Sociedades Limitadas e as externalidades positivas decorrentes da Lei 14.451/2022: modificação dos quóruns para deliberação sobre matérias societárias

29/09/2022

A vida em sociedade é por natureza complexa e as deliberações nas sociedades limitadas são refletidas por questões comportamentais, e influenciadas, portanto, pela afinidade entre os sócios (affectio societatis).

As questões relevantes da sociedade (propósito/destino), também operacionais e negociais quando regulados por lei, pelo contrato ou pelo acordo de quotistas/acionistas, serão objeto de deliberação. As deliberações ocorrem nas reuniões de sócios ou assembleia (órgão máximo da sociedade), e dependem delas as matérias reservadas no contrato/acordo de quotistas e as indicadas no artigo 1.071 do Código Civil.

Algumas amarras do Código Civil agora levantadas pela Lei 14.451/2022 (Projeto de Lei nº 1.212, de 2022, sancionado em 21 setembro de 2022) repercutiam negativamente para o ambiente de negócios. A finalidade dessa nova proposição legislativa é, justamente, facilitar os atos deliberativos nas sociedades limitadas, possibilitando maior versatilidade para o poder de controle.

Quóruns demasiadamente qualificados para a prática de certos e determinados atos societários atraiam ineficiência, e rotineiras críticas emanavam de algumas matérias que a nova lei enfrenou, relativamente a quatro pontos, a saber: a) designação de administradores não sócios, enquanto o capital não estiver integralizado; b) designação de administradores não sócios, após a integralização do capital; c) a modificação do contrato social; d) a incorporação, a fusão e a dissolução da sociedade, ou a cessação do estado de liquidação.

Na prática se percebe que a regra ou princípio da maioria do capital funciona melhor para certos e determinados atos do que a da unanimidade, como era o caso da escolha do administrador recair em pessoa estranha ao capital (não sócia) ou do quórum de 75% (3/4) como era o caso da decisão para autorizar a incorporação.

Neste contexto, a lei em comentário resolve esses problemas, além de outros decorrentes do excesso de quórum, em apenas um dispositivo, de modo claro e objetivo.

No quadro abaixo, é possível perceber como era a regra anterior e como ficará a regra nova, a partir da entrada em vigor da Lei 14.451/2022 (22/10/2022) que alterou a Lei 10.406/2002 (Código Civil), a saber:

 

MATÉRIA

 QUÓRUM ANTERIOR

NOVO QUÓRUM

 

Designação de administradores não sócios, enquanto o capital não estiver integralizado

 

 

 

 

Unanimidade dos sócios

 

 

Dois terços dos sócios

 

Designação de administradores não sócios, após a integralização do capital

 

 

 

Dois terços dos sócios

 

Mais da metade do capital social

 

A modificação do contrato social

 

 

 

Três quartos do capital

 

Mais da metade do capital social

 

A incorporação, a fusão e a dissolução da sociedade, ou a cessação do estado de liquidação

 

 

 

Três quartos do capital

 

Mais da metade do capital social

 

Tais alterações acarretam consequências consideráveis para as sociedades limitadas, uma vez que consagram um dos princípios basilares do direito societário: o princípio majoritário.

Assim, de forma a traçar um paralelo comparativo desses aspectos, cabe rememorar alguns conceitos históricos relevantes da sociedade limitada.

Sua gênese se deu no direito alemão, por força da Lei de 20 de abril de 1892. Popularmente conhecida como GmbH (Gesellschaft mit beschränkter Haftung), objetivou estruturar uma sociedade sem tantas implicações e dificuldades organizacionais, (característica das sociedades anônimas), mas que resguardasse a responsabilidade de seus sócios à importância do capital social, de forma a mitigar eventuais riscos e promover a autonomia patrimonial e social[i].

Já no cenário brasileiro, a sociedade limitada foi oficialmente implementada no ordenamento jurídico por meio do Decreto nº 3.708/1919, que era composto por dezenove artigos. Para muitos representava um hiato legislativo, e para outros, promovia maior liberdade aos sócios e as estipulações societárias decorrentes das atividades relacionais. O referido decreto não trazia muitas amarras, pois dava ênfase a liberdade de contratar, facilitando os acordos societários.

Ocorre que com a promulgação do Código Civil de 2002, esse quadro mudou radicalmente.

A simplicidade fora substituída por um rigorismo, em grande parte, complexo e contrastante, principalmente em razão das variações dos quóruns deliberativos. O regramento se tornou mais rígido, limitando a liberdade de contratar e trazendo sérias dificuldades ao poder de controle, diante das dificuldades já expressadas anteriormente, no que se refere a concretização de certos e determinados atos.

Acerca dessa incoerência existente, sob o viés específico do Art. 1.061, Assis Gonçalves, desenvolve algumas relevantes considerações:

 

“Em sua redação original, o art. 1.061 só possibilitava a designação de administrador não sócio se houvesse previsão expressa no contrato – “se o contrato permitir” -, expressão que lhe foi subtraída pela nova redação que lhe deu o art. 14 da Lei 12.375/2010. [...] Adentrando mais nesse cipoal de maiorias, vê-se que a indicação de administrador sócio, quando feita no contrato social, parece precisar, em princípio, do beneplácito de quantos representem ¾ do capital social, porquanto esse é o referencial previsto para uma tal modificação contratual (arts. 1.071, V e 1.076, I). No entanto, a maioria exigida para a destituição desse administrador é menor, variando de mais da metade (art. 1.071,II e 1.076, II) a 2/3 do capital social (art. 1.063, § 1º). Por isso, defendo que o percentual mínimo para tal espécie de alteração contratual pode ser inferior. Do contrário, poderiam surgir casos de administração acéfala, na medida em que a maioria para destituir não seria suficiente para formar a maioria (mais qualificada) exigida para designar outro administrador em substituição. Outra alternativa seria a de, uma vez destituído o administrador indicado no contrato social, sua substituição passar a ser feita por designação em ato separado. Vingando esse entendimento, no entanto, a previsão de maioria qualificada de ¾ do capital social para promover tal modificação no contrato social seria uma inocuidade (arts. 1.071, V e 1.076, I) porque o administrador indicado no contrato sempre poderia ser destituído e substituído por deliberação de sócios com 2/3 de capital social”[ii].

 

Como visto, com a modificação feita pela lei em comentário, ao art. 1.061 do CC, a contradição expressada pelo autor no texto acima, ficará, em parte, sanada, uma vez que não será mais necessária a unanimidade do capital para designar um administrador não sócio, logo não conflitará com o quórum exigido nas hipóteses de destituição dos administradores, acarretando equilíbrio entre os atos de designar e destituir. 

É certo que o conteúdo do art. 1.071, I, revogado pela Nova Lei, causava disfunção nas deliberações sociais, inclusive para atos e convenções corriqueiras, tais como: alteração de endereço, criação de filiais, poderes de administração, dentre outros. Agora, pelo conteúdo da Lei Nova, essa dificuldade já não mais se faz presente, diante da adoção do princípio majoritário.

Conclui-se como proveitosas as alterações das regras pela Nova Lei, pois mitigam problemas e não afetam os direitos dos sócios minoritários, não causando, portanto, prejuízos à minoria. Ademais, a nova norma reconduz o protagonismo e a autonomia aos sócios, devolvendo-lhe maior liberdade para os seus ajustes.

Ressalva-se, ademais, que caberá as sociedades revisitar os seus contratos sociais e acordos de quotistas para as adequações pertinentes à realidade de cada organização.

Sob o ponto de vista do Direito Societário, portanto, a desburocratização e a flexibilização de algumas regras trazidas pelo Código Civil de 2002 (até então tormentosas) contribui sobremaneira para a tomada de decisões e, consequentemente, para a eficiência da gestão empresarial, sendo bem-vinda a Lei 14.451/2022.

 

 

Notas e Referências

[i] GONÇALVES, Oksandro. As quotas preferenciais no direito brasileiro: passado e futuro. p. 467 – 495. In: Sociedades limitadas: estudos em comemoração aos 100 anos. Ricardo Lupion (Orgs.), Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2019.

[ii] GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito da Empresa: comentários aos artigos 966 a 1.1195 do Código Civil. 7.a edição revista, atualizada e ampliada. p. 420 -459.

BRASIL. Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

Revista Consultor Jurídico, 25 de setembro de 2022. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2022-set-25/mes-vem-fica-facil-mudar-contrato-social-sociedades-limitadas>. Acesso em: 26/09/2022.

 

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