Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont
“É um aparelho singular – disse o oficial ao explorador, percorrendo com um olhar até certo ponto de admiração o aparelho que ele no entanto conhecia bem”. Em A colônia penal, obra de Kafka, o personagem denominado “oficial” mostra ao “explorador” o aparelho destinado à execução de sentenças na colônia penal e exprime todo seu fascínio pelo equipamento que ajudou a construir. A máquina engenhosamente arquitetada tem por objetivo executar as sentenças que, segundo o oficial, não soam severas: o mandamento que o condenado infligiu é escrito no seu corpo através do rastelo, agulhas que cravam na carne do sentenciado o teor de sua condenação.
O conto remete a uma frase de Alberto Binder, citada na introdução da Teoria do Processo Penal Brasileiro de Rubens Casara e Antônio Pedro Melchior: “O grande perigo de todo aquele que se dedica ao estudo do Direito penal ou processual penal é que lhe aconteça o mesmo que ao fabricante de guilhotinas: que se apaixone pelo brilho da madeira, do peso exato e do polimento da lâmina mortal, do ajuste dos mecanismos, do sussurro filosófico que antecede a morte e, finalmente, esqueça que alguém perdeu a cabeça”[2].
Em ambos os casos o que se percebe é o fascínio pelo instrumento a ponto de promover uma dissociação do fim ao qual se destina. No texto de Kafka, o aclamado aparelho serve para executar uma pena cruel e degradante – gravar no corpo do condenado sua sentença – que resulta, ao fim do processo de tortura, em morte. A guilhotina dispensa explicações. São ambos instrumentos que, apesar de seu refino ou tecnologia, se destinam a produzir violência e morte.
O risco de se apaixonar pelo processo penal e se esquecer de seu contexto é grande e facilitado por discursos assépticos, ora tecnicistas, ora tomados por uma retórica vazia de realidade. Situação recorrente nos cursos de Direito é a separação rígida de conteúdos intercambiantes, como direito penal, processo penal e criminologia. Assim, aprende-se que no âmbito do processo penal não é preciso se ocupar com a legitimidade do poder de punir ou a operacionalidade do sistema de justiça em face da realidade social. Como resultado, pode se verificar uma discrepância absurda entre o processo penal que se aprende nos livros e o que se vivencia no dia-a-dia forense.
É preciso sempre lembrar que o processo penal é exercício de poder, mais, exercício do poder punitivo e se alimenta de uma expectativa de pena, ainda que não seja concretizada ao final. É o caminho para o encarceramento. E o encarceramento massivo é um grave problema no Brasil.
Se cerca de 40% da larga população carcerária brasileira é composta por presos provisórios, então podemos concluir que a promessa constitucional de um processo regido pela presunção de inocência e pela proteção da liberdade não se realizou. Se os processos se arrastam durante anos a fio, significa que a promessa de duração razoável também não se concretizou. Se a advocacia tem sofrido com um movimento de repúdio e criminalização de suas atividades, então a garantia da ampla defesa também não tem sido efetivada. E a lista de violações parece não ter fim.
Porém, ao contrário do que algumas vezes é propagado, o fenômeno do processo penal midiático, espetacularizado, que afronta garantias basilares, não é recente. Não foi inaugurado a partir da operação lava-jato. Trata-se de uma realidade histórica da justiça criminal. E então surge o questionamento: o processo penal democrático é uma possibilidade concreta ou apenas uma promessa que não foi e não será cumprida? Não depositamos expectativas demais no processo penal?
Antes, é preciso esclarecer que o objetivo deste texto não é apresentar resposta definitiva para tais indagações. Até porque não há respostas definitivas. Pretende-se lançar questionamentos, semear ideias, para que as respostas sejam pensadas e construídas em variados espaços e a partir de diferentes concepções teóricas e políticas.
O que se afirma é que não é possível destacar o processo do sistema penal como um todo. É preciso levar em conta que o processo penal integra um sistema penal seletivo e violento, que opera em uma realidade marginal na qual historicamente se faz uso da prisão como instrumento de controle social. E é ingênuo defender a possibilidade de realização de um processo democrático com a manutenção intacta das demais estruturas que conformam o sistema penal.
Por outro lado, não é possível pensar em um sistema penal menos violento dentro do contexto de desigualdades estruturais da sociedade brasileira. Há uma distância quase intransponível entre os sujeitos que acusam e julgam e os que são acusados e julgados. De um lado, uma elite majoritariamente masculina, branca, habituada aos privilégios. Do outro, a massa se compõe por indivíduos pobres, negros, habituados à negação dos direitos mais elementares.
Enquanto a teoria e o discurso processual penal mantiverem o alijamento de questões como as que foram apontadas, a demanda por um modelo democrático não passará de um discurso falho, de grande apelo retórico e poucas implicações práticas. A tarefa de construir um sistema de justiça democrático dentro de uma sociedade que tem se mostrado perigosamente antidemocrática é inglória. Por isso é preciso ocupar diversos espaços de resistência, desde as salas de audiência até as salas dos parlamentos. Das prisões às ruas.
Dessa forma, uma resposta precária e provisória para a primeira pergunta poderia ser: o processo penal democrático é uma promessa, ainda muito pouco cumprida, mas que deve nortear a atuação dos juristas e profissionais; todavia, é preciso trazer as discussões sobre legitimidade do sistema penal e seu funcionamento concreto para dentro dos estudos e discussões sobre processo penal, alimentando-os da matéria necessária para a construção de medidas que possam garantir maior efetividade à proteção dos direitos fundamentais.
A segunda pergunta também resulta em uma resposta provisória e precária: sim, pretender um processo penal democrático dentro de um sistema penal autoritário é esperar do processo mais do que ele é capaz de realizar. Além disso, o processo traduz um recorte de vida, sempre limitado e com toda sua complexidade reduzida aos fatos narrados nos autos. Como já dito, se alimenta de uma expectativa de prisão, ou seja, assume como legítimo o uso da violência e da restrição da liberdade. Não soluciona conflitos, não apazigua as dores eventualmente geradas pelo crime. É particularmente sensível às desigualdades extraprocessuais, que tendem a ser reproduzidas e reforçadas endoprocessualmente. Não podemos esperar dele justiça ou emancipação social, mas a redução, ao máximo possível, da violência administrada pelo Estado através do direito penal.
O processo penal pode até ser um instrumento de defesa da liberdade, mas não é, em si, libertador. É preciso situá-lo na realidade, retirando-o da redoma de vidro onde tantas vezes é colocado. E, claro, tomar o cuidado para não se apaixonar pelo instrumento e esquecer que é a liberdade de alguém o que está em jogo.
Notas e Referências
[1] CASARA, Rubens R R; MELCHIOR, Antônio Pedro. Teoria do Processo Penal Brasileiro – Dogmática e Crítica: conceitos fundamentais. Vol. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. P. 01.
Imagem Ilustrativa do Post: crime scene // Foto de: Bradley Gordon // Sem alterações
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