Recentemente entrou em vigor a Lei nº 14.132/21, que criou o crime de “perseguição ameaçadora”, o denominado “stalking”[1], adicionando ao Código Penal o art. 147-A, cujo caput prescreve: “Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.”
A despeito da comemoração levada a efeito por muitos em razão da nova figura delitiva, parece-nos que o tipo é muito aberto, carente de várias complementações, o que o torna campo fértil para o subjetivismo. Em simples palavras: do modo como redatado, viola o princípio da estrita legalidade, no desdobramento da taxatividade.
Como temos insistindo:
O direito penal tem na linguagem estrita o limite do exercício constitucional, portanto legítimo, da competência sancionatória do Estado. Os tipos penais devem conter com exatidão a descrição da conduta indesejada e a respectiva sanção penal pelo ingresso da pessoa humana nos termos da conduta tipificada. O regime jurídico-constitucional determina que a lei penal deva ser certa, inadmitindo dúvidas semânticas, porque o questionamento pode representar a tipificação equivocada de uma conduta humana, desencadeando uma invasão na esfera privada, comportamental, da pessoa humana.[2]
Nada a comemorar, portanto, com a chamada figura do stalking.
Não obstante a vaguidão semântica do caput, a reflexão que agora se enceta, para as modestas finalidades deste escrito, irá se deter no parágrafo §1º, em seu inciso II, no qual se estabelece uma majorante — de questionável constitucionalidade —, a qual diz respeito à perseguição efetuada “contra mulher por razões da condição do sexo feminino, nos termos do §2º-A do art. 121 deste Código”[3].
Esta expressão (“contra mulher, por razões do sexo feminino”) já enfrentou críticas à época de sua entrada em vigor para a criação da qualificadora do feminicídio[4] pois, como observado, a doutrina se divide quanto a considerá-la, no homicídio, como fórmula de qualificadora objetiva, ou seja, onde basta ser o crime cometido contra mulher[5] e nada mais; de qualificadora subjetiva, a qual exigiria, além de se cometer contra mulher, a parte subjectit[6], que seria uma motivação ínsita de desprezo pela figura feminina; ou mista[7].
Em direito penal, porém, a hermenêutica, em que pese admitir diversos vetores para atingir seus fins, não pode jamais distanciar-se por completo da interpretação gramatical que, apesar de ser tida como técnica singela, tem na letra da lei a contenção primeira e maior do arbítrio e que, por isso mesmo, jamais deve ser ultrapassada quando se trata de imposição de pena a uma pessoa[8].
Neste sentido, a introdução, no crime de perseguição, da mesma expressão contida na qualificadora do homicídio, conduz-nos, agora ainda mais, à indagação se se trata, dessa feita, de causa de aumento de pena objetiva, subjetiva ou mista.
De saída, afirmamos: é subjetiva!
Não fosse esta a intenção do legislador ao elaborar a norma penal, teria ele inserido tão somente a expressão “contra mulher”. Ao fixar o complemento “por razões do sexo feminino”, quis explicar a expressão anterior e distingui-la das demais (como a que viesse sozinha no texto), demonstrando, com isso, que há necessidade da concorrência destes dois elementos para que incida a causa de aumento de pena.
A palavra “razões”, inclusive, no campo semântico, já remete a “explicações”, a “fundamentações”, a “motivações” da perseguição efetuada. É dizer, se faz necessário que a conduta seja perpetrada contra mulher e motivada por razões do sexo feminino, que aqui se entende como o desprezo e aversão pela figura feminina.
Entendimento diverso levaria a concluir o absurdo de considerar como causa de aumento de pena até mesmo a perseguição de uma mulher contra outra mulher, afastando-se completamente da finalidade político-criminal para a qual a causa de ascensão da reprimenda foi elaborada.
Além do mais, violaria o princípio da igualdade, estabelecido no caput do art. 5º da Constituição, ao punir de forma mais grave a perseguição efetuada contra uma mulher, que aquela efetuada contra o homem, sendo que, a depender do caso concreto, a reprovabilidade da conduta e lesão ao bem jurídico poderia ser bem maior quando a vítima for homem, que aquela em que a vítima é mulher.
Não bastasse isso, existem consequências práticas consideráveis ao se tomar esta causa de aumento de pena como objetiva. É que em eventual concurso de crime de homicídio e crime de perseguição, poderá ser alegada a figura privilegiada do §1º do art. 121, que é subjetiva, mesmo com a incidência do §1º do art. 147-A que, no caso, seria entendida como objetiva. A jurisprudência entende como perfeitamente possível a incidência de qualificadoras objetivas e subjetivas (ainda que no crime de perseguição seja uma causa de aumento de pena)[9].
Em outras palavras, poderá o autor ser condenado por ter praticado homicídio contra uma mulher e anteriormente lhe perseguido (aludido concurso de crimes), mas com o segundo crime com incidência de causa de aumento de pena (§1º, II, do art. 147-A), ao mesmo tempo em que, no primeiro crime (homicídio), condenado com a qualificadora do feminicídio (§2º-A do art. 121), e sendo beneficiado por ter agido por “motivo de relevante valor social ou moral” (§1º do art. 121).
Tal compreensão ofende o raciocínio segundo o qual, do ponto de vista valorativo da conduta, perseguir uma mulher por razões do sexo feminino é algo abjeto e vil e, matá-la em seguida, poder ser algo motivado por um sentimento relevante e elevado.
Doutra sorte, se for considerada subjetiva, proteger-se-á a mulher deste absurdo, uma vez que, como acontece no homicídio, o privilégio do §1º, que é subjetivo, não pode concorrer com as qualificadoras subjetivas do §2º do mesmo artigo 121 (HC/STF 97.034/MG). Assim, impede-se que alguém, no concurso de crimes, condenado por ter sido impelido por razões abomináveis e desprezíveis na perseguição (contra mulher por razões do sexo feminino), seja beneficiado no homicídio que praticou em seguida, por ter se motivado em suposto relevante valor moral, já que, repita-se, se impossível o concurso entre qualificadoras subjetivas e o privilégio do homicídio, igualmente impossível o concurso entre a causa de aumento de pena subjetiva da perseguição (§1º, II, do art. 147-A) com este mesmo homicídio privilegiado.
Por fim, quando a causa de aumento de pena da perseguição incidir, restará prejudicada a incidência da agravante genérica do art. 61, II, f, parte final, do CP, sob pena de bis in idem vedado pelo art. 61, caput, do CP[10].
Notas e Referências
[1] COSTA, Adriano Sousa; FONTES, Eduardo; HOFFMANN, Henrique. Stalking: o crime de perseguição ameaçadora. Revista Consultor Jurídico – Conjur. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2021-abr-06/academia-policia-stalking-crime-perseguicao-ameacadora#:~:text=A%20Lei%2014.132%2F21%2C%20que,147%2DA>. Acesso em 12 abr. 2021.
[2] FARIA, Fernando Cesar de Oliveira; Nunes, Filipe Maia Broeto. Incoerência da interrupção da prescrição penal. Revista Bonijuris, vol. 32, n. 2, 663, abril/maio, págs. 126-139.
[3] Art. 147-A (...) §1º A pena é aumentada de metade se o crime é cometido: (...) II - contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código;
Art. 121. (...) § 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I - violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
[4] Crítica que se encontra em: Que é feminicídio? Qualificadora subjetiva ou subjetiva? Quais as consequências? - Jimmy Deyglisson - Advogados Associados / Imperatriz-MA - Jimmy Deyglisson - Advogados Associados / Imperatriz-MA (jimmyadvocacia.com.br). Acesso em 10 abril 2021.
[5] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 17 ed. São Paulo: Forense, 2017, p. 455, livro digital. Assim também MASSON: Feminicídio é o homicídio doloso cometido contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. MASSON, Cleber. Manuel de Direito Penal – v. 2. 11 ed. São Paulo: Método: 2018, p. 73, livro digital.
[6] SANCHES CUNHA, Rogério. Manual de Direito Penal. 8 ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 63.
[7] ESTEFAM, André. Direito Penal – Parte Especial v. 2. 5 ed. São Paulo: 2018, p. 134, livro digital.
[8] MARTINELLI, João Paulo. Direito Penal parte geral – lições fundamentais. 5 ed. São Paulo: D´plácido, 2020, p. 450.
[9] O STJ tem entendimento que a qualificadora do feminicídio pode coexistir com a de motivo torpe, por exemplo, uma vez que aquela tem natureza objetiva (STJ, REsp 1739704/RS, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma, julgamento em 18.09.2018, DJe 26.09.2018).
[10] Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: (...) II - ter o agente cometido o crime: (...) f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica;
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