SOBRE O MOMENTO CONSTITUINTE: UMA NOVA CONSTITUIÇÃO... PARA CHILE!

31/10/2020

A vitória popular no domingo 25 de outubro no Chile para avançar à criação de uma nova constituição, bem como a manifestação intempestiva de uma voz do governo brasileiro, sem leitura jurídica nem muito sensu de oportunidade política, trouxeram de alguma forma a nosso meio a possibilidade de debater sobre o chamado “momento constituinte”.    

Lembrei que em 1988, em Bogotá, a Universidade Externado de Colômbia reuniu um grupo de catedráticos para dialogar sobre as instituições políticas do continente e o Direito Constitucional. O Brasil contou com a participação honrosa do Mestre José Afonso da Silva, que fez uma reflexão corajosa e vibrante sobre a Constituinte brasileira e o caminho para uma nova ordem democrática. 

Dizia o professor que no momento constituinte “(...). A sociedade brasileira foi-se organizando contra o regime. As discussões em torno da normalização democrática e da institucionalização do Estado de Direito deixaram de ser digressões das elites. Logo, tomaram a rua. (...) todos sentiram que o Brasil entrava naquele momento histórico que a teoria constitucional denomina `situação constitucional’, situação que se caracteriza pela necessidade de criação de ‘normas fundamentais’, consagradoras de nova ‘ideia de direito’, informada pelo princípio da justiça social, em substituição ao sistema autoritário (...) aquele espírito do povo que transmuda em ‘vontade social’ que dá integridade à comunidade política, já despertava irremissivelmente, como sempre acontece nos momentos históricos de transição, em que o povo reivindica e retoma o seu direito fundamental primeiro, qual seja: o de manifestar-se sobre a existência política de nação e sobre o modo desta existência, pelo exercício do ‘poder constituinte originário’. [1]

Como se vê, o professor retratava um momento singular. Uma demonstração de força que exige direitos, uma nova estrutura estatal e uma relação diferente à então vigente entre ser humano e poder. Nessa situação o “poder constituinte” se revela como fonte onipotente e expansiva que produz as normas constitucionais, mas também como o sujeito dessa produção. A. Negri detecta o centro da sua histórica problematização quando reafirma sua natureza híbrida: por um lado, porque a potência que oculta é rebelde a uma integração em um sistema hierarquizado de normas de competências. Por isso é estranho ao Direito. Entretanto, por outro lado, porque é profundamente democrático e por isso falar de poder constituinte é falar de democracia. [2]    

Acompanhando a Negri no conjunto de reflexões sobre o tema, Andreas Kalyvas afirmou em importante estudo a necessidade de revisitar a teoria de Bodin sobre a soberania, notando que o poder constituinte soberano não é poder de mandar senão o de “constituir” e por isso “soberano não é quem manda, senão quem constitui”.[3] No cenário da América Latina, desde o próprio Chile a professora Claudia Heiss com bastante acerto interpreta e complementa essa visão, pontuando que constituir significa participar, e senão se participa, então não é possível dizer que se atuou no sentido de contribuir a edificar uma Constituição.[4] Por outras palavras, constituir é discutir, deliberar, participar, ir à rua e, desde logo, ir até o final num exercício procedimental, para redigir o texto, votar, promulgar e ratificar. É um processo de alta efervescência popular, de condena ao passado e construção de futuro.

Por isso, focando o processo constituinte chileno é pertinente entender duas questões históricas: a primeira, de que maneira surgiu a Constituição atualmente em vigor, que em março de 1981 determinou a existência, de fato, de um regime favorável à criação de uma Junta de Governo e a que o Sr. Augusto Pinochet Ugarte assumisse a administração do Estado.  Esta Constituição, que determinou o fim da Carta de 1925, se converteu, nos termos que a ditadura impôs no “plebiscito fraudulento de 1980” - como muito bem caracteriza a doutrina jurídica e a ciência política chilena - num empecilho para o vigor das liberdades, dos direitos sociais e da democracia.   

Questões como a crise de representação política na sociedade chilena estão intimamente vinculadas com a génese da Constituição de 1980. Tão só com muito esforço tem-se conquistado espaços e aberturas dentro de uma composição fechada à participação popular. Um exemplo disso é que se bem a ditadura compreende formalmente, o período de 1973 e 1990 - é dizer, que se inicia com o golpe contra o governo legítimo da Unidad Popular de Salvador Allende e se estende dolorosamente até os tempos da vitória do “Não”, em 1989 - foi somente no ano 2005, logo de 15 anos, que foram eliminados da constituição os senadores chamados “designados” porque não susceptíveis de eleição. Tais senadores eram os representantes diretos das Forças Armadas. Também foi somente nesse ano que acabou a figura dos senadores “vitalícios”, cujas vagas eram ocupadas pelos ex-presidentes, dentre eles o próprio Pinochet.

A segunda questão, consiste em entender que o processo chileno para uma nova constituição está no centro da contradição político-social-económica e cultural já fazem alguns anos. Não é algo postizo ou “do nada”. O debate começou bem antes do período de Bachellet, quando se intentou um processo participativo com essa finalidade. As mobilizações do ano 2011 ratificaram a necessidade de um novo texto. As visões sobre constituintes foram acirradas porque os setores conservadores colocavam a possibilidade de uma nova reforma, incrementando aquelas do ano 2005, enquanto outros setores colocavam que era preciso reconhecer atores, começar uma etapa de inclusiva, falar de perspectiva de género e em geral de pluralidade, de afirmação da democracia.  

A canalização desse processo deu-se no “Acordo pela Paz Social e a Nova Constituição”, para que a sociedade plurinacional chilena reconfigure seu Estado, seu regime político, forma e sistema de governo e, especialmente, para que estabeleça um conjunto de direitos e garantias. Trata-se de um fato inédito na história. Nessa projeção o apelo a um instituto de democracia direta como o plebiscito foi fundamental não só porque demonstrou a profunda legitimidade dessa exigência, senão por marcar o começo de um debate propositivo para a escolha dos constituintes, sobre conteúdo e diretrizes. Naquele domingo se expressou nas ruas o que o Mestre Jose Afonso da Silva detectava no Brasil, o espírito que se volca em vontade constituinte.

O que segue consta no Acordo: a eleição do corpo redator, em abril de 2021, conforme decidido na consulta. Veja-se que neste ponto há um fato importante: o Chile rejeitou a possibilidade de uma Convenção mista, que aproveitaria os deputados eleitos. Seriam, nessa opção, 86 membros do Congresso e 86 novos cidadãos.  A opção popular foi outra: a de eleger uma Convenção   exclusivamente para a finalidade constitucional, é dizer, 155 cidadãos.  

O acordo também determina o quórum de 2/3 dos membros da Convenção para tomar as decisões e o prazo de 9 meses, prorrogáveis por mais 3, para a conclusão dos trabalhos, o referendo popular e as condições para a promulgação.

É indiscutível que se trata de um momento peculiar importantíssimo para a história chilena, para sua sociedade que deve permanecer de vigia com relação ao modo de escolha e funcionamento da Convenção.

E também é indiscutível que o Brasil transita por fase diferente. Do que se trata, neste momento em solo brasileiro, é de defender e aprofundar a democracia modelada em 1988, de cunho deliberativo e participativo; de avançar na defesa dos direitos fundamentais perante o desenvolvimento de uma agenda política e jurídica que a nega e que impede sua efetividade. O desafio aqui é outro. Por isso, SIM, uma nova Constituição, uma nova Constituição para Chile, por supuesto.

 

Notas e Referências

[1] Veja-se a obra Constitución y democracia en el Nuevo Mundo. Bogotá: Universidad Externado de Colombia. Pp. 37-63.

[2] Confira-se especialmente o primeiro capítulo da obra de Negri, “Poder Constituinte” tradução de A. Pilatti. Rio de Janeiro. DP&A. 2002. 

[3] Andreas Kalyvas. Soberania popular, democracia y el poder constituyente Revista Política y Gobierno. XII. Vol. 1. 2005. Pp. 91-124. 

[4] Claudia Heiss. http://repositorio.uchile.cl/bitstream/handle/2250/159339/La-Constitucion-de-1980.pdf?sequence=1&isAllowed=y.

 

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