Startups e a reserva de mercado    

14/12/2020

A inovação é um requisito indispensável a uma startup, o que se subordina à observância de, pelo menos, três aspectos: a) a existência de uma nova ideia; b) a percepção da utilidade da nova ideia; c) a necessidade de implantação dessa nova ideia.[1]

Essas inovações, em regra calcadas no avanço tecnológico, nem sempre se destinam à criação de novos produtos ou serviços. Muitas vezes, voltam-se à melhoria de processos e à otimização de produtos ou serviços já existentes, como ocorre com os aplicativos de transportes de pessoas e coisas. Cria-se, com isso, um ambiente propício à competição entre diferentes agentes econômicos, o que atende aos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência (art. 170, “caput”, IV, § único, da CF).

A livre iniciativa, princípio básico do liberalismo econômico,[2] “tem uma conotação normativa positivada (liberdade a qualquer pessoa) e um viés negativo (imposição da não-intervenção estatal)”,[3] ou seja, projeta a liberdade individual no plano da economia, assegurada a livre escolha das profissões e das atividades econômicas e a utilização dos meios mais apropriados à consecução dos fins desejados. A livre concorrência, por sua vez, “é algo que se agrega à livre iniciativa, e que consiste na situação em que se encontram os diversos agentes produtores de estarem dispostos à concorrência de seus rivais.”.[4]

A Constituição Federal estabelece ainda, no seu art. 173, § 4º, que “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Como se vê, é indiferente que a dominação dos mercados e a eliminação da concorrência sejam causadas por agentes do setor privado ou público, ou, ainda, por autorizatários ou permissionários de dado serviço público.

Com efeito, nem mesmo ao Estado é lícito atuar em regime de monopólio no exercício de atividade econômica, conforme se extrai do art. 173, §§ 1º a 3º, da Constituição.

No tocante ao serviço de transporte individual de passageiros, o STF, no julgamento do RE 1.054.110/SP, em regime de repercussão geral, prestigiou a inovação tecnológica e reprimiu a reserva de mercado, ainda que implementada por meio de lei, ou, melhor dizendo, baseada em ato normativo. Veja-se o seguinte trecho da ementa:

“[...]. 3. As normas que proíbam ou restrinjam de forma desproporcional o transporte privado individual de passageiros são inconstitucionais porque: (i) não há regra nem princípio constitucional que prescreva a exclusividade do modelo de táxi no mercado de transporte individual de passageiros; (ii) é contrário ao regime de livre iniciativa e de livre concorrência a criação de reservas de mercado em favor de atores econômicos já estabelecidos, com o propósito de afastar o impacto gerado pela inovação no setor; (iii) a possibilidade de intervenção do Estado na ordem econômica para preservar o mercado concorrencial e proteger o consumidor não pode contrariar ou esvaziar a livre iniciativa, a ponto de afetar seus elementos essenciais. Em um regime constitucional fundado na livre iniciativa, o legislador ordinário não tem ampla discricionariedade para suprimir espaços relevantes da iniciativa privada. 4. A admissão de uma modalidade de transporte individual submetida a uma menor intensidade de regulação, mas complementar ao serviço de táxi afirma-se como uma estratégia constitucionalmente adequada para acomodação da atividade inovadora no setor. Trata-se, afinal, de uma opção que: (i) privilegia a livre iniciativa e a livre concorrência; (ii) incentiva a inovação; (iii) tem impacto positivo sobre a mobilidade urbana e o meio ambiente; (iv) protege o consumidor; e (v) é apta a corrigir as ineficiências de um setor submetido historicamente a um monopólio “de fato; [...]” (STF, Pleno, RE 1054110, rel. Min. Roberto Barroso, j. 09/05/2019, p. 06/09/2019).

Como sabido, a “ratio decidendi” de uma decisão judicial nada mais é do que a razão fundamental para a tomada da decisão em uma sentença ou acórdão, ou seja, é aquilo que influi diretamente para a decisão. É a porção argumentativa vinculante de um precedente, conforme doutrina de Luiz Guilherme Marinoni: “a razão de decidir, numa primeira perspectiva, é a tese jurídica ou a interpretação da norma consagrada na decisão. De modo que a razão de decidir certamente não se confunde com a fundamentação, mas nela se encontra.”.[5]

Ainda que não se tenha mencionado diretamente o referido precedente obrigatório, recente v. acórdão do TJ/SP tratou de caso similar envolvendo plataforma digital que une consumidores que procuram transporte fretado e empresas. Reconheceu-se, no caso, que qualquer obstáculo judicial ao exercício de atividade econômica “implicaria em violação aos preceitos da livre iniciativa e da livre concorrência. Inclusive, violaria os direitos dos consumidores, que tem devem ter acesso ao serviço de qualidade e a preços módicos.”. Eis o teor da ementa:

“AÇÃO CIVIL PÚBLICA Serviço de intermediação de transporte Plataforma digital que une consumidores que buscam transporte fretado e empresas Licitude a atividade econômica Particular que pode prestar serviço de transporte na modalidade fretada, desde que cumpridas as exigências administrativas - Legislação invocada pelo apelante que não se aplica ao caso concreto - Ré-apelada que é a mera intermediadora do serviço Inexistência de prova de que a ré é negligente no cadastramento e eleição dos fretadores Inocorrência de concorrência desleal. Recurso improvido.” (TJSP, 23ª Câmara de Direito Privado, Apelação nº 1033775-97.2018.8.26.0053, rel. Des. J. B. Franco de Godoi, j. 09/12/2020.

Desse modo, se o “Poder Público, por múltiplas razões, não consegue prestar com eficiência os serviços a seu cargo, acompanhar o desenvolvimento da tecnologia, as mudanças na sociedade, o anseio de rapidez típico do mundo contemporâneo”,[6] não é lícito a esse mesmo Poder Público, por qual argumento for, agir para reprimir a livre iniciativa e a livre concorrência.

 

Notas e Referências

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

FREITAS, Vladimir Passos de. Avanço tecnológico nos tribunais, Buser e profissões, entre ontem e hoje. Disponível em: [https://www.conjur.com.br/2018-mar-11/segunda-leitura-avanco-tecnologico-buser-profissoes-entre-ontem-hoje]. Acesso em: 11/12/2020.

OIOLI, Erik Frederico. Por que um “direito para startups”. In: Manual de direito para startups. 2. ed. São Paulo: RT, 2020.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 43. ed. São Paulo: Malheiros, 2020.

TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2. ed. São Paulo: Método, 2006.

[1] OIOLI, Erik Frederico. Por que um “direito para startups”. In: Manual de direito para startups. 2. ed. São Paulo: RT, 2020, p. 17.

[2] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 43. ed. São Paulo: Malheiros, 2020, p. 808.

[3] TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 83.

[4] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 459.

[5] MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes: justificativa do novo CPC. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 220.

[6] FREITAS, Vladimir Passos de. Avanço tecnológico nos tribunais, Buser e profissões, entre ontem e hoje. Disponível em: [https://www.conjur.com.br/2018-mar-11/segunda-leitura-avanco-tecnologico-buser-profissoes-entre-ontem-hoje]. Acesso em: 11/12/2020.

 

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