Por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho - 03/04/2015
“Quem morre? (...) Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho, quem não se permite pelo menos uma vez na vida fugir dos conselhos sensatos.” Pablo Neruda
Metáfora da construção do sujeito: relendo o grupo escolar
- Este é o caminho. Estás vendo?/ - Sim./ - Aproveita bem e presta atenção que amanhã tu vens sozinho. Homem nessa idade já sabe o que faz!/ - Tá./ - Olha aqui: esta é a Rua do Príncipe, a mais perigosa. Olha bem para os dois lados. Se não vier nada, passa. Nada de se afobar prá não cair. Tá bom?/ - Tá./ - Depois segue toda a vida. Ah!, Depois do Clube Joinville e da casa dos Douat tem aquela ruazinha ali, tá vendo?/ - Tô./ - Pois toma cuidado ali também que de vez em quando sai um maluco lá de dentro da Prefeitura. É um perigo prá essa criançada do Colégio Santos Anjos./ - É./ - Depois é só ir em frente pela calçada da esquerda: bombeiros, casa do bispo, até a esquina. Dobra à esquerda aqui na rua do Grupo, entendeu?/ - Entendi, sim senhor./ - Pronto, é aqui. Vai lá que daqui a pouco chamam teu nome. Olha, sem bagunça: a mãe já disse prá diretora que se tu saíres da linha é prá ela passar a cinta. Viu?/ - Sim senhor./ - Às 11h30 estou aqui neste mesmo lugar prá te apanhar./ - Tá bom.
Era um 15 de fevereiro de muito calor. Todo mundo na praia. Só nós dois em casa. Mal sabia meu pai que eu já conhecia aquele caminho de cor; que o Grupo já era íntimo das peladas no campinho, daquelas onde todos vão em cima da bola onde quer que ela esteja. Isso prá não falar do morro do velho cemitério, atrás do muro da escola, do qual se falava sempre ligando à assombração. E nós lá, volta e meia.
Seria um ano normal, não fosse 1964.
Começavam ali anos e anos de atividades escolásticas, jamais findas. Mas nenhuma lembrança é mais querida que aquela. Depois tudo parece repetição.
Professora era Professora, com P maiúsculo. Dona. Respeito era regra inarredável. Ainda ensinavam à antiga, embora tivessem abandonado o castigo no milho. Mas não tinha conversa: saiu do compasso, já se sabia... Elas eram como uma segunda mãe. E nós aprendíamos, de verdade, ainda que fosse um Grupo do Estado.
Eu não conseguia entender e provava uma sensação de pena quando a galeguinha lá no fundo fazia xixi nas calças. Não havia reação de desdém, de ninguém. Até o Ado, o mais sarcástico, surpreendentemente não dizia nada, pelo menos ali, na sala. Depois, a história é outra; e o Ado é o Ado...
Mas não eram só eles. Tinha uma Marisa, ou melhor, duas: uma loura e uma morena que corria prá burro. Tinha o Ike, meu dileto amigo de caminho, sempre quietinho. Tinha uma Amélia, grandona; uma Leila, bonita; o Puccini, que sempre ganhava na peca; e o Aluísio, que sempre perdia. Eram tantos que não recordo de todos. O Batschauer, sempre falante. E o Zé. Melhor seria dizer os Zés. Eram muitos, mas quando se falava em Zé pensava-se primeiro naquele. Ele era maior, mais velho e fumava escondido. Morava lá prá baixo, perto do Cachoeira. Era um grande amigo e me ajudava a cuidar das árvores recém-plantadas, hoje grandes e de sombra. – Quanta cola demos ao Zé!; todos nós, até o Kill, um verdadeiro gênio, daqueles que aparecem um em milhão e a gente não vê a hora de vê-lo estourar.
Pecado o nosso Zé. A notícia da morte em Florianópolis deixou claro que não era tão-só vítima de uma “overdose”; mas da falta de direção e de segurança. Enquanto o mundo estudantil começava a reagir por um espaço de poder, nós, daquela geração de 64, sofríamos o contragolpe. Pouco a pouco fomos esquecendo de discutir, numa robotização sem fim. E o Roberto Carlos cantando música prá ganhar dinheiro...
Um dia, lembro-me bem, um sábado. Na cerimônia cívica, depois do hino, ninguém havia sido designado para declamar os versos do Casimiro de Abreu, do Castro Alves ou do Cruz e Souza. Tinha lá na frente um homem. Terno cinza, largo. Não parecia que falava; o tom era de ordem. Microfone na mão, falou em novos tempos. Falou que nós éramos o futuro do Brasil; que receberíamos e viveríamos em um país melhor, grande, mais justo. Quase acreditamos. E o Zé morreu de “overdose”!
Dona Irma, como Diretora, nunca mais deixe ninguém fazer isso. Meus novos amiguinhos podem até acreditar pois hoje os pais não mais acreditam na capacidade das crianças de seguirem o caminho sozinhos; do Grupo e da vida. Pecado!
Eu = outro, mas diferente: o processo de identificação
Não é difícil entender que a construção do sujeito se dá pelo efeito dos limites. Afinal, são eles que permitem desejar; desejar o que se não tem. Claro! Deseja-se o que se não tem. O que se tem, goza-se! Goza-se, por evidente, o quanto é possível, até porque não é possível gozar tudo, por pura sorte ou, como querem alguns, pela graça de Deus. Afinal, não teria sentido seguir vivendo se não fosse para tentar encontrar, amanhã, o gozo que hoje não se encontrou. Sem “ter o que fazer amanhã”, por primário, restaria pouco para viver, num equilíbrio muito perigoso, mormente quando se começa a projetar o suicídio como forma última de expressão da diferença; como uma forma de se fazer presente. É (ser) certinho, digamos, politicamente correto (para a tradicional família...), mas tanatológico, não fosse, antes, a face da falsidade por excelência. A expressão do que, em definitivo, não somos. Aí está, porém, a representação (de tragédias gregas em relações dialógicas) que somos: imagens ambulantes onde o que vale mesmo é o que está atrás do espelho que oferecemos aos outros; espelho a refletir uma mera aparência do que não é. Aqui não se deseja: desliza-se nas imagens! O desejo é outra coisa; “o desejo do homem é o desejo do Outro.”[1] Mas atenção! Quando Lacan diz isso, assim o faz para explicar que “Não há outra metalinguagem senão todas as formas de canalhice, se designarmos assim as curiosas operações que se deduzem” da assertiva, para concluir: “Toda canalhice repousa nisto, em querer ser o Outro – refiro-me ao grande Outro – de alguém, ali onde se delineiam as figuras em que seu desejo será captado.”[2] É o enterro da Verdade das imagens; dos estelionatários que vendem brochas linguísticas para os outros se pendurarem; dos mercadores da Pureza; do Uno; do pensamento Único; do pensamento Unliberal.
Na impureza, no sujeito clivado, no outro enquanto tal, no outro como ele mesmo, naquilo em que o indivíduo é dividido (dois em um: [in]divi-duo), no espaço que está para além da totalidade[3] e assim por diante, que repousa a possibilidade de amor e, em ultima ratio, a democracia. Os direitos humanos – e sobretudo a cidadania – só se constroem com um inarredável respeito pela diferença, onde a dignidade humana ganha foros de princípio fundante.
A impureza, contudo, vem de fora, imposta pela linguagem, porque outro meio não há. É só ver o que se passa ao nascer: Jacinto!, disseram (dissemos) e dizem (dizemos) todos os dias, milhões de vezes. E pronto! Sai o tipo selado com a marca da cultura por toda a vida, carregando o fardo; furado pela palavra. Os cacos junta com o tempo, para formar (seria melhor dizer armar) um quebra-cabeças que não só não termina mais como, por outro lado, perdidas algumas peças, nunca mais se vai completar. No lugar do que falta, por suposto, mete palavras. Palavras (para tentar dizer a coisa ou sobre a coisa) que nunca serão a coisa (embora façamos tanto esforço para tanto), porque – não esquecer – as peças se perderam. Se somos um quebra-cabeças do qual algumas peças se perderam (e está aí a nossa incompletude, que é constitutiva), não somos Todo; e somos isso que está aí: seres onde falta; e onde a palavra assume um papel transcendental, tentando tapar o furo.
Na construção do edifício linguístico que sustenta o vivente joga cartadas decisivas um processo de identificação. Logo temos um arsenal suficiente para filtrar o discurso (tudo o que fala) e introjetar, ou seja, assimilar de modo tal a poder estabelecer as relações palavra-objeto[4]. Servimo-nos, ademais, de quem está próximo, máxime da função paterna (pai, mãe ou quem estiver a desempenhá-la), e mais que da função materna. Daí nos identificarmos, com freqüência, com o poder, não raro para depois repetirmos o que dele mais odiamos: o rigor do comportamento é um bom exemplo, mas não o único.[5]
Por outro lado, o processo não está fixado no tempo, ou seja, é para toda a vida. Como aderentes, seguimos como penduricalhos de estruturas ideais, os nossos modelos. Não fosse isso, trataríamos de dispensar os amigos tão-só conseguíssemos caminhar com nossas próprias pernas. Por evidente que não é assim; além do mais, eles, os modelos, também seguem as suas trajetórias, de constante mutação, oferecendo-se como novo a cada vez, a cada reencontro; e enchendo de vida a mesmice da repetição enfadonha do cotidiano.
Fala aí, nessa relação, com muita força, a transmissão. Como um bruxo/mago que conjuga as funções paterna e materna, o professor é um grande objeto de identificação; e se encontra em um lugar privilegiado. Sublima, porém, tudo o que pode; e na sublimação tenta dar conta de si mesmo, embora não o consiga por completo. Seu lugar, sobretudo, é o mais rico dos campos para sonhar e fazer sonhar.
Transmissão, sublimação e construção da cidadania
O professor, pelo papel que desempenha é, sem dúvida, um dos mais importantes objetos de identificação. Em geral, sabe disso. Não sabe, todavia – e os números seriam estonteantes se pudessem ser computados – que seu agir é marcado pela sublimação, a maneira mais “nobre” (ou menos danosa?) de produzir giros linguísticos na fala do Outro. É por isso que não diz o que quer; diz o que consegue dizer, e já é uma grande coisa. Não é por outro motivo que nunca diz Tudo; e não encontra a verdade Toda para dizer. Não forma, portanto; (de)forma; ou, em outras palavras, forma sobre uma verdade outra e, nesse sentido, quanto menos impuser sua verdade, melhor. Por sinal, se é algo que não tem é ela, a verdade, razão por que a não transmite. Tem, sim, a sua verdade (que a Verdade não é) e, desde essa visão, quanto menos danificar, melhor. Afinal, desde sua pequena “lanterna” o que pode fazer de menos pior é indicar “um” caminho e, por ele (fixado como limite a ser transposto), forçar os alunos a encontrarem “um” para eles mesmos. Como disse Dussel, “analfabetos dos alfabetos que se lhes quer impor”[6], ainda têm uma chance se a imposição não se fizer. Do contrário, serão como seus mestres e seguirão repetindo a mesma catilina, ou seja, o discurso da Totalidade.
Transmitir, mesmo a partir da “nobreza” da sublimação (que é do transmissor, mas produz efeitos no receptor, por primário), só é aceitável porque se não tem nada para se colocar no lugar e pela crença inarredável em uma razão capaz de fundar a partir do respeito pela diferença, com a torcida sincera de que no caminhar se descubra, construa-se o caminho, como referiu António Machado.[7] É, assim, um trabalho hercúleo, dado não existir um dosador; e nem uma fórmula mágica capaz de oferecer “o” caminho. Para os catedráulicos[8] do ensino e todos os demais conservadores, onde isso é possível, forma-se o sujeito (aluno) aí, não raro oferecendo-se ortopedicamente como modelo perfeito, pronto e acabado. Ledo engano, ou melhor, canalhice pura e simples, para ficar com Lacan. O máximo que se pode fazer aqui é “formatar”, para depois, como um disquete qualquer, rodar a serviço de alguma ideologia. Eis a crônica de uma morte anunciada; de um vivente jogado no mundo como mera engrenagem de repetição, como Chaplin em Tempos Modernos.
A transmissão, nesta dimensão, só se dá parcialmente. O mais, o sujeito há de conquistar; até quando puder.
O mínimo a se fazer, contudo, é estabelecer uma base capaz de fundar, pela conquista, a cidadania. Sem ela somos como gado, ora na engorda, conduzido à manjedoura, ora pronto para o abate e conduzido ao matadouro. Desde tal perspectiva, por que não clonar? Afinal, o que está a impedir senão uma ética tão arraigada quanto combatida porque sinonimizada com o velho, o ultrapassado?
Cidadania e cidadão são conceitos fundantes, suportados pela dignidade humana enquanto princípio.
Neoliberalismo e ensino do direito: a morte do sonho
Princípio, sabem todos, na matriz dos ritos, é motivo conceitual. Depois, como lógico, ou como teleológico, presta-se a sustentar o discurso dogmático sobre a verdade da coisa. No início, porém, como verbo (que é mesmo!), imposto pelo poder, aparece como mito, ou seja, a palavra que é dita, para dar sentido, no lugar daquilo que, em sendo, não pode ser dito.[9] Isso rompe a segurança jurídica, para os incautos que dela precisam como muleta discursiva, mas abre um largo espaço para cada um sair ao encalço de si mesmo.
A dignidade humana, como princípio, não suporta mitigação; e desde um ponto de vista ético seria insuportável tê-la. O problema, porém, não está aí, mas no fundamento epistêmico. Por isso, os senhores do poder e seus intelectuais de plantão, cientes das encruzilhadas, armaram a estrutura a partir de um câmbio epistemológico, substituindo a noção de causa-efeito pela de ação eficiente. Eis o pensamento neoliberal, fundado a partir de Hayek.[10]
Com a substituição, como se viu e cada vez se consegue perceber mais, a dignidade humana vem medida pelas ações e, quase que naturalmente, pela eficiência delas. As ações, vistas desde essa ótica, dizem com os meios; e não com os fins, só previsíveis, segundo o pensamento neoliberal, por uma razão que se mostra débil e incapaz.
Não é de espantar que se fale tanto em competição, em todos os campos (tal e qual no mercado, tomado como modelo de ordem espontânea e justa), embora seja ingênuo por demais o conceito de liberdade que suporta o competidor (“estado no qual cada um pode usar seu conhecimento com vistas a seus propósitos”[11]), dado conduzir, inevitavelmente, ao conflito, onde prevalecerá o mais forte.
Assim, conceitos como mercado, consumidor, cliente, competição, desregulamentação, estão na ordem do dia. O limite, talvez fosse possível afirmar, é dado pelo jogo, na medida em que é jogado. Afinal, “simplesmente não é verdade que nossas ações devem sua eficácia apenas ou sobretudo ao conhecimento que somos capazes de verbalizar e que pode, portanto, constituir as premissas explícitas de um silogismo. Muitas instituições da sociedade que são condições indispensáveis para a consecução de nossos objetivos conscientes resultaram, na verdade, de costumes, hábitos ou práticas que não foram inventadas nem são observados com vistas a qualquer propósito semelhante. Vivemos numa sociedade em que podemos orientar-nos com êxito, e em que nossas ações têm boas probabilidades de atingir seu objetivo, não só porque nossos semelhantes são norteados por objetivos conhecidos ou por relações conhecidas entre meios e fins, mas porque eles são também limitados por normas cujo propósito ou origem muitas vezes desconhecemos e das quais freqüentemente, ignoramos a própria existência.”[12]
Se essas normas são as justas, aquelas dadas (construídas pelo homem) não devem prevalecer, inclusive na ordem constitucional. Onde estão todos em um momento como esse mas, em especial, onde foram parar os constitucionalistas democráticos que, não raro, têm-se prestado a tão-só colocar em marcha a panaceia do panconstitucionalismo, olvidando as matrizes dos males e – seria despiciendo explicar o porquê – fazendo o jogo da ideologia dominante, neoliberal. Bom exemplo disso foi o que se passou com a Emenda Constitucional nº 19/98, pela qual se introduziu, no caput do art. 37, da CR, dentre os princípios que regem a Administração Pública, aquele da eficiência. Parecia, na visão deles (ceguinhos ou nefelibatas, mas inocentes utilíssimos na visão do criador da criatura), uma mudança banal, quiçá sem importância. Era, contudo, mormente aos positivistas jurídicos, o que faltava para saírem cantando, em versos e prosa, loas à invencionice, como se isso não fosse, desde sempre (não precisaria muito estudo de Filosofia Política para se saber), imanente ao Estado, tomada a mal(dita) eficiência pelo sentido que sempre teve, por óbvio. Era, sem embargo, a palavra mágica, como o som da flauta que fazia afogar os ratos na famosa lenda. A juristas assim, descompromissados (ou ingenuamente compromissados com quem estiver no Poder) basta inserir na lei, porque estão sempre loucos para formar (e [de]formar seus discípulos, nas faculdades) o exército que age em nome de Um, com analisou de maneira impecável La Boétie[13] já no século XVI.
Não admira, assim, que se queira destruir tudo que se coloque no caminho do pensamento neoliberal. Não fossem as cláusulas pétreas enfiadas na Constituição com muito esforço, por certo já teriam suprimido direitos e garantias individuais; e tudo pareceria normal, com a máquina dos meios de comunicação nas mãos, como de fato têm.
O ataque, por óbvio, é contra o construtivismo da razão; contra as instituições deliberadamente criadas, construídas. Visão do gênero, parece certo, rompe com a ética.
Para infelicidade da maioria, começa-se a ensinar o Direito por tal cartilha, na extragrande maioria das vezes por pura ignorância (o que é muito grave e preocupante), mas já se encontra os catedráulicos neoliberais, não muito fáceis de combater porque, como personagens miméticos usam, sempre que necessário, os argumentos sempre tidos por progressistas, embora, nas suas bocas, fundamentados em outros pressupostos. É preciso, entretanto, muita atenção pois como na velha canção carnavalesca e metafórica, “de dia é maria; de noite é joão”. O aluno, como cliente, prepara-se (prepara-se mesmo?) para uma “guerra”. O problema é que isso não é possível sem professores adequados, uma modalidade que não cabe no pensamento único neoliberal. Afinal, professor adequado, nesta visão, é aquele que ajuda na faina do mercado, gerando um paradoxo à exigência de resultados.
Os professores, ademais, desde as suas inarredáveis “humanidades”, não conseguem aderir de corpo e alma ao pensamento único – e não porque alguns não queiram – mas justo por ser impossível: enquanto marcados pela “falta” não serão – e não dirão – com algo Uno.
O sonho embala a trajetória de um professor que crê na possibilidade de “dar de si”, ajudando a fundar as bases da construção do outro.
O que estão fazendo os neoliberais, per faz et nefas, mormente no ensino do Direito, talvez para seu próprio desespero mais tarde (o mercado é impiedoso com o asinino), é matar o sonho – sonhocídio[14] – de uma geração de jovens professores que se fundaram no discurso (possível) da dignidade humana e da democracia; que crêem na ética do ensino como espaço de respeito ilimitado pela diferença; e que têm tesão de viver e deixar viver.
A questão, então, mais uma vez, é resistir. Resistir às falsas imagens que matam os sonhos; e não desistir jamais, porque “navegar é preciso”, como diria Fernando Pessoa, contrariando o fatalismo do dream’s over, como numa passagem muito conhecida – e pouco discutida – do nosso cancioneiro: “O sonho acabou,/ quem não dormiu no sleeping bag/ nem sequer sonhou”.
Notas e Referências:
O presente texto começou a ser escrito durante minha permanência na Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha, onde estava dando aulas na disciplina Sistemas de Protección de los Derechos Humanos, no Curso de Doutorado em Derechos Humanos y Desarrollo. Agradeço a colaboração dos seus diretores Joaquín Herrera Flores e David Sánchez Rubio, assim como, consertado, dedico-o à memória do querido amigo Enrique E. Marí, ex-professor de Filosofia do Direito e Epistemologia do Conhecimento Social na Universidade de Buenos Aires, que nos deixou há pouco. Nada, porém, sobre o vazio deixado por ele é mais significativo do que aquilo que foi dito por Alicia Ruiz, no que deveria ser o Prólogo de seu último livro, Idas y Vueltas: por una teoria crítica del derecho (Buenos Aires: Editores del Puerto, 2001).
[1] LACAN, Jacques. O seminário: livro 17: o avesso da psicanálise. Versão brasileira de Ari Roitman. 2ª ed., Rio de Janeiro : Zahar, 1992, p. 57.
[2] LACAN, J. Ob. Cit., O seminário: livro 17, p. 57.
[3] Como em Dussel e não em Levinas.
[4] HACHET, Pascal. La mentira necesaria: del trauma social al mito.Trad. María Antoranza del Pozo. Madrid : Síntesis, 1999, p. 14-5: “A lo largo de nuestra existencia, las experiencias que vamos viviendo requieren ser asimiladas, tanto si tienen como fundamento un conflicto situado dentro del psiquismo –entre una prohibición moral y un deseo incosciente – como si se trata de un acontecimiento vivido. En cualquiera de los casos, para que nuestro Yo se enriquezca con nuestras experiencias debe acoger con coherencia los componentes de nuestra participación. Este proceso, calificado de ´introyección´ por Abraham, coloca al sujeto ´en relación con sus objetos´. De ahí el hecho, observado por Tisseron, de que esté trabado por el vínculo social: un sujeto puede llevar a cabo la introyección de sus experiencias en la medida en que son aceptadas por su entorno. Existen tres modalidades de introyección, o de simbolización, complementarias unas de otras y cuyo establecimiento fue descrito por Tisseron (1981). En un primer momento, el niño simboliza sus experiencias en un modo sensorio-afectivo-motor, discernido a raíz de los trabajos de Wallon (1942). Luego tiene la posibilidad de simbolizar, ayudado de sus imágenes psíquicas; este modo gráfico de la introyección ofrece un apoyo al modo sensorio-afectivo-motor, cuando el establecimiento de éste, durante la relación precoz madre-hijo, ha resultado ser deficiente. Por último, al acceder al lenguaje, puede simbolizar en un modo oral. El equipamiento simbolizante tripartito del niño le permite, así como permitirá al adulto que va a ser, hacer frente a la aleatoriedad de su vida interior y relacional.”
[5] Às vezes impressiona a todos a (des)razão de alguns que, mesmo odiando aos pais que se embriagavam, acabam por repetir o mesmo, como num ritual suicida. A razão, aí, tem muito pouco a dizer.
[6] DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação. Trad. de Luiz João Gaio. São Paulo : Loyola, s/d, p. 19.
[7] “Caminante, son tus huellas/ el camino, y nada más;/ caminante, no hay camino,/ se hace camino al andar.” (António Machado)
[8] Sabem todos que a expressão foi cunhada por Roberto Lyra Filho, no seu magnífico: Por que estudar direito, hoje? Brasília : Nair, 1984. Seriam eles os professores conservadores que servem ao discurso dominante por safadeza. Os demais, da mesma estirpe (conservadora), seriam os ceguinhos (que servem porque não sabem) e os nefetibatas, que se prestam ao mesmo fim mas em razão de viverem nas nuvens, ou seja, sabem muitas teorias, etc, mas não sabem para que servem.
[9] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro. In Revista da Faculdade de Direito da UFPR. Curitiba : UFPR, Ano 30, nº 30, p. 164.
[10] Parece muito difícil dissertar sobre a matéria sem o conhecimento adequado da trilogia de HAYEK, Friedrich August von. Direito, legislação e liberdade. Trad. de Anna Maria Capovilla et alii. São Paulo : Visão, 1985, 3 volumes. O problema atual, porém, é que se fez imprescindível tal conhecimento, mas pouco se verificou a respeito, pelos mais variados motivos, ao menos no campo jurídico.
[11] HAYEK, F. A.. Direito... cit., vol.I, p. 62.
[12] HAYEK, F. A.. Direito... cit., vol. I, pp. 6-7.
[13] LA BOÉTIE. Etienne de. Discurso da servidão voluntária. 3ª ed. Trad. de Laymert Garcia dos Santos. São Paulo : Brasiliense, 1986, p. 12: “Por hora gostaria apenas de entender como pode ser que tantos homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas nações suportam às vezes um tirano só, que tem apenas o poderio que eles lhe dão, que não tem o poder de prejudicá-los senão enquanto têm vontade de suporta-lo, que não poderia fazer-lhes mal algum senão quando preferem tolera-lo a contradizê-lo. Coisa extraordinária, por certo; e porém tão comum que se deve mais lastimar-se do que espantar-se ao ver um milhão de homens servir miseravelmente, com o pescoço sob o jugo, não obrigados por uma força maior, mas de algum modo (ao que parece) encantados e enfeitiçados apenas pelo nome de um, de quem não devem temer o poderio pois ele é só, nem amar as qualidades pois é desumano e feroz para com eles.”
[14] Devo o neologismo, em tal espaço, à Professora Silvana Carbonera, em discussão sobre o tema levada a efeito no âmbito do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR.
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é Professor Titular de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR), Mestre (UFPR); Doutor (Universidade de Roma “La Sapienza”). Coordenador do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. Chefe do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR. Advogado. Procurador do Estado do Paraná. Membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Projeto 156/2009-PLS.
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