 3.724/2001, a necessidade de haver processo administrativo instaurado para a obtenção das informações bancárias dos contribuintes, devendo-se adotar sistemas certificados de segurança e registro de acesso do agente público para evitar a manipulação indevida dos dados e desvio de finalidade, garantindo-se ao contribuinte a prévia notificação de abertura do processo e amplo acesso aos autos, inclusive com possibilidade de obter cópia das peças. Dessa maneira nos próximos dias os Estados da Federação, bem como prefeituras estarão publicando decretos regulamentando a utilização das movimentações financeiras, para melhor aferir a tributação

O Supremo entendeu que os instrumentos previstos na lei impugnada pelas ADINs, dão efetividade ao dever geral de pagar impostos, não sendo medidas isoladas no contexto da autuação fazendária, que tem poderes e prerrogativas específicas para fazer valer esse.

A regulamentação da Lei Complementar 105/2001 por parte dos Estados e Municípios deve conter:

  • Pertinência temática entre a obtenção das informações bancárias e o tributo objeto de cobrança no procedimento administrativo instaurado;
  • A prévia notificação do contribuinte quanto a instauração do processo e a todos os demais atos;
  • A sujeição do pedido de acesso a um superior hierárquico;
  • A existência de sistemas eletrônicos de segurança que sejam certificados e com registro de acesso;
  • O estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de desvios.”

Cumpridos esses requisitos definidos pelo STF, os dados podem ser utilizados, seja por solicitação direta ou remessa por convênios entre as Unidades da Federação

A Receita Federal, através de nota, enfatizou a importância da Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, ao longo desses últimos anos de validade.

Reforçando que a Constituição Federal traz diversos princípios que fundamentam a atuação do Fisco Federal. Há menção expressa à faculdade (pela moderna doutrina administrativa, está mais para obrigação) da Administração Tributária em concretizar o princípio da capacidade econômica mediante identificação do seu patrimônio, rendimentos e atividades econômicas (art. 145, § 1º).

Na a flexibilização do sigilo, necessária a atuação da RFB, encontra também guarida nos incisos XVIII e XXII do art. 37, inciso IV do art. 170 e art. 237.

Para a RFB, a tendência internacional atual é de cooperação internacional para combate dos ilícitos fiscais e seus reflexos (lavagem de dinheiro, inclusive), sendo que a mesma deve assim proceder a fim de respeitar o disposto no inciso IX do art. 4º da CF. 3.

A utilização dessas informações, por dever procuram atingir os princípios da isonomia e da capacidade contributiva, logo é fundamental que o Fisco possua elementos capazes de identificar o patrimônio e a renda para agir de forma tempestiva e célere em relação aos sujeitos passivos que se valem de formas evasivas para negar sua contribuição ao financiamento do Estado, em claro prejuízo concorrencial àqueles que são ciosos de suas obrigações tributárias.

Até o momento, as informações consolidadas sobre movimentações financeiras prestadas à Receita Federal somente em 2013, geraram os seguintes desvios, isso apenas para análise:

Pessoas com até 10 vezes a receita total declarada ao Fisco, e com movimentação financeira a crédito acima de R$ 15 milhões:

  • Quantidade de Pessoas Jurídicas: 10.170
  • Movimentação Financeira R$1,525 trilhões reais
  • Valores declarados R$ 27 bilhões
  • Diferença R$ 1,498 trilhões de reais

Nas pessoas físicas, mantido o critério de apresentar a movimentação financeira a crédito acima de R$ 1 milhão, mantido também o parâmetro de pelo menos 10 vezes aplicado para as pessoas jurídicas, o quadro resume a situação:

1) Quantidade de Pessoas Físicas nessa situação: 28.370

2) Movimentação Financeira de 188 bilhões

3) Movimentação Total de R$ 188 bilhões

4) Diferença não ofertada a tributação por declaração de R$181,2 bilhões.

Esses números são a base dos procedimentos fiscais abertos, lembrando que em nenhum desses 93.045 abertos houve o vazamento de informações bancárias para o público ou mídia, o que demonstrou a excepcional eficiência no controle e sigilo das informações bancárias pela Receita Federal.

Lembrando que o uso indevido dessas informações caracteriza crime de responsabilidade funcional, bem como direito a reparação material ao contribuinte que teve seus dados vazados.

Por certo a vida em sociedade pressupõe a edificação de um contrato social. Através desse pacto social escolhemos a roupa que melhor apresente a nossa construção de valores. O que costura esse extenso traje é a fina linha do Direito, que oferece a estrutura dessa veste a ligação entre todos e para todos, dando as cores e fazendo a tipificação das condutas que interessam ao Direito.

A Ciência Jurídica acaba por se dividir didaticamente em Ramos do Direito. Como exercício de sua autonomia constitucional os entes federativos exercem a sua competência promulgando novos diplomas normativos ora no exercício da competência privativa, ora na competência concorrente e muitas vezes exercitando a sua competência comum.

Dessa maneira os legisladores, no exercício de seu poder constituinte derivado, inovam na construção de diplomas normativos, tipificando condutas que interessam ao espelho de valores que a sociedade elegeu. Somente essas condutas prescritas em linguagem competente, é que interessa aos cidadãos, enquanto delineamento de seus direitos, deveres e obrigações.

O conjunto desses valores pode certamente mudar com o tempo, muitas vezes por evolução das visões de mundo da sociedade, que autonomamente, e por meio dos seus representantes, produz norma que inove na tipificação de determinada conduta. Por vezes a inovação tecnológica obriga a edificação de novos diplomas normativos, afinal por mais abrangentes que possa ser o texto legal a regrar as normas de conduta, ele nem sempre possui linguagem competente para estabelecer padrões e regramentos para muitas tecnologias. Um claro exemplo disso é a tipificação penal dos crimes cibernéticos, ou a tributação dos atos de comércio realizados por provedores fora do país, que exigem do legislador ordinário um esforço na produção de novo texto legal, visto que determinada tecnologia produziu e pode produzir conflitos nunca dantes imaginados pelo Direito.

Por vivermos em uma sociedade heterogênea, após a produção de novas leis e decretos, os intérpretes, num exercício que tem como única finalidade descrever a linguagem prescritiva dos textos legais, passa a interpretar o que o legislador, tomado em sentido amplo e sem rigor terminológico, pretende como objetivo daquela norma. A primeira prova de fogo, do texto legal já ocorre na primeira leitura após a sua publicação, afinal o exegeta busca com essa leitura inicial alcançar o objetivo do legislador.

Surgem na interpretação os primeiros conflitos do Direito, afinal, essa tênue linha que costura o nosso contrato social, ao ser interpretada recebe toda uma carga ideológica do seu intérprete, nascendo daí uma necessidade extrema de um considerável rigorismo técnico na produção de leis e decretos, o que infelizmente nem sempre ocorre.

O Direito admite, muitas vezes, interpretações diametralmente opostas, e o que a Ciência pode dizer é que somente uma delas é valida. Nem sempre uma decisão judicial, espelha a melhor construção científica, e tampouco são justas, afinal, o direito não é a segurança jurídica, mas a busca dela.

A edição da Lei Complementar n° 105 de 2001, que flexibilizou os dados do sigilo bancário, equiparando diversos negócios a instituições financeiras, é um claro exemplo do cipoal ideológico que encontramos por trás da interpretação de uma norma. Para uma parte considerável da doutrina, o referido diploma normativo, é uma violência ao texto constitucional, na medida que entendem que o sigilo bancário, é uma garantia individual, não sendo, portanto, objeto de emenda constitucional tendente a aboli-lo, e muito menos ser modificado por meio de Lei Complementar, concluindo-se pela existência de nítida inconstitucionalidade formal e material. Para outros doutrinadores, reconhecidamente em minoria, o sigilo bancário não encontra-se amparada na Magna Carta, pois compreendem estes que o sigilo de dados na Constituição Federal não se refere ao bancário, mas sim informações que tragam um conjunto reflexo da privacidade e intimidade, não sendo, portanto, uma garantia individual, ao mesmo tempo, que com uma sorte dose de eufemismo, entende que não ocorre a quebra do sigilo e sim a sua transferência.

O nosso Supremo Tribunal entendeu que, para o exercício efetivo das competências impositivas dos entes federativos, os mesmos poderão fazer uso das informações relativas às movimentações financeiras dos contribuintes, como meio de dar efetividade ao § 1° do Art. 145 da Constituição Federal. Dessa maneira as pessoas jurídicas ou físicas podem ser notificadas pela União, Estados ou Municípios, para justificar as diferenças, quando existentes, entre o valor declarado nos documentos fiscais e a sua respectiva movimentação financeira, que bem pode ser de banco, factoring ou instituição a ela equiparada, como as administradoras de cartão de crédito, sendo que mais recetenmente essas entidades foram estendidas.

Com a publicação do decreto n° 4.489, regulamenta-se uma forma de tributação extremamente maléfica para construção da cidadania contributiva, pois troca-se a hipótese de incidência, pela incidência da hipótese, uma vez que se o contribuinte não tiver documentos necessários a dar a cobertura fiscal de determinada movimentação financeira ele passa ser tributado pelo somatório dessa movimentação e os valores depositados são tributados considerando-se o custo zero da moeda.

Ao nosso ver tributa-se não o lucro arbitrado, mas sim o que denominamos lucro arbitrário, pois cabe ao contribuinte dar prova de todas as operações, invertendo-se com isso o ônus da prova.

Por último, tais diplomas tem sido utilizados para se tributar operações ocorridas antes da publicação da Lei que autorizou a quebra do sigilo, em violento afronto a certeza jurídica.

Doravante, não resta dúvida alguma que, o fisco irá dispor de meios, se não de melhor fiscalizar, mas de certamente melhor amedontrar o contribuinte, criando um clima de terror fiscal, com isso pode-se estar levando a economia ainda mais para informalidade, o que implica num retrocesso para o país em vias de desenvolvimento, pois marginaliza uma cada vez maior fatia da sociedade.

Esses diplomas precisam ser aperfeiçoados, para evitarmos injustiças, através de tributações por arbitramento que ficam muito longe da realidade.

Juntamos abaixo o voto do relator:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.390 DISTRITO FEDERAL

VOTO

O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI (RELATOR):

Conforme relatado, cuida-se de quatro ações diretas de inconstitucionalidade que possuem, como núcleo comum de impugnação, normas relativas ao fornecimento, pelas instituições financeiras, de informações bancárias de contribuintes à administração tributária sem a intermediação do Poder Judiciário (art. 3º, § 3º; art. 5º; art. 6º e art. 1º, § 3º, inciso VI, na parte em que remete aos arts. 5º e 6º, todos da Lei Complementar  nº 105/2001, e aos Decretos nº 3.724/2001, nº 4.489/2002 e  nº 4.545/2002).

Além desses dispositivos, foram impugnados o art. 1º, § 4º, expressão “do inquérito ou”, da Lei Complementar nº 105/2001, e o art. 1º da Lei Complementar nº 104/2001, na parte em que inseriu o § 1º, inciso II, e o § 2º ao art. 198 da Lei nº 5.172/66 (Código Tributário Nacional), normas que permitem o fornecimento a autoridade administrativa de “informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades”, para a utilização em processo administrativo instaurado com o fito de apurar a prática de infração administrativa.

1 – PREJUDICIALIDADE PARCIAL DA ADI Nº 2.859/DF

Inicialmente, observo que houve parcial perda de objeto da ADI nº

2.859/DF, em razão do exaurimento da eficácia jurídico-normativa do Decreto nº 4.545/2002. Esse decreto, que possuía apenas um artigo, estabelecia o seguinte: “a prestação de informações sobre operações financeiras, na forma estabelecida pela Secretaria da Receita Federal, em decorrência do disposto no § 2 º do art. 11 da Lei n º 9.311, de 24 de outubro de 1996, por parte das instituições financeiras, supre a exigência de que trata o Decreto nº 4.489, de 28 de novembro de 2002”. Ocorre que a Lei nº 9.311/1996, que instituiu a Contribuição Provisória sobre

Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de

Natureza Financeira (CPMF), não está mais em vigência desde janeiro de 2008, conforme se depreende do art. 90, § 1º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias -ADCT.

A jurisprudência desta Corte é pacífica quanto à prejudicialidade da ação direta de inconstitucionalidade por perda superveniente de objeto quando sobrevém a revogação da norma questionada. Nesse sentido: ADI nº 709/PR, Pleno, Relator o Ministro Paulo Brossard, DJ de 24/6/94; ADI nº 2.006/DF, Pleno, Relator o Ministro Eros Grau , DJ de 10/10/08; ADI nº 3.831/DF, Pleno, Relatora a Ministra Cármen Lúcia , DJ de 24/8/07; ADI nº

1.920/BA, Pleno, Relator o Ministro Eros Grau , DJ de 2/2/07; ADI nº 1.952/DF-QO, Pleno, Relator o Ministro Moreira Alves , DJ de 9/8/02 e ADI nº 520/MT, Pleno, Relator o Ministro Maurício Corrêa , DJ de 6/6/97.

Pelo exposto, encontra-se prejudicado o pedido de declaração de inconstitucionalidade do Decreto nº 4.545/2002.

2 - CONSTITUCIONALIDADE DA EXPRESSÃO “DO INQUÉRITO OU” CONTIDA NO ART. 1º, § 4º, DA LEI COMPLEMENTAR Nº 105/2001

Quanto à alegação de inconstitucionalidade da expressão “do inquérito ou”, contida no § 4º do art. 1º da Lei Complementar nº 105/2001, esclareço que a norma não cuida da transferência de informações bancárias ao Fisco, questão que está no cerne das ações diretas. Trata-se, conforme bem definiu a Advocacia-Geral da União e a Presidência da República, de norma referente à investigação criminal levada a efeito no inquérito policial, em cujo âmbito há muito se admite a quebra de sigilo bancário, quando presentes indícios de prática criminosa. Confira-se o teor da norma em análise:

“Art. 1º As instituições financeiras conservarão sigilo em

suas operações ativas e passivas e serviços prestados.

(...)

  • 4º A quebra de sigilo poderá ser decretada, quando necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial, e especialmente nos seguintes crimes:
  • – de terrorismo;
  • – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;
  • – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado a sua produção;
  • – de extorsão mediante seqüestro;
  • – contra o sistema financeiro nacional;
  • – contra a Administração Pública;
  • – contra a ordem tributária e a previdência social;
  • – lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, direitos e valores;
  • – praticado por organização criminosa.”

Carlos Alberto Habström aduz que a norma em tela evidentemente se refere à quebra do sigilo bancário para a apuração de crimes, destacando que os tribunais fixaram orientação no sentido da possibilidade de afastamento do sigilo no curso de inquéritos policiais (Comentários à Lei de Sigilo Bancário. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2009).

De fato, a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal, de longa data, admite a possibilidade de que seja decretada a quebra de sigilo bancário, não apenas no âmbito da ação judicial, mas também no curso do inquérito policial, desde que atendidos os requisitos para tanto exigidos. Nesse sentido, os seguintes julgados:

“PENAL. AFASTAMENTO DOS SIGILOS FISCAL E BANCÁRIO. REQUISITOS. IMPOSSIBILIDADE DE

OBTENÇÃO DA PROVA POR OUTROS MEIOS E LIMITAÇÃO TEMPORAL DA QUEBRA. INDÍCIOS APRESENTADOS PELA AUTORIDADE POLICIAL E PELO MINISTÉRIO PÚBLICO

QUE DEMONSTRAM POSSÍVEL PAGAMENTO DE

VANTAGEM INDEVIDA A PARLAMENTAR. LEGITIMIDADE DA DECRETAÇÃO. 1. Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a autorização do afastamento dos sigilos fiscal e bancário deverá indicar, mediante fundamentos idôneos, a pertinência temática, a necessidade da medida, ‘que o resultado não possa advir de nenhum outro meio ou fonte lícita de prova’ e ‘existência de limitação temporal do objeto da medida, enquanto predeterminação formal do período’ (MS 25812 MC, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, publicado em DJ 23-2-2006). 2. No caso, o pedido de afastamento dos sigilos fiscal e bancário encontra-se embasado, em síntese, em declarações feitas no âmbito de colaboração premiada, em depoimento prestado por pessoa supostamente envolvida nos fatos investigados e em relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF). Os elementos até então colhidos indicavam possível pagamento de vantagem indevida a parlamentar em troca de influência supostamente exercida no âmbito da Petrobras, mostrando-se necessária e pertinente a decretação da medida postulada para que fossem esclarecidos os fatos investigados. Solicitação que, ademais, estava circunscrita a pessoas físicas em tese vinculadas aos fatos investigados, com CPF definidos, e limitavam-se a lapso temporal correspondente ao tempo em que teriam ocorridos os supostos repasses. 3. Agravos regimentais a que se nega provimento” (AC 3.872/DF-AgR, Relator o Ministro Teori Zavascki, Tribunal Pleno, DJe de 13/11/15).

“AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS.

CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. SIGILOS FISCAL

E BANCÁRIO. HABEAS CORPUS IMPETRADO CONTRA

DECISÃO PROFERIDA EM RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.

AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA DA DECISÃO AGRAVADA. INVIABILIDADE JURÍDICA. IMPETRAÇÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL

NÃO PROVIDO. 1. Não é cabível habeas corpus contra decisão proferida em recurso ordinário em habeas corpus pelo Superior Tribunal de Justiça. 2. Os Agravantes têm o dever de impugnar, de forma específica, todos os fundamentos da decisão agravada, sob pena de não provimento do agravo regimental. 3. A jurisprudência deste Supremo Tribunal é firme no sentido de que os sigilos bancário e fiscal são relativos e podem ser quebrados, observado o devido processo legal. 4. Verificada na espécie a indispensabilidade da quebra do sigilo, sendo apresentadas razões de relevante interesse público e exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades, o sigilo não pode prevalecer, impondo-se a medida excepcional, como exposto nas instâncias antecedentes. 5. Para decidir de forma diversa e concluir pela ‘inutilidade processual’ das provas obtidas pela quebra dos sigilos bancário e fiscal seria necessário o reexame de fatos e provas, ao que não se presta o habeas corpus. 6. Agravo Regimental não provido” (HC 125.585/PE-AgR, Relatora a Ministra Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe de 19/12/14).

“INQUERITO. AGRAVO REGIMENTAL. SIGILO

BANCARIO. QUEBRA. AFRONTA AO ARTIGO 5.-X E XII DA CF: INEXISTÊNCIA. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL.

CONTRADITORIO. NÃO PREVALECE. I - A quebra do sigilo bancario não afronta o artigo 5.-X e XII da Constituição Federal (Precedente: PET.577). II - O princípio do contraditório não prevalece na fase inquisitória (HHCC 55.447 e 69.372; RE 136.239, inter alia). Agravo regimental não provido” (Inq 897AgR, Relator o Ministro Francisco Rezek, Tribunal Pleno, DJ de 24/3/95).

Pelo exposto, é constitucional a expressão “do inquérito ou”, constante do § 4º do art. 1º da Lei Complementar nº 105/2001.

3 – CONSTITUCIONALIDADE DOS ARTS. 5º E 6º DA LEI

COMPLEMENTAR Nº 105/2001 E DOS DECRETOS Nº 3.724/2001 e Nº 4.489/2002

No que tange à impugnação dos arts. 5º e 6º da Lei Complementar 105, ponto central das ações diretas de inconstitucionalidade, insta destacar que o tema já foi objeto de questionamento perante esta Corte em duas significativas ocasiões.

A primeira delas, no julgamento da AC 33/PR. Nesses autos, em que o Plenário findou por não referendar a medida liminar inicialmente concedida, se iniciou profícuo debate entre os membros desta Corte acerca da oponibilidade do sigilo bancário ao Fisco, em face das disposições constantes da LC nº 105/01. O julgado restou assim ementado:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TUTELA DE URGÊNCIA (PODER GERAL DE CAUTELA). REQUISITOS.

AUSÊNCIA. PROCESSUAL CIVIL. REFERENDO DE DECISÃO MONOCRÁTICA (ART. 21, V DO RISTF).

CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. DADOS BANCÁRIOS PROTEGIDOS POR SIGILO. TRANSFERÊNCIA DE

INFORMAÇÕES SIGILOSAS DA ENTIDADE BANCÁRIA AO

ÓRGÃO DE FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA FEDERAL SEM

PRÉVIA AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. LEI COMPLEMENTAR

105/2001. LEI 10.174/2001. DECRETO 3.724/2001. A concessão de tutela de urgência ao recurso extraordinário pressupõe a verossimilhança da alegação e o risco do transcurso do tempo normalmente necessário ao processamento do recurso e ao julgamento dos pedidos. Isoladamente considerado, o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade sobre o tema é insuficiente para justificar a concessão de tutela de urgência a todo e qualquer caso. Ausência do risco da demora, devido ao considerável prazo transcorrido entre a sentença que denegou a ordem e o ajuizamento da ação cautelar, sem a indicação da existência de qualquer efeito lesivo concreto decorrente do ato tido por coator (21.09.2001 – 30.06.2003).

Medida liminar não referendada. Decisão por maioria” (AC 33/PR-MC, Relator o Ministro Marco Aurélio, Relator para o acórdão o Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, DJe de

10/2/11).

Os debates se aprofundaram na apreciação do RE nº 389.808/PR, também de relatoria do eminente Ministro Marco Aurélio, o qual recebeu a seguinte ementa:

“SIGILO DE DADOS – AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção – a quebra do sigilo – submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário – e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal. SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS – RECEITA FEDERAL. Conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte”.(RE 389.808/PR, Relator o Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJe de 10/5/11).

Segundo a posição que prevaleceu na Corte, por maioria, o acesso pelo Fisco dos dados bancários do contribuinte constituía matéria sujeita à reserva de jurisdição. Alguns posicionamentos sintetizam a conclusão obtida.

O Ministro Marco Aurélio, Relator do feito, salientou que, nos autos da Pet nº 3.898, ficou assentado que “nem mesmo o Ministro de Estado da Fazenda poderia ter acesso a dados bancários de certo cidadão – individualizado”, e rememorou Sua Excelência que a Receita Federal é órgão subordinado ao Ministério da Fazenda. Apontou, ainda, que a Corte, nos autos do RE nº 461.366-2/DF, não reconheceu ao Banco Central, órgão com atuação fiscalizadora, a possibilidade de acessar dados de correntista, e categorizou a Receita Federal como órgão “fiscalista por excelência”, o que a afastaria, ainda mais, do acesso aos dados bancários dos contribuintes.

O Ministro Celso de Mello destacou que o sigilo bancário possui assento constitucional, pois protege a esfera de intimidade financeira das pessoas e se manifestou no sentido de que “a pretensão estatal voltada à disclosure das operações financeiras constitui fator de grave ruptura das delicadas relações - já estruturalmente tão desiguais - existentes entre o Estado e o indivíduo”.

O Ministro Cezar Peluso, por seu turno, salientou que essa conclusão “em nada prejudica a administração pública, que pode, fundamentadamente, requerer ao Poder Judiciário, que lhe franqueará acesso aos dados de que precise”.

Por outro lado, iniciei a divergência, para destacar que o § 1º do art. 145 da CF/88 dispõe, em síntese, que a administração tributária poderá “identificar, respeitados os direitos e garantias individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”. E concluí que a lei em questão se mostrava consentânea com os direitos dos cidadãos, uma vez que previa a manutenção do sigilo.

No mesmo sentido, votou a Ministra Cármen Lúcia – que se manifestou pela ausência de quebra da privacidade, “uma vez que não [se] está autorizado por lei a dar a público, mas apenas a transferir para um outro órgão da administração, para o cumprimento das finalidades da Administração Pública, aqueles dados”. Também na mesma direção, se posicionou o Ministro Ayres Britto, que destacou:

“[A] conjugação do inciso XII com o inciso X da Constituição abona a tese de que o que se proíbe não é o acesso a dados, mas a quebra do sigilo, é o vazamento do conteúdo de dados. É o vazamento, é a divulgação. E, no caso, as leis de regência, ao falar das transferências de dados sigilosos, é evidente que elas impõem ao órgão destinatário desses dados a cláusula da confidencialidade, cuja quebra implica a tipificação ou o cometimento de crime.”

Apontadas as distintas perspectivas em que se pôs, até aqui, a discussão do tema nesta Corte, tenho por relevante, nos presentes feitos, abordar em separado dois elementos que refletem, em essência, minha compreensão quanto ao tema: (i) a inexistência, nos dispositivos combatidos, de violação a direito fundamental (notadamente de violação à intimidade), pois não há “quebra de sigilo bancário”, mas, ao contrário, a afirmação daquele direito; e (ii) a confluência entre os deveres do contribuinte (o dever fundamental de pagar tributos) e os deveres do Fisco (o dever de bem tributar e fiscalizar), esses últimos com espeque, inclusive, nos mais recentes compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

  1. A) MANUTENÇÃO DAS GARANTIAS FUNDAMENTAIS: DO SIGILO BANCÁRIO AO SIGILO FISCAL.

Como salientei, mantenho o entendimento que em outras ocasiões já externei: para se falar em “quebra” de sigilo bancário pelos dispositivos impugnados, necessário seria vislumbrar, em seus comandos, autorização para a exposição das informações bancárias.

Consoante assinalou o Procurador-Geral da República em seu parecer, “a afronta à garantia do sigilo bancário, como dito, compreendida no âmbito de proteção do inciso X do artigo 5º da Carta da República, não ocorre com o simples acesso a esses dados, mas verdadeiramente com a circulação desses dados”.

A previsão de circulação dos dados bancários, todavia, inexiste nos dispositivos impugnados, que consagram, de modo expresso, a permanência do sigilo das informações obtidas com espeque em seus comandos. É o que expressam o § 5º do art. 5º e o parágrafo único do art. 6º. Vide a íntegra dos dispositivos citados:

“Art. 5º O Poder Executivo disciplinará, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços.

  • 1º (...)
  • 2º (...)
  • 3º (...)
  • 4º Recebidas as informações de que trata este artigo, se detectados indícios de falhas, incorreções ou omissões, ou de cometimento de ilícito fiscal, a autoridade interessada poderá requisitar as informações e os documentos de que necessitar, bem como realizar fiscalização ou auditoria para a adequada apuração dos fatos.
  • 5º As informações a que refere este artigo serão conservadas sob sigilo fiscal, na forma da legislação em vigor.

Art. 6º As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.

Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.”

Soma-se a isso o art. 10 da própria lei complementar, que estabelece que a divulgação de informações bancárias pelas instituições financeiras fora das hipóteses previstas na lei constitui crime, o qual é apenado com reclusão, de um a quatro anos, e multa. Além disso, a lei fixa, no art. 11, a responsabilização civil do servidor público que “utilizar ou viabilizar a utilização de qualquer informação obtida em decorrência da quebra de sigilo de que trata esta Lei Complementar”, respondendo “pessoal e diretamente pelos danos decorrentes, sem prejuízo da responsabilidade objetiva da entidade pública, quando comprovado que o servidor agiu de acordo com orientação oficial”.

A determinação de sigilo se estende, ainda, pela legislação tributária, apontada nos dispositivos questionados.

Observe-se que o Código Tributário Nacional, no art. 198, “[veda] a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades”.

Questiono, então: de que tratam todos esses dispositivos, senão do sigilo das informações? Na percuciente definição da eminente Ministra Ellen Gracie, exposta durante o julgamento da AC nº 33, “o que ocorre não é propriamente a quebra de sigilo, mas a ‘transferência de sigilo’ dos bancos ao Fisco. Os dados, até então protegidos pelo sigilo bancário, prosseguem protegidos pelo sigilo fiscal”.

Nessa transmutação, importa salientar que inexiste qualquer distinção entre uma e outra espécie de sigilo que possa apontar para uma menor seriedade do sigilo fiscal em face do bancário. Ao contrário, os segredos impostos às instituições financeiras (muitas das quais, de natureza privada), se mantêm, com ainda mais razão, com relação aos órgãos fiscais integrantes da Administração Pública, submetidos que são à mais estrita legalidade. Conforme apontei nos autos do RE nº 389.808/PR,

“não há que se considerar que um gerente de uma instituição privada, um caixa de um banco privado, seja mais responsável do que um auditor fiscal da Receita Federal do Brasil, que tem todas as responsabilizações e pode perder o seu cargo se descumprir a lei. A maioria dos brasileiros faz movimentação bancária em bancos privados, com caixas de banco, funcionários de bancos, escriturários de bancos, gerentes de bancos tendo acesso total a essas movimentações. Todos com o dever de sigilo. O auditor da Receita Federal não tem responsabilidade? Tanto o caixa de banco que quebre o sigilo será penalizado quanto o auditor da Receita Federal do Brasil se o fizer.”.

Trata-se, desse modo, de uma transferência de dados sigilosos de

um determinado portador, que tem o dever de sigilo, para outro, que mantém a obrigação de sigilo.

Note-se que, ao se dizer que há mera transferência de informações, não se está por desconsiderar a possibilidade de utilização dos dados pelo Fisco. Está-se, contudo, a dizer que essa utilização não desnatura o caráter sigiloso da movimentação bancária do contribuinte, e, dessa forma, não tem o condão de implicar violação de sua privacidade.

Para essa conclusão, vale recordar o real intuito da proteção constitucional à privacidade, prevista no art. 5º, X, da CF/88 (“são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”).

Na lição de Ada Pellegrini Grinover,

“[o] direito ao segredo ou o direito ao respeito da vida privada objetiva impedir que a ação de terceiro procure conhecer e descobrir aspectos da vida privada alheia; por outro lado, o direito à reserva ou direito à privacidade sucede o direito ao segredo, compreendendo a defesa da pessoa da divulgação de notícias particulares, embora legitimamente conhecidas pelo divulgador” (GRINOVER, apud ROQUE,

Maria José Oliveira Lima. Sigilo Fiscal e Direito à Intimidade. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2003, p. 43. PELLEGRINI, Ada. Liberdades Públicas e Processo Penal. São Paulo, 1976).

Nesse sentido, o conhecimento da notícia, do dado, da informação não implica, por si, que haja violação da privacidade, desde que: 1) não seja seguido de divulgação; 2) for do domínio apenas de quem legitimamente o detenha.

E é nisso que reside o chamado ‘sigilo fiscal’: o Fisco, é certo, detém ampla informação relativa “[a]o patrimônio, [a]os rendimentos e [à]s atividades econômicas do contribuinte” (art. 145, § 1º, da CF/88), e tem, em contrapartida, o dever de sobre ela silenciar (no sentido de não proceder à divulgação); permanecendo-lhe legítimo utilizar os dados para o fim de exercer os comandos constitucionais que lhe impõem a tributação.

E, enquanto a atividade do Fisco se desenvolver sob esses limites (sigilo e utilização devida), está respaldada pela previsão constitucional inserta no art. 145, § 1º, da CF/88:

“Art. 145. (...)

  • 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”.

Ilustro a legitimidade do Fisco para deter a informação bancária dos contribuintes, retomando o que disse no julgamento do RE nº 389.808/PR: qual o conjunto maior de patrimônio que detém o cidadão? Seus bens, que são – por imposição legal, não por ordem judicial – obrigatoriamente declarados à Secretaria da Receita Federal do Brasil.

E, se a Receita Federal já detém o conjunto maior, que corresponde à declaração do conjunto total de nossos bens, por que ela não poderia ter acesso – também sem autorização judicial e desde que “respeitados os direitos individuais” – ao conjunto menor?

Em síntese, tenho que o que fez a LC 105/01 foi possibilitar o acesso de dados bancários pelo Fisco, para identificação, com maior precisão, por meio de legítima atividade fiscalizatória, do patrimônio, dos rendimentos e das atividades econômicas do contribuinte, sem permitir, contudo, a divulgação dessas informações, resguardando-se a intimidade e a vida íntima do correntista.

Esse resguardo se torna evidente com a leitura sistemática da LC nº 105/01, em verdade, bastante protetiva na ponderação entre o acesso aos dados bancários do contribuinte e o exercício da atividade fiscalizatória pelo Fisco.

O primeiro elemento que evidencia esse conjunto protetivo do cidadão é o sigilo fiscal: conforme já mencionado neste voto, os dados obtidos perante as instituição financeiras são mantidos em sigilo (art. 5º, § 5º, e art. 6º, parágrafo único), tanto que os servidores responsáveis por eventual extravasamento dessas informações devem ser responsabilizados  administrativa e criminalmente (arts. 10 e 11).

Em seguida, pode-se observar o desenvolvimento paulatino da atuação fiscalizatória, que se inicia com meios menos gravosos ao contribuinte: é que a natureza das informações acessadas pelo Fisco na forma do art. 5º da lei complementar é, inicialmente, bastante restrita, limitando-se, conforme dispõe o seu § 2º, à identificação dos “titulares das operações e dos montantes globais mensalmente movimentados, sendo vedada a inclusão de qualquer elemento que permita identificar sua origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados”.

Perceba-se, pois, que, com base nesse dispositivo, a Administração tem acesso apenas a dados genéricos e cadastrais dos correntistas. Essas informações obtidas na forma do art. 5º da LC são cruzadas com os dados fornecidos anualmente pelas próprias pessoas físicas e jurídicas via declaração anual de imposto de renda, de modo que tais informações já não são, a rigor, sigilosas.

Apenas se, no cotejo dessas informações, forem “detectados indícios de falhas, incorreções ou omissões, ou de cometimento de ilícito fiscal, a autoridade interessada poderá requisitar as informações e os documentos de que necessitar, bem como realizar fiscalização ou auditoria para a adequada apuração dos fatos” (§ 4º do art. 5º).

Em tal caso, para o exame mais acurado das informações financeiras por autoridades e agentes fiscais tributários, a LC 105, em seu art. 6º, traça requisitos rigorosos, uma vez que requer: a existência de processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso, bem como a inexistência de outro meio hábil para esclarecer os fatos investigados pela autoridade administrativa.

Além, portanto, de consistir em medida fiscalizatória sigilosa e pontual, o acesso amplo a dados bancários pelo Fisco requer a existência de processo administrativo (ou procedimento fiscal), o que, por si, atrai, ainda, para o contribuinte, todas as garantias da Lei nº 9.784/99 – dentre elas, a observância dos princípios da finalidade, da motivação, da proporcionalidade e do interesse público (art. 2º, caput, da Lei 9.784/99) –, a permitir extensa possibilidade de controle sobre os atos da Administração Fiscal.

O mesmo se diga quanto aos decretos regulamentadores dos arts. 5º e 6º da LC nº 105/01 (Decretos nº 3.724, de 10 de janeiro de 2001, e nº 4.489, de 28 de novembro de 2009), que tão somente densificaram essas previsões normativas, com reforço ao dever de sigilo já imposto na lei complementar.

Percebe-se, pois, a impropriedade do argumento dos autores destas ações de que a Lei Complementar 105/2001, e seus decretos regulamentadores, promoveriam uma “devassa” na vida financeira dos contribuintes. Ao contrário, foram respeitados os direitos e as garantias individuais dos contribuintes, exatamente como determina o art. 145, § 1º, da Constituição Federal, atendendo, destarte, ao princípio da razoabilidade.

Tenho, por tudo quanto foi exposto, que os arts. 5º e 6º da LC nº 105/01, além de não violarem qualquer garantia constitucional, representam o próprio cumprimento dos comandos constitucionais direcionados ao Fisco, bem como dos comandos dirigidos aos cidadãos, na relação tributária que os une. É o que passo a expor.

  1. B) A CONFLUÊNCIA ENTRE OS DEVERES DO CONTRIBUINTE (O DEVER FUNDAMENTAL DE PAGAR TRIBUTOS) E OS DEVERES DO FISCO (O DEVER DE BEM TRIBUTAR E FISCALIZAR)

Por se tratar de mero compartilhamento de informações sigilosas, seria mais adequado situar as previsões legais combatidas na categoria de elementos concretizadores dos deveres dos cidadãos e do Fisco na implementação da justiça social, a qual tem, como um de seus mais poderosos instrumentos, a tributação.

A solução do presente caso perpassa, portanto, pela compreensão de que, no Brasil, o pagamento de tributos é um dever fundamental.

A propósito do tema, vale destacar, por seu pioneirismo, a obra do jurista português José Casalta Nabais. No livro “O Dever Fundamental de Pagar Impostos”, o professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra demonstra, em síntese, que, no Estado contemporâneo – o qual é, essencialmente, um Estado Fiscal, entendido como aquele que é financiado majoritariamente pelos impostos pagos por pessoas físicas e jurídicas – pagar imposto é um dever fundamental.

Na doutrina brasileira, vale mencionar os estudos de Marciano Buffon, que, se debruçando sobre a conceito em referência, destacou a importância do dever fundamental de pagar tributos numa sociedade que se organiza sob as características do Estado Social – como é o caso do Brasil –, pois, nesse modelo, o Estado tem o dever de assegurar a todos uma existência digna, o que pressupõe a concretização de direitos sociais, econômicos e culturais do cidadão, por meio da prestações que demandam recursos públicos. O autor disserta:

“Enfim, não se faz necessário um profundo esforço intelectual para se compreender a importância do dever fundamental de pagar tributos, pois sem ele a própria figura do Estado resta quase inviabilizada, uma vez que não é possível pensar uma sociedade organizada sem que existam fontes de recursos para financiar o ônus dessa organização, exceto se o exemplo pensado for uma sociedade na qual os bens de produção estejam concentrados nas mãos do próprio Estado.

Esse dever fundamental se torna mais significativo quando a sociedade se organiza sob as características do denominado Estado Social, pois esse modelo tem como norte garantir a todos uma existência digna, e isso passa, especialmente, pela realização dos denominados direitos sociais, econômicos e culturais, o que demanda uma gama expressiva de recursos.

(…)

Dentro do modelo do Estado Social, a tributação ocupa

um papel de fundamental importância, porque é esse modelo de Estado que tem o dever de assegurar os direitos fundamentais, sendo que tais direitos são mais necessários aos menos providos da capacidade de contribuir para com a coletividade” (BUFFON, Marciano. Tributação e dignidade humana: entre os direitos e deveres fundamentais. Livraria do Advogado. Porto Alegre, 2009. p. 91).

O tributo corresponde, pois, à contribuição de cada cidadão para a mantença do Estado e, consequentemente, para a realização de atividades que assegurem os direitos fundamentais – notadamente os direitos daqueles que possuem menos condições de contribuir financeiramente com o Estado.

Tendo isso em conta, José Casalta Nabais ressalta que o imposto não deve ser encarado como mero exercício de poder pelo Estado, ou como um sacrifício pelo cidadão,  mas como “contributo indispensável a uma vida em comunidade organizada em estado fiscal. Um tipo de estado que tem na subsidiariedade da sua própria acção (económico-social) e no primado da autorresponsabilidade dos cidadãos pelo seu sustento o seu verdadeiro suporte” (O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p. 679, grifo nosso).

Nesse quadro, evidencia-se a natureza solidária do tributo, o qual é devido pelo cidadão pelo simples fato de pertencer à sociedade, com a qual tem o dever de contribuir. O dever fundamental de pagar tributos está, pois, alicerçado na ideia de solidariedade social. Consoante aduz Marciano Buffon,

“o liame da solidariedade é o fundamento que justifica e legitima o dever fundamental de pagar tributos, haja vista que esse dever corresponde a uma decorrência inafastável de se pertencer a uma sociedade” (p. 99).

A ordem constitucional instaurada em 1988 estabeleceu, dentre os objetivos da República Federativa do Brasil, construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Para tanto, a Carta foi generosa na previsão de direitos individuais, sociais, econômicos e culturais para o cidadão.

Ocorre que, correlatos a esses direitos, existem também deveres, cujo atendimento é, também, condição sine qua non para a realização do projeto de sociedade esculpido na Carta Federal. Dentre esses deveres, consta o dever fundamental de pagar tributos, visto que são eles que, majoritariamente, financiam as ações estatais voltadas à concretização dos direitos do cidadão.

Sendo o pagamento de tributos, no Brasil, um dever fundamental, por representar o contributo de cada cidadão para a manutenção e o desenvolvimento de um Estado que promove direitos fundamentais, é preciso que se adotem mecanismos efetivos de combate à sonegação fiscal.

Em 2015, a sonegação fiscal no país ultrapassou a marca dos R$ 420 bilhões, valor estimado pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda (SINPROFAZ) ainda no mês de outubro daquele ano, conforme noticiou o portal Estadão, em 22 de outubro de 2015. Segundo o editorial, esse valor equivale a 13 (treze) vezes o valor que o governo pretende arrecadar com a volta da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira.

Notícia publicada no portal Valor Econômico, em 9 de novembro de 2013, apontou que, segundo levantamento realizado pelo grupo internacional Tax Justice Network, com base em dados de 2011 do Banco Mundial, o Brasil só perde para a Rússia no ranking mundial da sonegação fiscal.

Estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), em 2009, traçou um diagnóstico acerca da sonegação fiscal em nosso país, a qual já era expressiva à época, mas menor que nos dias atuais. As conclusões foram, em síntese, as seguintes:

“- Sonegação das empresas brasileiras vem diminuindo, mas ainda corresponde a 25% do seu faturamento;

  • Em 2000 o índice de sonegação era de 32% e em 2004 era

de 39%;

  • Faturamento não declarado é de R$ 1,32 trilhão;
  • Tributos sonegados pelas empresas somam R$ 200 bilhões por ano;
  • Somados aos tributos sonegados pelas pessoas físicas, sonegação fiscal no Brasil atinge 9% do PIB;
  • Cruzamento de informações, retenção de tributos e fiscalização mais efetiva são os principais responsáveis pela queda da sonegação;
  • Contribuição Previdenciária (INSS) é o tributo mais sonegado, seguida do ICMS e do Imposto de Renda;
  • Indícios de sonegação estão presentes em 65% das empresas de pequeno porte, 49% das empresas de médio porte e 27% das grandes empresas;
  • Em valores, a sonegação é maior no setor industrial, seguido das empresas do comércio e das prestadoras de serviços;
  • Com os novos sistemas de controles fiscais, em 5 anos o

Brasil terá o menor índice de sonegação empresarial da América Latina e em 10 anos índice comparado ao dos países desenvolvidos.”

A sonegação fiscal gera uma série de consequências danosas para a sociedade.

A sonegação determina drástica redução da receita pública, o que impacta negativamente na prestação de serviços essenciais pelo Estado e, consequentemente, na concretização de direitos fundamentais sociais, tais como educação, saúde e assistência e previdência sociais. Quanto a esse aspecto, José Paulo Baltazar Junior assinala:

“De lembrar, nesse ponto, que vivemos em um Estado social de direito, e o interesse do Estado, ao tributar, não se esgota na arrecadação, mas transcende para a aplicação dos recursos auferidos, até mesmo para a concretização  dos direitos fundamentais sociais, como a saúde, a educação, a assistência e a previdência sociais, os quais são direitos a prestações concretas, que demandam ação, e não mera omissão do estado e portanto, dependem da existência de recursos para a sua efetivação” (Sigilo bancário e privacidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005).

Ademais, a prática em referência inviabiliza a concretização dos princípios da isonomia e da capacidade contributiva.

No estado fiscal, em que os cidadãos estão ligados por um liame de solidariedade, do qual decorre um dever de contribuir financeiramente para o funcionamento do Estado, o cidadão detém o direito de que todos os demais contribuintes paguem o tributo devido, de modo que haja uma distribuição justa dos encargos financeiros.

A sonegação fiscal subverte essa lógica, visto que, embora a arrecadação possa ser menor que a esperada, as necessidades de caixa do governo jamais diminuem, o que redunda em aumento da carga tributária.

Segundo expõe Joana Marta Onofre de Araújo, em dissertação de mestrado, a sonegação gera uma distribuição desigual da carga tributária, visto que os custos dessa prática tendem a ser redirecionados, vindo a recair sobre a classe de trabalhadores tributada na fonte (A legitimação do tributo como pressuposto para a concretização do Estado Social. Fortaleza, 2012).

Nesse cenário, importa destacar que o instrumento fiscalizatório instituído nos arts. 5º e 6º da Lei Complementar nº 105/2001 se mostra de extrema significância ao efetivo combate à sonegação fiscal no país.

Consoante observou o Procurador-Geral da República, no parecer oferecido na ADI 4.010, cuja cópia foi juntada à ADI nº 2390, sem o mecanismo em referência, seria

“inviável à administração tributária aferir a real disponibilidade patrimonial e financeira do contribuinte. Num país continental, torna-se economicamente insustentável e até mesmo impossível equipar a administração tributária para fiscalizar todos os contribuintes em tempo real”.

A Ministra Cármen Lúcia, no julgamento do RE nº 389.808, também assinalou a necessidade do compartilhamento de dados bancários com o Fisco para que o Estado cumpra seu papel de agente fiscalizador:

“Também acho que não há como se dar cobro às finalidades do Estado, especialmente da Administração Fazendária, e até ao Direito Penal, nos casos em que precisa haver investigação e penalização, se não houver acesso a esses dados, que, de toda sorte, já são de conhecimento das instituições financeiras que nem Estado são.”

O entendimento aqui defendido é corroborado pelo estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) mencionado acima, que atestou que o cruzamento de informações é um dos principais responsáveis pela queda da sonegação, o que confirma a imprescindibilidade da aplicação das normas ora questionadas.

Outrossim, Saldanha Sanches e Taborda da Gama destacam que, nos sistemas em que o pagamento de impostos é baseado na declaração do próprio contribuinte, como é o caso do Imposto de Renda no Brasil, a impossibilidade de acesso às movimentações bancárias do cidadão equivale a estabelecer quase uma presunção absoluta da veracidade desta declaração, visto que não há outra forma de aferir a veracidade das informações (Sigilo bancário: crônica de uma morte anunciada. In: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes e GUIMARÃES, Vasco

Branco (Org.). Sigilos Bancário e Fiscal. Belo Horizonte: Fórum, 2001).

Ressalta-se, ainda, que o acesso às informações bancárias pela Administração é relevante não só para coibir os casos de sonegação fiscal, mas também para o combate às organizações criminosas, às fraudes do comércio exterior e às condutas caracterizadoras de concorrência desleal. Mais recentemente, tem-se mostrado instrumento essencial no combate à corrupção no país e aos crimes de lavagem de dinheiro, dentre tantos outros delitos.

Atente-se que o Brasil assumiu compromissos internacionais relativos à transparência e ao intercâmbio de informações financeiras para fins tributários e de combate à movimentação de dinheiro de origem ilegal no mundo.

Com efeito, o Brasil é membro do Fórum Global sobre Transparência e Intercâmbio de Informações para Fins Tributários (Global Forum on Transparency and Exchange of Information for Tax Purposes), órgão criado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE) no âmbito das ações voltadas ao combate à concorrência fiscal danosa gerada pelos paraísos fiscais.

Os motivos que levaram à criação do órgão remontam à elaboração pela OCDE, em 1988, do relatório denominado “Harmful Tax

Competition - an Emerging Global Issue”. Esse relatório especificou as práticas observadas em determinados países que poderiam ser vistas como indícios de concorrência fiscal prejudicial, constando dentre elas a ausência de transparência e a restrição à obtenção de informações em nome do contribuinte.

Todos os países do G20 aderiram ao fórum global, que, atualmente, conta com 127 (cento de vinte e sete) membros, segundo informação do portal da Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda.

Em síntese, o Fórum estabelece padrões internacionais de transparência e de troca de informações na área tributária, com o fito de evitar o descumprimento de normas tributárias – especialmente por meio do combate aos paraísos fiscais –, assim como o cometimento de atos ilícitos, por pessoas ou empresas, por meio de transações internacionais. A partir desses padrões, o Fórum monitora o nível de transparência desses países em matéria fiscal.

No âmbito do Fórum, a avaliação do nível de transparência dos países ocorre por meio de um processo de revisão pelos pares (peer review), o qual é dividido em duas fases. Na fase 1, é avaliada a estrutura das leis e da regulação de cada jurisdição associada ao Fórum, a fim de verificar sua compatibilidade aos padrões internacionais de transparência estabelecidos no termo de referência. Na fase 2, analisa-se a implementação prática dos instrumentos indicados na fase anterior. São avaliados a) se a informação é disponível e acessível pelas autoridades na prática; e b) se a informação é realmente compartilhada em tempo hábil.

Segundo informa o portal da Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, o Brasil foi avaliado, quanto à fase 1, no 1º semestre de 2011, e quanto à fase 2, teve relatório aprovado em julho de 2013. A partir de 2016, os países serão reavaliados, estando a reavaliação do Brasil prevista para 2018.

Em julho de 2014, foi desenvolvido um padrão global para o intercâmbio automático de informações para fins tributários (Standard for Automatic Exchange of Financial Account Information in Tax Matters), o qual insta as jurisdições a obter informações perante instituições financeiras e disponibilizá-las automaticamente a outras jurisdições anualmente, conforme definição obtida no portal da OCDE:

“G20 Leaders at their meeting in September 2013 fully endorsed the OECD proposal for a truly global model for automatic exchange of information and invited the OECD, working with G20 countries, to develop such a new single standard for automatic exchange of information, including the technical modalities, to better fight tax evasion and ensure tax compliance.

The Standard, developed in response to the G20 request and approved by the OECD Council on 15 July 2014, calls on jurisdictions to obtain information from their financial institutions and automatically exchange that information with other jurisdictions on an annual basis. It sets out the financial account information to be exchanged, the financial institutions required to report, the different types of accounts and taxpayers covered, as well as common due diligence procedures to be followed by financial institutions.”

O Brasil se comprometeu, perante o G20 e o Fórum Global, a adotar esse padrão a partir de 2018, de modo que não deve o Estado brasileiro prescindir do acesso automático aos dados bancários dos contribuintes por sua administração tributária, sob pena, inclusive, de descumprimento de seus compromissos internacionais.

Destaco que na VI Cúpula do BRICS, ocorrida em julho de 2014, o Brasil renovou o compromisso de cooperação nos foros internacionais voltados ao intercâmbio de informações em matéria tributária, conforme consta do item 17 da Declaração de Fortaleza:

“17. Acreditamos que o desenvolvimento sustentável e o crescimento econômico serão facilitados pela tributação dos rendimentos gerados nas jurisdições onde a atividade econômica transcorre. Manifestamos nossa preocupação com o impacto negativo da evasão tributária, fraude transnacional e planejamento tributário agressivo na economia global. Estamos cientes dos desafios criados pelo planejamento tributário agressivo e práticas de não cumprimento de normas.

Afirmamos, portanto, nosso compromisso em dar continuidade a um enfoque cooperativo nas questões relacionadas à administração tributária e aprimorar a cooperação nos foros internacionais devotados à questão da erosão da base tributária e intercâmbio de informação para efeitos tributários. Instruímos também nossas autoridades competentes a explorar formas de reforçar a cooperação na área aduaneira.“

Esses movimentos de cooperação internacional para a troca de informações para fins tributários evidenciam que o compartilhamento de informações financeiras dos contribuintes com as administrações tributárias é uma tendência internacional.

De fato, conforme esclarece Carlos Alberto Habström, a previsão do art. 5º da LC 105/2001 não é uma inovação do Direito Brasileiro, visto que normas semelhantes foram adotadas, por exemplo, nos Estados Unidos, na Argentina, na Itália, na Espanha e na Austrália:

“A justificativa do projeto de lei que resultou neste artigo da LC 105 oferece, como se verá adiante, informações sobre a legislação norte-americana que efetivamente exige dos bancos, dentre outras coisas, a comunicação à administração tributária (no caso à repartição do imposto sobre a renda, o Internal Revenue Service), mensalmente, das operações superiores a dez mil dólares.

Exigência semelhante foi adotada pela Argentina, há alguns anos, mediante lei que obrigou os bancos a comunicarem à Direción General Impositiva (DGI), órgão equivalente à Receita Federal, todas as operações de valor superior a 12 mil dólares.

Na Itália, uma extensa legislação, referente ao imposto sobre a renda e ao IVA (imposto de valor agregado), que começou a ser implantada em 1971, objetivando o combate à evasão fiscal e à lavagem de dinheiro, foi ampliando os poderes da chamada Amministrazione finanziaria e derrogando o segredo bancário. Com a aprovação da Lei nº 413, de 1991, que permitiu a requisição direta de informações e documentos aos bancos, independentemente de certos pressupostos e de formalidade anteriormente exigidas, chegou-se a falar em ‘abolição’ do segredo bancário. Nas palavras de Enrico Gianfelici (ob. cit. p. 177), as mudanças introduzidas pela nova lei importam verdadeira eliminação do segredo bancário perante a Administração tributária, sob o argumento de ser necessário evitar-se que o instituto se transformasse em proteção para a evasão fiscal e para a criminalidade econômica: (….).

O mesmo se poderia dizer da legislação espanhola, adiante mencionada.

Na Austrália, a lei denominada Financial Transiction Reports Act, de 1988, e legislação posterior, obriga as instituições financeiras a informarem a uma agência especializada (Australian Transacion Reports and Analysis Centre – AUSTRAC, equivalente ao COAF, no Brasil) operações relevantes em dinheiro – significant cash transactions, expressão que designa as operações de transferência de moeda (pagamentos, ordens de crédito, etc) em valor igual ou superior a dez mil dólares australianos. Às informações obtidas pelo AUTRAC podem ter acesso a administração tributária (Autralian Taxation Office), a agência alfandegária (Australian Customs Service), o Procurador-Geral do país, para fins de colaboração internacional, nos termos de lei específica (Mutual Assistence in Criminal Matters Act), e, ainda, outras autoridades (law enforcement agencies)” (Comentários à Lei de Sigilo Bancário. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2009).

O autor em referência observa que tais legislações se inserem num quadro que compreende não só o enfrentamento da evasão fiscal, mas também o combate a práticas criminosas que envolvem a circulação internacional de dinheiro de origem ilícita, tais como o narcotráfico, o crime organizado, a lavagem de dinheiro e o terrorismo.

Considerando o cenário internacional aqui exposto, fica claro que eventual declaração de inconstitucionalidade dos arts. 5º e 6º da Lei Complementar 105/2001 poderia representar um retrocesso de nosso país em matéria de combate à sonegação fiscal e a uma séria de crimes que envolvem a circulação internacional de dinheiro de origem ilícita.

Tenho, por tudo quanto abordado no presente tópico, que a atuação fiscalizatória traçada nos arts. 5º e 6º da LC nº 105/01 e em seus decretos regulamentadores (Decretos nº 3.724/2001 e nº 4.489/2002) não encerra inconstitucionalidade; ao contrário, retrata o pleno cumprimento dos comandos constitucionais e dos compromissos internacionais assumidos nessa seara pela República Federativa do Brasil.

4 – CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1º DA LEI COMPLEMENTAR Nº 104/2001

Quanto à impugnação ao art. 1º da Lei Complementar 104/2001, no ponto em que insere o § 1º, inciso II, e o § 2º ao art. 198 do CTN, esclareço que os referidos dispositivos se referem ao sigilo imposto à Receita Federal quando essa detém informações sobre a situação econômica e financeira do contribuinte. Rememoro o teor dos dispositivos:

“Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades.

  • 1º Excetuam-se do disposto neste artigo, além dos casos previstos no art. 199, os seguintes:
  • – requisição de autoridade judiciária no interesse da

justiça;

  • – solicitações de autoridade administrativa no interesse da Administração Pública, desde que seja comprovada a instauração regular de processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por prática de infração administrativa.
  • 2º O intercâmbio de informação sigilosa, no âmbito da Administração Pública, será realizado mediante processo regularmente instaurado, e a entrega será feita pessoalmente à autoridade solicitante, mediante recibo, que formalize a transferência e assegure a preservação do sigilo.”

Os preceitos impugnados autorizam o compartilhamento de tais informações com autoridades administrativas, no interesse da Administração Pública, desde que comprovada a instauração de processo administrativo, no órgão ou entidade a que pertence a autoridade solicitante, destinado a investigar, pela prática de infração administrativa, o sujeito passivo a que se refere a informação.

Destaco que o § 2º exige a instauração de processo administrativo para esse compartilhamento (o que atrai o respectivo regramento), além de determinar que a entrega das informações seja feita pessoalmente à autoridade solicitante, mediante recibo, de modo a assegurar a preservação do sigilo.

Mais uma vez, o legislador preocupou-se em criar mecanismos que impedissem a circulação ou o extravasamento das informações relativas ao contribuinte. Nota-se, diante de tais cautelas da lei, que não há propriamente quebra de sigilo, mas sim transferência de informações sigilosas no âmbito da Administração Pública.

Novamente estamos diante de um mecanismo voltado à satisfação do interesse público primário, visto que destinado à apuração de infrações administrativas.

Saliente-se que a previsão vai ao encontro de outros comandos legais já amplamente consolidados em nosso ordenamento jurídico que permitem o acesso da Administração Pública à relação de bens, renda e patrimônio de determinados indivíduos.

Começo por lembrar o art. 13, da Lei nº 8.429/92 (lei de improbidade administrativa), que dispõe, em seu caput, que

“a posse e o exercício de agente público ficam condicionados à apresentação de declaração dos bens e valores que compõem o seu patrimônio privado, a fim de ser arquivada no serviço de pessoal competente”; obrigação que, ressalte-se, será “anualmente atualizada e na data em que o agente público deixar o exercício do mandato, cargo, emprego ou função”.

A regulamentação desse dispositivo se deu por meio do Decreto nº 5483/05, que prevê, inclusive, a possibilidade de que os órgãos de controle interno da Administração Pública instaurem procedimento de sindicância patrimonial (ou requeiram sua instauração ao órgão ou autoridade competente) sempre que, na fiscalização das declarações apresentadas, identifique incompatibilidade patrimonial.

A Lei nº 8.730/93, de igual modo, estabelece a obrigatoriedade da apresentação de declaração de bens e rendas para o exercício de cargos, empregos e funções nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Notese que a ordem alcança as seguintes autoridades e servidores:

“I - Presidente da República;

  • - Vice-Presidente da República;
  • - Ministros de Estado;
  • - membros do Congresso Nacional;
  • - membros da Magistratura Federal;
  • - membros do Ministério Público da União;
  • - todos quantos exerçam cargos eletivos e cargos, empregos ou funções de confiança, na administração direta, indireta e fundacional, de qualquer dos Poderes da União.”

Observe-se que cópia da declaração de imposto de renda será remetida ao Tribunal de Contas da União (§ 2º, do art. 1º), que manterá registro dos dados e exercerá o controle da legalidade e da legitimidade desses bens e rendas. A não apresentação dessa declaração (ou a não autorização para que o TCU tenha acesso à Declaração Anual de Bens e Rendimentos apresentada à Receita Federal) implica, conforme seja a autoridade omissa:

“a) crime de responsabilidade, para o Presidente e o VicePresidente da República, os Ministros de Estado e demais autoridades previstas em lei especial, observadas suas disposições; ou

  1. b) infração político-administrativa, crime funcional ou falta grave disciplinar, passível de perda do mandato, demissão do cargo, exoneração do emprego ou destituição da função, além da inabilitação, até cinco anos, para o exercício de novo mandato e de qualquer cargo, emprego ou função pública, observada a legislação específica.” (art. 3º, parágrafo único, a e b).

A rigor, portanto, já há uma ampla atuação da Administração Pública sobre a esfera de intimidade patrimonial dos seus agentes, justificada pela evidente necessidade de salvaguarda do patrimônio e do interesse públicos.

Trata-se, ademais, de normas intimamente relacionadas ao dever de

ética e moralidade que deve pautar o exercício de cargos públicos. O art. 1º, da LC nº 104/01, ora combatido, segue nesse mesmo sentido, já que o acesso aos dados constantes do Fisco poderá ser requerido quando identificada infração administrativa, prática evidentemente contrária àqueles deveres.

Diante disso, reputo constitucional o art. 1º da Lei Complementar nº 104/2001 no ponto em que insere o § 1º, inciso II, e o § 2º no art. 198 do

CTN.

5 – CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 3º, § 3º, DA LC 105/2001

Por fim, o art. 3º, § 3º, da LC 105/2001, também impugnado neste conjunto de ações, prevê que o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários forneçam à Advocacia-Geral da União “as informações e documentos necessários à defesa da União nas ações em que seja parte”. Quanto a esse dispositivo, alega-se que ele violaria a igualdade processual entre as partes, por criar uma espécie de privilégio para a União.

Entendo, no entanto, ser esta uma interpretação equivocada do dispositivo. É que o acesso pelo Fisco aos dados e informações bancárias podem, legitimamente, resultar em notificações dos contribuintes e mesmo em lançamento tributário, situações em que, havendo pretensão resistida, a questão será judicializada. À Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, órgão da Advocacia-Geral da União, caberá a defesa da atuação do Fisco em âmbito judicial, sendo, para tanto, necessário o conhecimento dos dados e informações embasadores do ato por ela defendido.

Tal previsão, ressalte-se, já é prática recorrente: os órgãos de defesa da União solicitam aos órgãos federais envolvidos em determinada lide informações destinadas a subsidiar a elaboração de contestações, recursos e outros atos processuais. Conforme bem delineado por Carlos Alberto Habström:

“(...) Ora, nos termos daquela legislação, os órgãos jurídicos da Administração Federal estão, hoje – melhor dizendo, talvez, a partir da criação da AGU – estreitamente interligados. É como se formassem um grande departamento administrativo, com divisões ou seções especializadas.

Ora, a maioria das ações ajuizadas contra a União envolvem atos normativos ou administrativos de órgãos da administração direta e indireta, normalmente também integrantes do polo processual passivo. Na prática, como sabe quem quer que tenha algum conhecimento da máquina jurídica federal, em todos esses casos a defesa da União solicita aos órgãos envolvidos subsídios para as contestações.

É nesse contexto que se insere a norma ora comentada.

Não há que falar, portanto, em transformação da União em ‘superparte’, privilegiada e avassaladora, caracterizando-se como um excesso de cautela ou de zelo do legislador.

Seja como for, exemplos de hipóteses de aplicação dessa norma são ações como aquelas decorrentes da implantação do PROER a da decretação de regimes especiais em instituições financeiras (liquidação extrajudicial, intervenção ou administração especial temporária).

De modo geral, em ações da espécie estarão em causa informações sobre atividades e operações do BC, da CMV e das instituições financeiras envolvidas. Só por exceção se pode pensar na necessidade de informações sobre operações realizadas por terceiros, sobretudo por clientes. Em princípio, informações dessa natureza só podem vir à tona mediante autorização judicial” (Comentários à Lei de Sigilo Bancário. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2009, p. 348).

De nada adiantaria a possibilidade de acesso dos dados bancários pelo Fisco se não fosse possível que essa utilização legítima fosse objeto de defesa em juízo por meio do órgão por isso responsável, a AdvocaciaGeral da União, razão pela qual entendo que o art. 3º, § 3º, da LC 105/2001 é constitucional.

6 – CONCLUSÃO

Ante o exposto, conheço parcialmente da ADI nº 2.859/DF, para (i) julgar prejudicada a ação em relação ao Decreto nº 4.545/2002 e (ii) julgar improcedente a ação, declarando a constitucionalidade do art. 5º, caput e seus parágrafos, da Lei Complementar nº 105/2001.

Quanto às demais ações (ADI nºs 2390, 2397, e 2386), conheço das ações e as julgo improcedentes, declarando a constitucionalidade do 1º, § 3º, inciso VI, na parte em que remete aos arts. 5º e 6º; da expressão “do inquérito ou”, contida no art. 1º, § 4º; do art. 3º, § 3º; e dos arts. 5º e 6º, todos da Lei Complementar  nº 105/2001; dos Decretos nº 3.724/2001 e nº 4.489/2002, que regulamentam, respectivamente, os arts. 6º e 5º da Lei Complementar  nº 105/2001, e do art. 1º da Lei Complementar 104/2001, no ponto em que insere o § 1º, inciso II, e o § 2º no art. 198 do CTN.

É como voto.


Charles M. Machado é advogado formado pela UFSC, Universidade Federal de Santa Catarina, consultor jurídico no Brasil e no Exterior, nas áreas de Direito Tributário e Mercado de Capitais. Foi professor nos Cursos de Pós Graduação e Extensão no IBET, nas disciplinas de Tributação Internacional e Imposto de Renda. Pós Graduado em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Salamanca na Espanha. Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário e Membro da Associação Paulista de Estudos Tributários, onde também é palestrante. Autor de Diversas Obras de Direito. Email: charles@dantinoadvogados.com.br


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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