SOBRE O CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO E NOSSA AMÉRICA LATINA

03/12/2022

Coluna Por Supuesto

Numa recente aula de doutorado por mim proferida sobre Filosofia do Direito aplicada ao Constitucionalismo no Centro Universitário de Bauru – CEUB -, surgiu um debate sobre o saldo do denominado Neoconstitucionalismo no Brasil.

De fato, o termo Neoconstitucionaismo se utiliza com muita menos frequência que há alguns anos.  Há uma espécie de registro histórico de uma etapa recente e rápida, na qual a expressão representava um referencial teórico designador de um conjunto de inovações no campo do Direito Constitucional.

Na aula, fazíamos alusão a uma conferência proferida pelo Ministro e Professor Luís Roberto Barroso, publicada no ano 2004, na qual anunciava que estávamos atravessando uma nova fase no Direito brasileiro, dentro do marco de uma etapa de transformações no Direito Constitucional. Nesta fase haveria um novo marco filosófico, histórico e teórico. Assim, o pós-positivismo seria a corrente jus-filosófica do momento; a força normativa da Constituição e uma dogmática própria para a interpretação constitucional hermenêutica seriam novos paradigmas e, finalmente, estaria se constatando a superação dos tempos do Brasil autoritário e violento contra as liberdades. Haveria, portanto, uma nova realidade, vivida e sedimentada.

Entretanto, tendo em vista o aparecimento de correntes antidemocráticas, que proferem ataques e ameaças inclusive contra os Ministros do STF, que reclamam a volta do AI número 5, que conclamam às forças armadas a quebrar a ordem constitucional, para muitos fica a sensação de que a Constituição não resiste a estes embates, e que o saldo do Neoconstitucionalismo é precário, não isento de críticas nos seus elementos mais centrais. Para outros, nada trouxe de novo e não teria absolutamente nada de “Neo”.

Surgiu assim a ideia de convidar ao Ministro Barroso para expor suas considerações sobre o ponto e, neste novembro, entre chuvas e Copa, o Ministro nos acompanhou virtualmente, realizando uma exposição na qual deixou muito claras suas convicções sobre a democracia e o papel do STF na atual conjuntura.

O Ministro parte de uma premissa que, por sinal, consta por escrito em texto também conhecido sobre o que denomina um “sucesso imprevisto”. Diz LR Barroso que “O constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do século XX, derrotando vários projetos alternativos e autoritários que com ele concorreram”. Assim, o Estado Democrático de Direito é, nas suas palavras, a conjugação de, por um lado, o Constitucionalismo como poder limitado e fórmula de respeito aos direitos fundamentais e, pelo outro, da Democracia, que traduz soberania popular, poder do povo, vontade da maioria. Destarte, “O constitucionalismo democrático (...) é uma fórmula política baseada no respeito aos direitos fundamentais e no autogoverno popular. E é, também, um modo de organização social fundado na cooperação de pessoas livres e iguais”.

São afirmações fortes, muito claras e contundentes, que sem dúvida revelam um posicionamento amadurecido, resultado de estudos constantes. Mas, as afirmações suscitam reflexões, e neste caso, há mais de uma possibilidade de exploração de seu conteúdo. Isso não retira, em momento algum, o mérito que delas se evidencia. Pelo contrário, a problematização sugere que a afirmação cumpre com seu desiderato de gerar as inquietações, o convite ao estudo, o submetimento ao juízo crítico necessário para avançar no conhecimento, sempre sob a perspectiva de um diálogo construtivo e importante para avançar a um Direito cada vez mais fortalecido, de forma a combater, precisamente, aos inimigos da democracia e dos direitos fundamentais.

A questão posta é: realmente podemos dizer que triunfou o Constitucionalismo democrático? Em que consiste seu triunfo? É este incontestável? Os perigos hoje visualizados contra a democracia não são um atestado de que não houve tal vitória e que é possível retroceder?  

Algo parece claro: o Constitucionalismo liberal, pautado pela ideia de instituições e princípios adotados pela maioria dos Estados e que, como diz Santi Romano, a partir dos fins do século XVIII tem um governo que, em contraposição àquele absoluto, se diz “constitucional”, é certamente, uma proposta dentro da filosofia e da teoria política, que não somente supera o absolutismo, senão que permanece viva como paradigma de organização do Estado em perspectiva de efetivar direitos.  

Contudo, o Constitucionalismo admite não somente uma visão que o disseca e contrapõe ao autoritarismo. Continuamos a reafirmar, diante de qualquer proposta de autoritarismo centralizador do exercício do poder político para retirar direitos fundamentais, esse peculiar modelo tem toda a força histórica que o tornou predominante como ideologia e praxes política. Porém, se pesquisamos mais a fundo, especialmente no caso dos Estados de América Latina, algumas questões devem ser necessariamente ditas a partir de uma dialética e de um enfoque que lhe faz algo mais terreno, ligado a profundas contradições históricas, econômicas e culturais. Não há apenas um Constitucionalismo e as vezes há muitas constituições sem que exista vontade de constitucionalismo ou vontade constitucional.  Até porque, como processo ou movimento, não apresenta um modelo único de funcionamento dentro de uma sociedade organizada politicamente. Há experiencias constitucionais que se afiguram importantes e eficazes em algumas sociedades, mas que não necessariamente se reproduzem em outras, como os sistemas de governo, por exemplo, ou as formas de organização política administrativa.

No caso latino-americano, como diz Atilio Borón, nunca houve escassez de constituições. Temos até – e sobretudo - as “feitas sob encomenda”, para preencher ambições de classes sociais dominantes. Mas o que, nas palavras do filósofo argentino chama mais a atenção, é a patética falta de originalidade ostentada pela grande maioria delas. E, com efeito, durante muito tempo houve – e ainda há - uma grande quantidade de constituições estruturadas para modelos de sociedade que não são as nossas. Pouco ou nada foi extraído das realidades subcontinentais assumindo-se, então, os modelos de sociedades e de Estado como o dos Estados Unidos. Por isso e particularmente importante reconhecer o movimento chamado de Novo Constitucionalismo Latino-americano, que tem Cartas tão produtivas de analisar como a Equatoriana, para dar apenas um exemplo.   

Observe-se que se falamos, como parece ser a ótica do Ministro e Professor Barroso, em abordar a questão em sentido global, o Constitucionalismo nos oferece géneses concretas na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos e se impõe como modelo em América Latina e outros continentes. Mas, haveria que adicionar que as classes dominantes de Estados da América Latina assumem as fórmulas constitucionais transmigradas sem muito critério e sem levar em conta uma cultura jurídica que já emergia com especial génio por estas bandas. Observada de esta maneira, a vitória do Constitucionalismo é a vitória de uma versão, que não entanto, pode e achamos que deve ter admitido, e admitir de fato, contribuições da América Latina.

Há um Constitucionalismo universalizado, que aparece triunfante na sua modalidade liberal, fruto do iluminismo europeu, mas que de alguma forma rasgou as possibilidades de outros desenvolvimentos, em particular em sentido latino-americano. De tudo resultou no nosso contexto e para infelicidade nossa, aquilo que manifestamos linhas atrás, países com constituições, mas que não aceitaram o Constitucionalismo.

A explicação para essa situação se origina no próprio processo de formação das sociedades capitalistas periféricas. Uma afirmação de Borón parece-nos fundamental para entender a questão. Na verdade, para poder entender constituições sem Constitucionalismo é preciso observar o desenvolvimento de um capitalismo dependente e particularmente hostil tanto com relação à democracia como com relação ao próprio Constitucionalismo. Dessa perspectiva, “Parece-nos que o segredo do constitucionalismo se oculta não tanto num tipo particular de constituição, como assegura Casper, como num tipo particular de sociedade cuja estrutura e dinâmica tornam possível ou não o efetivo funcionamento do constitucionalismo”. [1]

Há uma diferencia a ser levada em conta para poder compreender, em especial, como o exemplo de Constitucionalismo dos Estados Unidos é diferente daquele da América Latina. As instituições republicanas pós-coloniais não encontraram na América Latina uma estrutura capitalista de apoio similar à que encontraram nas colônias inglesas da América do Norte. Isso porque o capitalismo da América Latina desenvolveu-se sem uma revolução burguesa, “(...) criando-se um peculiar amálgama na qual os velhos modos de produção foram sujeitados e adaptados às necessidades de acumulação capitalista, mas sem destruir ou desmantelar as arcaicas formas sociais preexistentes”.[2]

Não há como compreender o Constitucionalismo ou proclamar sua vitória real sem analisar as dificuldades para sua afirmação dentro de nosso contexto. Contudo, ressaltamos, a afirmação de Barroso, no plano da teoria política é perfeitamente aceitável como uma tendência histórica que rejeita as formações de estruturas que nos retrotraem ao absolutismo.

Democracia significa participação, deliberação, voto, direitos, responsabilidade com os outros, Estado capaz de atender necessidades. Como regime político implica não só um modelo teórico, mas uma forma de viver e conviver.

Nos tempos atuais estes debates são fundamentais não só como exercício de auto-reconhecimento de nossa cultura jurídica, tal e como somos, tal e como se apresentam os fatos, mas também para ganhar musculatura e força argumentativa, para como progressistas e democratas persistir na briga contra uma extrema direita doentia, que nega a ciência, o Direito e os direitos, e cujo surgimento e reprodução em nosso meio, é também explicável, por supuesto, á luz das distorções da nossa história econômica, da nossa democracia e do nosso Constitucionalismo.

 

Notas e Referências

[1] Filosofia Política Marxista. P. 117.

[2] Idem. P. 125.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Memorial da América Latina. // Foto de: Governo do Estado de Sã // Sem alterações

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