Sobre o racismo que mata e encarcera a juventude negra

10/03/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Rêgo, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

De acordo com Almeida (2018), o racismo é a repetição sistemática/contínua de ações de discriminação que tem a raça como fundamento e que se manifesta por meio de práticas que culminam em desvantagens para determinado grupo de sujeitos. Em outras palavras, o racismo faz com que determinadas pessoas/grupos tenham privilégios assegurados em detrimento de outras pessoas/grupos, consideradas inferiores. Nesse sentido, ele diferencia racismo de preconceito – entendido como juízo baseado em estereótipos acerca de indivíduos que pertençam a um determinado grupo racializado, podendo ou não resultar em práticas discriminatórias – e de discriminação racial - tratamento diferenciado a membros de grupos racialmente identificados (ALMEIDA, 2018).

Podemos citar alguns exemplos de como o racismo atravessa e constitui as nossas experiências cotidianas: em entrevistas de emprego, é mais provável que uma pessoa branca consiga a vaga do que uma pessoa negra, ainda que essas duas pessoas tenham a qualificação necessária para ocupar aquele posto/ocupação. Outros exemplos se referem à ausência ou pouca presença de pessoas negras no Congresso Nacional, na televisão, em direções ou cargos de gestão, assim como em tantas outras situações cotidianas.  Pensando nisso, como negar que o racismo faz parte das nossas relações, está presente nas nossas instituições e é extremamente necessário à reprodução do capitalismo?

Entendemos, portanto, o racismo como algo estrutural e estruturante da nossa sociedade, que está no alicerce da nossa constituição como país. Além disso, quando associamos o racismo a outras categorias, como juventude, encontramos uma relação perversa na qual é a juventude pobre e negra quem mais tem morrido no nosso país, que mais tem sido encarcerada e que tem os piores postos de trabalho. Os dados produzidos pelo Atlas da Violência, publicação bianual do IPEA (2019), mostram-nos um cenário assustador. Em 2017, 35.783 jovens foram assassinados no Brasil. Esse número representa uma taxa de 69,9 homicídios para cada 100 mil jovens no país, taxa recorde nos últimos dez anos. Observando especificamente o grupo dos homens jovens, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes chega a 130,4 em 2017. Dos 35.783 jovens assassinados, em 2017, 94,4% (33.772) eram do sexo masculino, reiterando que os homens jovens continuavam sendo as principais vítimas dos homicídios (IPEA, 2019).

Em termos de vulnerabilidade à violência, é como se negros e não negros vivessem em países completamente distintos, os dados apontam que, enquanto caiu a taxa de homicídios de não negros, a taxa de homicídio dos negros aumentou. Isso demonstra a continuidade do processo de profunda desigualdade racial no país, ainda que reconheçamos que esse processo se manifesta de formas distintas, caracterizando cenários estaduais e regionais muito diversos sobre o mesmo fenômeno (IPEA, 2019).

Ao cruzarmos as informações sobre o perfil de quem está morrendo, percebemos que o racismo institucional tem relação direta com os homicídios de jovens, segundo o Guia de Enfrentamento ao Racismo Institucional da Organização das Nações Unidas (2014), o Relatório Final da CPI da Violência Contra Jovens Negros e Pobres (2015) e a publicação “Você Matou Meu Filho”, da ONG Anistia Internacional (2015). A publicação da ONG Anistia Internacional, inclusive, apresenta uma reflexão sobre os altos índices de homicídio em decorrência da ação policial, braço coercitivo do Estado, corriqueiramente caracterizado por “auto de resistência”[1] (CAVALCANTE, ALVES & SANTOS, 2016).

Com relação aos dados sobre encarceramento, em 2016, a população carcerária era composta em sua maioria por jovens e, com relação aos jovens negros (no Brasil), eles foram 18% mais encarcerados do que os jovens não negros, de acordo com o Mapa do Encarceramento (2015). O encarceramento em massa tem sido a aposta do Estado para enfrentar a violência, intensificada nos últimos anos – a partir, também, a situação de crise econômica que assola todo o mundo. Mais presídios são criados, mais armas estão circulando, a polícia continua agindo de forma extremamente truculenta, especialmente, nas comunidades e periferias e mais o ciclo de violência tem se retroalimentado. Na base disso tudo, opera as estruturas, ou seja, um país que é desigual socioeconomicamente, racista – e por isso seleciona os grupos que serão penalizados por políticas repressivas –, e machista, reproduzindo desigualdades de gênero que colocam as mulheres em situações de maior vulnerabilidade e expostas a risco de morte.

Sobre o nosso sistema de justiça, vemos que ele opera na sociedade por meio da formalidade e “informalidade” e que, portanto, seleciona os corpos que serão exterminados. Portanto, ao dizer que o sistema é seletivo[2], estamos afirmando que essa seleção também se dá na medida em que reforça e contribui para a reprodução do racismo estrutural e institucional, encarcerando ou matando cada vez mais pessoas negras, jovens negros. É por meio da seletividade e da gestão militarizada da miséria que se dá uma modalidade eficiente de controle das classes pobres, ou seja, a seletividade é uma das formas mais eficientes de coerção e controle utilizadas a favor do Estado em detrimento da população precarizada, na luta de classes.

De acordo com Valim (2017), “vivemos atualmente o que alguns chamam de ‘mal estar da democracia contemporânea’ uma democracia sem povo, a serviço do mercado e que, ao menor sinal de insurgência contra a sua atual conformação, é tomada por medidas autoritárias” (p. 30). Nesse sentido, concordando com o autor, o Estado reiteradas vezes tem se utilizado de expedientes lícitos e, por vezes, ilícitos para manter o controle da ordem, o que inclui situações em que parcelas do poder escapam aos limites estabelecidos pelo Estado de Direito. Tais ações abalam a soberania popular, pois renegam o que está na Lei/Constituição, que é justamente o pilar sobre o qual se apoia tal soberania.

Podemos compreender, assim, que convivemos atualmente com um Estado de Direito em crise e com situações de exceção permanentes, caracterizadas pela substituição de políticas sociais por formas de controle social (VALIM, 2017) visando, externamente, responder a um contexto de violência sem precedentes e, internamente, promover a gestão da pobreza e da miséria. A gestão da pobreza e da miséria atinge diretamente a juventude que se encontra – em sua grande maioria – (sobre)vivendo em contextos de extrema vulnerabilidade socioeconômica e exposta as situações adversas, como a cooptação para o trabalho no tráfico, entre outras.

Ignorar que somos um país que se estrutura tendo o racismo como um dos seus pilares, não resolve esse problema e não apaga a dívida histórica com a população negra. Políticas que preveem algum tipo de reparação ou políticas afirmativas, como as cotas, são o reconhecimento de que pessoas negras não são tratadas da mesma forma que pessoas não negras. Também é o reconhecimento de que não existem condições iguais de desenvolvimento, acesso a direitos e oportunidades, o que pode ser facilmente constatado nos dados de acesso ao ensino superior, ao mercado de trabalho – aqui também entram os dados de precarização das condições de trabalho – além dos dados de homicídios e encarceramento, já mencionados, que afetam de forma ainda mais intensa a juventude.

Já que ignorar não resolve esse “problema”, o que podemos fazer? Precisamos entender que, como sistema, o racismo está fortemente presente nas práticas, atuações e relações (FONSECA, 2015). As pessoas reproduzem comportamentos e posturas racistas, julgando as outras por sua cor e aparência, e o mesmo fazem as instituições públicas e privadas, elas reproduzem o racismo por ação (ao destratar/constranger e humilhar pessoas devido a sua cor) ou omissão (ao negar atendimento ou acesso das pessoas negras a determinados serviços).

Quando a gente percebe o que é o racismo e como ele está presente na nossa sociedade também podemos exigir mais representação de pessoas negras na Televisão (em novelas, noticiários e programas), na política (nas eleições de 2018 foram eleitos 125 deputadas/os que se autodeclararam negros, de um total de 513 deputados federais) e nos espaços de gestão e direção. Além dessas medidas, podemos investir em campanhas e colocar em vigor leis que permitam ampliar o debate na sociedade e dar visibilidade ao reconhecimento da nossa história, como a lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio.

Essas medidas por si só vão acabar com o racismo na sociedade brasileira? Acredito que não, mas são passos importantes no entendimento de que o racismo existe e precisa ser enfrentado. Nesse sentido, superar as armadilhas do racismo é uma das principais tarefas para que possamos nos fortalecer como uma sociedade livre de qualquer forma de opressão e exploração!

 

Notas e Referências

ALMEIDA, S. (2018). O que é racismo estrutural? Coleção Feminismo Plurais - Belo Horizonte: Editora LETRAMENTO.

ATLAS DA VIOLÊNCIA (2019). Organizadores: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Recuperado de http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019

CAVALCANTE, C. P. S., SILVA, J. A., & SANTOS, L. I. C. (2016). A juventude quer viver: sobre a violência letal contra a juventude negra no RN. In Hermes, I. (Org.), Metadados 2016 Juventude Potiguar: a mortandade da juventude no Rio Grande do Norte. (pp. 36-49). Natal: Ed. do Autor. Recuperado de https://issuu.com/iveniodiebhermes/docs/metadados_2016_juventude_potiguar__/1

FONSECA, I. F. (2015). Inclusão política e racismo institucional: reflexões sobre o Programa de Combate ao Racismo Institucional e sobre o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Planejamento e Políticas Públicas, 45, 329-345

VALIM, R. (2017). Estado de exceção: a forma jurídica do neoliberalismo. São Paulo: Editora CONTRACORRENTE.

[1] Os “autos de resistência” se referem as notificações que as polícias fazem nos boletins de ocorrência (BO), quando há morte de jovens, principalmente pobres e negros, por supostamente terem resistido a abordagem policial.

[2] Parte-se da perspectiva de que a seletividade penal se expressa quando são realizados constrangimentos e seleções de atores sociais específicos pelo sistema de justiça, gerando tratamentos arbitrários e desiguais.

 

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